ESPIRITUALIDADE.
Texto de Leonardo Boff (1938-
). A CULTURA DA PAZ. (2002). A cultura dominante, hoje mundializada, se
estrutura ao redor da vontade de poder que se traduz por vontade de dominação
da natureza, do outro, dos povos e dos mercados. Essa é a lógica dos
dinossauros que criou a cultura do medo e da guerra. Praticamente em todos os
países as festas nacionais e seus heróis são ligados a feitos de guerra e de
violência. Os meios de comunicação levam ao paroxismo (apogeu) a magnificação
de todo tipo de violência, bem simbolizado nos filmes de Arnold Schwazenegger
(1947- ) como o “Exterminador do
Futuro”. Nessa cultura o militar, o banqueiro e o especulador valem mais do que
o poeta, o filósofo e o santo. Nos processos de socialização formal e informal,
ela não cria mediações para uma cultura da paz. E sempre de novo faz suscitar a
pergunta que, de forma dramática, Albert Einstein (1879-1955) colocou a Sigmund
Freud (1856-1939) nos idos de 1932: é possivel superar ou controlar a
violência? Freud, realisticamente, responde: “É impossível aos homens controlar
totalmente o instinto de morte (...). Esfaimados pensamos no moinho que tão
lentamente mói que poderíamos morrer de fome antes de receber a farinha”. Sem
detalhar a questão, diríamos que por detrás da violência funcionam poderosas
estruturas. A primeira delas é o caos sempre presente no processo cosmogênico.
Viemos de uma imensa explosão, o big bang. E a evolução comporta violência em
todas as suas fases. São conhecidas cerca de 5 grandes dizimações em massa,
ocorridas há milhões de anos atrás. Na última, há cerca de 65 milhões de anos,
pereceram todos os dinossauros após reinarem, soberanos, 133 milhões de anos. A
expansão do universo possui também o significado de ordenar o caos através de
ordens cada vez mais complexas e, por isso também, mais harmônicas e menos
violentas. Possivelmente a própria inteligência nos foi dada para pormos
limites à violência e conferir-lhe um sentido construtivo. Em segundo lugar,
somos herdeiros da cultura patriarcal que instaurou a dominação do homem sobre
a mulher e criou as instituições do patriarcado assentadas sobre mecanismos de
violência como o Estado, as classes, o projeto da tecnológico científico, os
processos de produção como objetivação da natureza e sua sistemática
depredação. Em terceiro lugar, essa cultura patriarcal gestou a guerra como
forma de resolução dos conflitos. Sobre esta vasta base se formou a cultura do
capital, hoje globalizada; sua lógica é a competição e não a cooperação, por
isso, gera guerras econômicas e políticas e com isso desigualdades, injustiças
e violências. Todas estas forças se articulam estruturalmente para consolidar a
cultura da violência que nos desumaniza a todos. A essa cultura da violência há
que se opor a cultura da paz. Hoje ela é imperativa. É imperativa, porque as
forças de destruição estão ameaçando, por todas as partes, o pacto social
mínimo sem o qual regredimos a níveis de barbárie. É imperativa porque o
potencial destrutivo já montado pode ameaçar toda a biosfera e impossibilitar a
continuidade do projeto humano. Ou limitamos a violência e fazemos prevalecer o
projeto da paz ou conheceremos, no limite, o destino dos dinossauros. Onde
buscar as inspirações à cultura da paz? Mais que imperativos voluntarísticos, é
o próprio processo antroprogênico a nos fornece indicações objetivas e seguras.
A singularidade do 1% de carga genética que nos separa dos primatas superiores
reside no fato de que nós, à distinção deles, somos seres sociais e
cooperativos. Ao lado de estruturas de agressividade, temos capacidades de
afetividade, compaixão, solidariedade e amorização. Hoje é urgente que
desentranhemos tais forças para conferir rumo mais benfazejo à história. Toda
protelação é insensata. O ser humano é o único ser que pode intervir nos
processos da natureza e co pilotar a marcha da evolução. Ele foi criado
criador. Dispõe de recursos de reengenharia da violência mediante processos
civilizatórios de contenção e uso de racionalidade. A competitividade continua
a valer, mas no sentido do melhor e não de destruição do outro. Assim todos
ganham e não apenas um. Há muito que filósofos da estatura de Martin Heidegger
(1889-1976), resgatando uma antiga tradição que remonta aos tempos do Imperador
romano César Augusto (63 AC 14), vêm no cuidado a essência do ser humano. Sem
cuidado ele não vive nem sobrevive. Tudo precisa de cuidado para continuar a
existir. Cuidado representa uma relação amorosa para com a realidade. Onde vige
cuidado de uns para com os outros desaparece o medo, origem secreta de toda
violência, como analisou Freud. A cultura da paz começa quando se cultiva a
memória e o exemplo de figuras que representam o cuidado e a vivência da
dimensão de generosidade que nos habita, como Mahatma Gandhi (1869-1948), Dom
Helder Câmara (1909-1999) e Martin Luther King (1929-1968) e outros. Importa
fazermos as revoluções moleculares Félix Gattari (1930-1992), começando por nós
mesmos. Cada um estabelece como projeto pessoal e coletivo a paz enquanto
método e enquanto meta, paz que resulta dos valores da cooperação, do cuidado,
da compaixão e da amorosidade, vividos cotidianamente. Qual globalização? Os
povos de Porto Alegre – Brasil e os povos de Davos – Suíça e Nova York –
Estados Unidos se batem pela globalização. Qual globalização? Os poderosos, e
por isso são poderosos, se apropriaram da palavra globalização e lhe impuseram
uma significação que serve a seus interesses. É o processo mundial de
homogeneização do modo de produção capitalista, de globalização dos mercados e
das transações financeiras, do entrelaçamento das redes de comunicação e do
controle mundial das imagens e das informações. A lógica que a preside é a
competição de todos com todos. Aqui reside o drama bem formulado pelo
geneticista francês Albert Jaquard (1925-2013): “O escopo de uma sociedade é o
intercâmbio. Uma sociedade cujo motor é a competição, é uma sociedade que me
propõe o suicídio. Se me ponho em competição com o outro, não posso
intercambiar com ele, devo eliminá-lo, destrui-lo”. Pois é exatamente isso que
está ocorrendo com a globalização proposta pelo povo de Davos e Nova York. Ou
você está no mercado competitivo, vence e existe. Ou você é derrotado, desiste
e inexiste. Entre as vítimas desta lógica se encontra quase metade da
humanidade, condenada à impiedade da exclusão e da falta de qualquer
sustentabilidade. Pode ser humano um projeto global que elimina os humanos ou
os faz mero carvão, lembrando o saudoso Darcy Ribeiro (1922-1997), para a
máquina produtivista? Face a essa crueldade, ganha dignidade ética a
alternativa proposta pelo povo de Porto Alegre – Brasil. Ele nega esse tipo
tiranossáurico de globalização. Propõe outra globalização que passa pela
solidariedade a partir de baixo, pela mundialização dos direitos humanos, pela
socialização da democracia como valor universal, pelo controle social dos
capitais especulativos, passa, outrossim, pela aplicação em todas as economias
da taxa Tobin, pela criação de instâncias de governança mundial, pela
universalização do cuidado para com a Terra e os ecossistemas e pela
valorização da dimensão espiritual do ser humano e do universo. Esse povo de
Porto Alegre se faz assim o guardião da humanidade mínima. Afirma a
possibilidade real de vivermos juntos como humanos e nos mostra como devemos
passar de uma consciência de nação e de classe para uma consciência de espécie
e de planeta Terra. Somente esse tipo de globalização constrói a Terra como
Casa Comum dos humanos e de toda a comunidade de vida. Essa proposta de
globalização se adequa ao que há de mais contemporâneo no pensamento que se
orienta pelo novo paradigma científico Pois, vê a globalização como uma nova
etapa da Terra e da Humanidade. Os povos estavam em diáspora pelos continentes
e enraizados em seus estados-nações. Agora começaram a se mover e se encontram
num único lugar, a Terra como Casa Comum. E não temos outra. Já em 1933
escrevia profeticamente Teilhard de Chardin (1881-1955): “A idade das nações já
passou. Se não quisermos morrer, é a hora de sacudir os velhos preconceitos e
de construir a Terra”. Queremos construir a Terra prolongando o dinamismo que a
está forjando há bilhões de anos. Com efeito, somos fruto de um processo
evolucionário de l5 bilhões de anos, processo único, complexo, contraditório
(caótico e harmônico) e complementar que entrelaça todos os seres em teias de
relações, fora das quais ninguém existe. A seta do tempo irreversível vai
mostrando uma direção: a emergência de ordens cada vez mais complexas, auto
organizadas, interiorizadas e convergentes de vida e de criatividade. Terra e
Humanidade formam uma única entidade, exatamente como os astronautas
testemunham quando vêm a Terra de fora da Terra. O ser humano é a Terra que num
momento de sua evolução começou a sentir, a pensar, a amar e a venerar. Por
isso que homem vem de húmus (substância escura que resulta da decomposição
parcial pelos micróbios, do solo, de detritos vegetais e animais), terra
fecunda. Agora estamos elaborando essa consciência terrenal e planetária. Esta
compreensão nos fornece a base experimental e científica para entendermos a
atual globalização em curso. Ela é um momento avançado de um processo anterior
e maior de convergência de energias, dinamismos e intencionalidades que estão
atuando desde o começo da cosmogênese e da biogênese. A globalização cria as
condições para um salto qualitativo da antropogênese: a irrupção daquilo que
Teilhard de Chardin chamou de noosfera: a criação de uma nova harmonia entre os
humanos na qual técnica e poesia, produção e espiritualidade, coração e
pensamento encontram uma nova sintonia mais alta e mais sinfônica. O mérito do
povo de Davos – Nova York foi o de ter criado as condições materiais para esse
salto. Mas ele mesmo não saltou. O mérito do povo de Porto Alegre foi o de ter
mostrado sua possibilidade e ensaiado os primeiros movimentos para esse salto.
E o salto, finalmente, virá porque ele representa o que deve ser. E o que deve
ser tem força. A idade
tiranossáurica da globalização. Há milhões de anos, surgiu na
África, a partir de um primata superior, o homem sapiens-demens. Milhares e
milhares de anos após, começou sua dispersão, primeiro pela Eurásia (é a massa
que forma em conjunto a Europa e a Ásia), depois pelas Américas e, por fim,
pela Polinésia e Oceania. No final do paleolítico superior, há quarenta mil
anos, já ocupava todo o Planeta e chegava a um milhão de pessoas. Criou
civilizações e estados-nações. A partir do século XVI começou a volta da
diáspora. Nomeadamente a partir de 1492 começou um imenso processo de expansão
do Ocidente e de intercâmbio global. Colombo (1492) traz ao conhecimento dos
europeus a existência de outras terras habitadas. Fernão de Magalhães (1521)
comprova que a Terra é efetivamente redonda e qualquer lugar pode ser alcançado
a partir de qualquer lugar. As potências hegemônicas do século XVI, Espanha e
Portugal, elaboram, pela primeira vez, o projeto-mundo. Expandem-se por África,
América e Ásia. Ocidentalizam o mundo. Esse processo se prolongou no século XIX
com o imperialismo ocidental que, a ferro e fogo, submeteu a seus interesses
culturais, religiosos e especialmente comerciais todo o mundo conhecido. O
carabina e o canhão falaram mais alto que a razão e a religião. O Ocidente
europeu se revelou a hiena das gentes. Nós, do extremo-Ocidente, já nascemos
globalizados e, por experiência, sabemos o que significa a globalização sentida
e sofrida como globo colonização. Esse processo culmina a partir da segunda
metade do século XX (1901-2000) com a nova expansão ocidental, sob a hegemonia
dos Estados Unidos da América, mediante a tecno ciência, como instrumento de
opulência e arma de dominação, mediante as corporações multilaterais e globais que
controlam os mercados, mediante uma cultura ocidental, homogeneizadora e
desfibradora das culturas regionais, mediante um único modo de produção,
capitalista, assentado sobre a concorrência que destrói os laços de
sociabilidade e cooperação, mediante um pensamento único, neoliberal, que se
entende como a única forma racional de organizar a sociedade. O mais grave,
entretanto, é o fato de se ter feito da Terra uma banca de negócios, onde tudo
nela é mercantilizado e feito objeto de lucro. Não se respeita sua autonomia e
subjetividade enquanto Gaia (na mitologia grega é o nome da deusa Terra).
Desconhecem-se nossas raízes telúricas e nossa origem, pois, como seres humanos
viemos da Terra. As palavras homem e Adão já o dizem. Homem vem de húmus,
(Terra fértil) e Adão vem de Adamah (Terra fecunda), significando o filho da
Terra fecunda. Seja como for, começou o processo de globalização que está ainda
em curso. Na nossa visão, ele possui três idades que iremos analisar: a
globalização tiranossáurica, a globalização humana e a globalização ecozóica.
Vamos considerar hoje a primeira idade, hegemônica nos dias atuais. Chamamo-la
tiranossáurica porque sua virulência guarda analogia com os tiranossauros, os
mais vorazes de todos os dinossauros. Com efeito, a lógica da competição, sem
qualquer laivo de cooperação, confere traços de impiedade à globalização
imperante. Exclui cerca de metade da humanidade. Suga o sangue das economias
dos países fracos e retardatários, lançando cruelmente milhões e milhões na
fome e na inanição. Cobra custos ecológicos de tal monta que põe em risco a
biosfera, pois polui os ares, envenena os solos, contamina as águas e
quimicaliza os alimentos. Não freia sua voracidade tiranossáurica nem face à
possibilidade real de impossibilitar o projeto planetário humano. Prefere o
risco da morte à redução de seus ganhos materiais. Esse modelo de globalização
excludente pode bifurcar a família humana: por um lado, um pequeno grupo de
nações opulentas se enchafurdando no consumo material com uma pobreza espiritual
e humana espantosa e, por outro, as multidões barbarizadas, entregues à sua
própria sorte, carvão para o funcionamento da máquina produtivista e condenadas
a morrer antes do tempo, vítimas da infâmia, das doenças dos pobres e da
degradação geral da Terra. Há mil razões para se opor a esse tipo de
globalização. Ela não pode se eternizar a preço de destruirmos o futuro da
espécie. A idade humana da globalização. A globalização tiranossáurica,
não obstante suas contradições internas, cria as condições infra estruturais e
materiais para as outras formas de globalização: projetou as grandes avenidas
de comunicação global, construiu a rede de trocas comerciais e financeiras,
incentivou o intercâmbio entre todos os povos, continentes e nações. Sem essas
pré condições seria impossível sonhar com globalizações de outra ordem. Agora,
estabelecida a globalização material, a globalização humana deve resgatar seus
ganhos num quadro maior e mais includente (incluir) que buscar a hegemonia. Ela
se processa, simultaneamente, em várias frentes, na antropológica, na política,
na ética e na espiritual. Vejamos. Impõe-se mais e mais na consciência coletiva
a unidade da espécie humana, sapiens e demens. Por maiores que sejam as
diferenças culturais, vigora uma unidade genética básica, temos a mesma
constituição anatômica, os mesmos mecanismos psicológicos, os mesmos impulsos
espirituais, os mesmos desejos arquetípicos. Embora mudem os códigos de
expressão, todos são portadores de cuidado, de emoção, de inteligência, de liberdade,
de amorosidade, de expressão artística e de experiência espiritual.
Simultaneamente se manifesta também nossa capacidade de mesquinharia, de
exclusão do outro, de violência contra a natureza e de destruição. Somos a
unidade complexa desses contrários. Mais e mais se difunde a convicção de que
cada pessoa é sagrada e sujeito de dignidade. Ela é um fim em si mesmo, um
projeto infinito, a face visível do Mistério do mundo, um filho e filha de
Deus. Em nome desta dignidade se codificaram os direitos humanos fundamentais,
pessoais, sociais e dos povos. Por fim, se elaborou a Dignitas Terrae,
traduzida nos direitos da Terra como super organismo vivo, dos ecossistemas,
dos animais e de tudo o que existe e vive. A democracia como valor universal a
ser vivido em todas as instâncias humanas penetra lentamente nas visões
políticas mundiais. Vale dizer, cada ser humano tem direito de participar do
mundo social que ajuda a criar com sua presença e trabalho. O poder deve ser
controlado para não se transformar em tirânico. A violência não é o caminho
para soluções duradouras, mas o é o diálogo, a tolerância e a busca permanente
de convergências na diversidade. A paz é simultaneamente método e meta, como
fruto da justiça societária irrenunciável e do cuidado de todos por todos. As
instituições devem ser minimamente justas e equitativas. Um consenso mínimo
para uma ética global se concentra na humanitas da qual todos e cada um são
portadores. Mais que um conceito, a humanitas é um sentimento profundo de que
somos, finalmente, irmãos e irmãs, viemos de uma mesma origem, possuímos a
mesma natureza físico química bio sociocultural e espiritual e participamos de
um mesmo destino. Devemos tratar a todos humanamente segundo a lei áurea: “não
faças ao outro o que não queres que te façam a ti”. A reverência face à vida, o
respeito inviolável aos inocentes, a preservação da integridade física e
psíquica das pessoas e de todo o criado, o reconhecimento do direito do outro
de existir, constituem pilastras básicas sobre as quais se constroem a
sociabilidade humana, os valores e o sentido de nossa curta passagem por esse
Planeta. Experiências espirituais dos povos originários e das culturas
contemporâneas se encontram e intercambiam visões. Por elas o ser humano se
religa à Fonte originária de todo o ser, identifica um laço misterioso que
perpassa todo o universo e reunifica todas as coisas inter retro conectadas num
todo dinâmico e aberto para cima e para frente. São essas experiências
espirituais que estruturam nossa subjetividade e nos abrem para horizontes que
transcendem o universo. Só nessa dimensão de extrapolação e de superação de
toda medida, de todo espaço/tempo e de todo o desejo é que o ser humano se
sente realmente humano. Essa lição já nos ensinaram os gregos. A era humana da
globalização não ganhou ainda a hegemonia. Mas seus ingredientes são
identificáveis e estão fermentando a massa da história e as consciências. Ela
vai irromper, gloriosa, um dia. Inaugurará a nova história da família humana
que caminhou por tanto tempo em busca de suas origens comuns e de sua Casa
materna. A idade ecozoica da globalização. A expressão “ecozoico” foi
criada por dois americanos, um cosmólogo, Brian Swimme (1950- ), e por um antropólogo das culturas, Thomas
Berry (1914-2009), coautores da mais abalizada História do Universo. É a era
que segue o cenozoico, há 65 milhões de anos, quando após a catástrofe que
dizimou os dinossauros, os mamíferos conheceram um desenvolvimento nunca antes
havido. Nós viemos deles. A idade ecozoica representa a culminação da idade
humana da globalização. A característica básica reside no novo acordo de
respeito, veneração e mútua colaboração entre Terra e Humanidade. É a idade da
ecologia integral, daí o nome ecozoica. Mais e mais conscientizamos o fato de
sermos um momento de um processo de bilhões e bilhões de anos. Encontramo-nos
agora numa teia de relações vitais das quais somos corresponsáveis. Depois de
tantas intervenções nos ritmos da natureza, sem cuidarmos das consequências
prejudiciais, nos damos conta de que a revolução agora consiste em preservar o
mais que podemos o legado da natureza e usá-lo com responsabilidade. Está
nascendo uma nova benevolência para com a Terra. Ela é como uma nave espacial
com recursos abundantes mas limitados. Só com a solidariedade entre todos
podemos fazer que esses recursos sejam suficientes para toda a comunidade de
vida. Ou cuidamos uns dos outros e juntos cuidamos da Terra ou nave espacial
cairá e desaparecemos. Desta ótica surge uma nova ética. Por todos os lados
surgem grupos que se orientam pelo novo padrão de comportamento. Representa
aquilo que Pierre Teilhard de Chardin chamou de noosfera, aquela esfera na qual
as mentes e os corações (sentido grego de noos) entrariam numa sintonia fina,
caracterizada pela mutualidade entre todos, pela amorização e pela
espiritualização das intencionalidades coletivas. Estas se coordenariam para
garantir a paz, a integridade da criação e o substrato material suficiente para
todos. Livres e desafogados podemos, então, viver nossa dimensão específica de
conviver humanamente, de conjugar trabalho com poesia, eficiência com
gratuidade e de poder brincar e louvar como irmãos e irmãs, em casa. Essa
consciência de mútua pertença Terra-Humanidade vem reforçada poderosamente pela
visão que os astronautas nos possibilitaram. Sigmund Jähn (1937- ), ao regressar à Terra, expressou assim a
modificação de sua consciência: “Já são ultrapassadas as fronteiras políticas,
ultrapassadas também as fronteiras das nações. Somos um único povo e cada um é
responsável pela manutenção do frágil equilíbrio da Terra. Somos seus guardiães
e devemos cuidar de nosso futuro comum”. Essa percepção da Terra vista fora da
Terra dá origem a uma nova sacralidade. Talvez o sentido secreto das viagens ao
espaço exterior tenham esse significado profundo, bem expresso por outro
astronauta J. P. Allen (1937- ):
"Discutiu-se muito, os prós e os contras com referência às viagens à Lua;
não ouvi ninguém argumentar que deveríamos ir à Lua para poder ver a Terra de
lá. Depois de tudo, esta foi seguramente a verdadeira razão de termos ido à
Lua”. E de lá da Lua, não há distinção entre Terra e Humanidade. Ambas formam
uma única entidade. A Humanidade não está apenas sobre a Terra, ela é a própria
Terra que se comove, se volta sobre si mesma, ama, cuida e venera. Transformar
essa consciência num estado permanente, sem que precisemos pensar, significa
viver já dentro da era ecozoica. A Carta da Terra, pensada a ter o mesmo valor
que a Carta dos Direitos Humanos, vem perpassada pela visão ecozoica. Em sua
introdução diz: “A humanidade é parte de um vasto universo em evolução. A
Terra, nosso lar, está viva com uma comunidade de vida única (…). O espírito de
solidariedade humana e de parentesco com toda a vida é fortalecido quando
vivemos com reverência o mistério da existência, com gratidão pelo presente da
vida, e com humildade considerando o lugar que ocupa o ser humano na natureza (…). A
escolha é nossa: formar uma aliança global para cuidar da Terra e uns dos
outros, ou arriscar a nossa destruição e a da diversidade da vida”. Essas
mudanças, não obstante os obstáculos que a era tiranossáurica cria, estão
penetrando na consciência coletiva e irradiando sobre todo o curso da
sociedade. A realização da globalização humana e ecozóica representará o fim do
exílio. As tribos todas da Terra a partir de agora se encontrarão na grande
taba comum, no ilê comunitário, no seio da grande e generosa Mãe Terra. Enfim
(...). www.leonardoboff.com.br . Abraço.
Davi.
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