Espiritualidade. Escrito por Leonardo
Boff. (2001). A GLOBALIZAÇÃO DO INIMIGO.
As declarações do Presidente George W. Bush (mandatário americano de 2001-2009)
são inequívocas: o terrorismo será enfrentado em qualquer parte do mundo; se
atacarão também aqueles países que dão guarida às redes do terror. Quem não
aceita esta luta é contra os EUA e a favor do terrorismo. Aqui há uma manifesta
globalização do inimigo e uma globalização da guerra com características
singulares, combinando a brutalidade da guerra tecnológica moderna com a guerra
suja da inteligência que implica atos de terror e o assassinato planejado de
lideranças tidas por terroristas. Esta estratégia nos projeta cenários sombrios
e altamente perigosos para a convivência da humanidade no processo inexorável
da globalização, fase nova da história da Terra (Gaia) e da espécie homo
sapiens e demens. O primeiro efeito ocorreu nos EUA: a criação do Conselho de
Defesa Interna, dotado de uma Força-Tarefa de Rastreamento de Terroristas,
fundos específicos e de sua correspondente ideologia justificadora. Nós
conhecemos o que significa o Estado de Segurança Nacional cujo ideólogo mor
Carl von Clausewitz (1780-1831), da guerra de guerrilha (a guerra é a
continuação da política com outros meios) inspirou os processos de seu
funcionamento. Em nome da segurança inverte-se o sentido básico do direito:
todos são supostamente terroristas até prova em contrário. Em consequência
disso, surgem as espionagens, os grampos, as prisões para interrogatórios, as
violências por parte dos corpos de segurança e as torturas. Cria-se o império
da suspeita e do medo e a quebra da confiança societária, base de qualquer
pacto social. Há o risco do terror de Estado. Dois temores bem fundados
acolitam semelhante universalização do inimigo: a delimitação do que seja
terrorismo e a identificação dos nichos alimentadores de terrorismo. A
formulação de bem-mal, amigo-inimigo do Presidente Bush nos remete a um dos grandes
teóricos modernos da filosofia política de transfundo nazi fascista, Carl
Schmitt (1888-1985). Em seu O Conceito do Político (1932, Vozes 1992) diz:
"a essência da existência política de um povo é sua capacidade de definir
o amigo e o inimigo" (p.76). Quem é inimigo? "É aquele
existencialmente algo outro e estrangeiro, de modo que, no caso extremo, há
possibilidade de conflitos com ele (...). Se a alteridade do estrangeiro
representa a negação da própria forma de existência do povo, deve ser repelido
e combatido para a preservação da própria forma de vida. Ao nível da realidade
psicológica, o inimigo facilmente vem a ser tratado como mal e
feio"(p.52). Bush interpretou a barbárie de 11 de setembro de guerra
contra a humanidade, contra o bem e o mal, contra a democracia e a economia
globalizada de mercado que tantos benefícios (na pressuposição dele) trouxe
para a humanidade. Quem for contra tal leitura, é inimigo, o outro e o
estrangeiro que cabe combater e eliminar. Tal estratégia pode levar a violência
para dentro dos EUA e para todos os quadrantes do mundo. É a violência total do
sistema contra todos os seus críticos e opositores. Estamos assistindo a
concretização desta lógica maniqueísta (qualquer visão do mundo que o divide em
poderes oposto e incompatíveis) por parte da administração norte-americana e
por parte dos talibãs. O segundo problema aventado é a identificação dos nichos
fomentadores de inimigos. Na atual estratégia são países tidos por párias ou
bandidos. Dentro de pouco perceberá que mais importantes são ideologias
libertárias e religiões de resistência e libertação como ocorreu em todo o
Terceiro Mundo e na oposição ao regime soviético. Elas criam verdadeiras
místicas de engajamento e fazem surgir militantes altamente comprometidos com a
superação da presente ordem social mundial, devido às altas taxas de iniquidade
social que produz. Entre eles se contam as históricas esquerdas anti
capitalistas, os movimentos transnacionais contra o tipo hegemônico de
globalização econômico financeira e os setores religiosos ligados à mudanças
sociais como o cristianismo de libertação nascido na América Latina e ativo na
África, na Ásia e em setores importantes da sociedade civil norte-americana e
europeia, grupos fortes do islamismo popular, de cunho fundamentalista e
setores teológicos islâmicos que resgatam as origens libertárias da gesta de
Maomé e o sentido original do Alcorão. Todos esses serão considerados inimigos
eventuais. Conhecemos as consequências de tais identificações: a vigilância, a
tentativa de desqualificação pública, os sequestros, as torturas, os
assassinatos. Será que os EUA não acolheram uma lógica que os condenará repetir
com mais furor o que ocorreu na América Latina nos anos 60 sob os Regimes de
Segurança Nacional (bem entendido, segurança do capital)? Tais espectros não
são fantasias sinistras. Os ninhos de serpentes foram criados. E elas crescem,
se multiplicam e podem morder mortalmente em nível global. PAPEL DAS
RELIGIÕES NAS POLÍTICAS MUNDIAIS. A religião e a teologia subjazem aos
principais conflitos mundiais, na Irlanda, ex-Iugoslávia, na Palestina, em
Caxemira e no Afeganistão. Talibã significa estudante das universidades
corânicas, especialmente de teologia. Em 1994 assumiram o poder sobre 90% do
território afegão, impondo uma política teocrática fundamentalista que abrigou
a rede de terrorismo montada por Osama Bin Laden (1957-2011) contra quem se faz
uma guerra de vergonha, pois, contra um dos três países mais pobres do mundo e
assolado por 22 anos de guerra ininterrupta e uma inclemente estiagem de três
anos. A importância da religião foi quase completamente olvidada (esquecida)
pelos estrategistas das políticas mundiais. A maioria dos chefes de Estado e de
seus conselheiros são filhos da modernidade secularista e discípulos dos
mestres da suspeita que tentaram deslegitimar o discurso religioso. Muitos
deles consideram a religião um fóssil do passado mágico da humanidade ou coisa
de quem não tem razão como as crianças ou de quem já perdeu a razão como os
velhos. Consequentemente não há porque entrar na consideração nas estratégias
da política externa mundial. Essa omissão mostrou-se duplamente danosa, pois
levou a erros palmares na política concernente ao Líbano, ao Irã, à Palestina e
agora ao Afeganistão e não soube avaliar positivamente a contribuição que a
religião pôde trazer para a paz como se mostrou na Nicarágua, nas Filipinas, na
África do Sul e antes, na paz franco alemã e alemã polonesa. Samuel P.
Huntington (1927-2008), assessor do Pentágono, corresponsável pela desastrosa
estratégia de guerra no Vietnã, tornou-se famoso por propor um novo paradigma
de pensamento estratégico mundial para substituir a Guerra Fria. Cunhou a
expressão "Guerra de Civilizações" forma de identificar o estilo
futuro das guerras em contexto da globalização. Ao responder às várias críticas
que lhe foram feitas e ao reconhecer honestamente certas lacunas, no Foreign
Affairs (novembro/dezembro de 1993,186-194) fez uma afirmação de grande
relevância para o tema que nos ocupa: "No mundo moderno a religião é uma
força central, talvez a força central que motiva e mobiliza as pessoas (...). O
que em última análise conta para as pessoas não é a ideologia política nem o
interesse econômico; mas aquilo com que as pessoas se identificam são as
convicções religiosas, a família e os credos. É por estas coisas que elas
combatem e até estão dispostos a dar a sua vida"(p.191 e 194). Em outras
palavras, se reconhece a centralidade do fator religião na sedimentação de um
povo e na definição das identidades étnicas. Obviamente a religião não
substitui a instância econômica, política, cultural e militar. Mas cabe a ela
formular as motivações profundas e criar aquela mística que confere força à um
povo e que, em dados momentos, pode fornecer as justificações tanto para a
guerra quanto para a paz, como estamos assistindo agora em ambos os lados,
norte-americano e talibã (Barak Obama ao assumir a presidência dos EUA, em
2009, havia prometido tirar os soldados americanos do solo afegão. No entanto,
desde 2001, eles combatem os talibãs no Afeganistão. Assim ficará para o
próximo governo, a partir de 2017 a possível retirada da tropa de mais 8.000
soldados). Um dado fundamental é descurado (negligente) com referência ao
islamismo nos países onde é dominante. Devido à fé num Deus único, não se faz a
separação entre o político e o religioso, coisa que os países ocidentais o
fizeram a partir do século XVII (1601-1700). Tendem a fazer do Alcorão
referência única na organização da sociedade e do Estado. Na visão deles atacar
militarmente um Estado muçulmano é atacar o islamismo como religião. Significa
ressuscitar o fantasma das antigas cruzadas. E então respondem com a jihad que
originalmente não significa guerra santa, mas fervor pela causa de Deus no
mundo, agora traduzida em forma de terrorismo. Se tal imbricação (uma se
sobreponha em parte à outra) político religiosa existe não é com guerras que se
estabelece a paz política como o querem as potências ocidentais. Faz-se mister
antes um diálogo inter-religioso e uma pacificação religiosa. Sustentamos a
mesma tese de um dos maiores teólogos cristãos Hans Küng (1928- ): "não haverá paz política, se não
houver simultaneamente paz religiosa". E essa só surgirá se as religiões,
ao invés de marcarem suas diferenças, buscarem os pontos comuns. O próprio
Huntington ao concluir seu livro apela para "o princípio dos pontos
comuns" como base para a paz possível num mundo globalizado e
multicultural. Há convergências notáveis entre as religiões. Pois, todas elas
buscam a justiça, favorecem a concórdia, fomentam a solidariedade, pregam o
amor e o perdão e mostram sensibilidade para com os pobres e condenados da
Terra. Por aqui há caminho que nos leva à paz e à convivência fraterna entre
todos. CONFIRMADA A TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO. Mais que premiar uma pessoa, o
prêmio Right Livelihood premia uma causa. Qual é a causa que move toda uma
geração de cristãos no Terceiro Mundo, dentro os quais me inscrevo como teólogo
brasileiro, na periferia dos grandes centros metropolitanos de reflexão, já há mais
de 30 anos? É a causa dos condenados da Terra que constituem as grandes
maiorias da humanidade. No final dos anos 60 toda uma geração de cristãos e
teólogos se colocaram e ainda colocam a questão: como anunciar o amor e a
misericórdia de Deus para milhões que passam fome e são condenados a serem não
pessoas? Somente anunciando um Deus vivo e libertador, aliado dos pobres e
excluídos, podemos sem cinismo e com verdade dizer: Ele é efetivamente um Deus
bom e misericordioso. As palavras do Êxodo 3:7-10 foram atualizadas para a
nossa geração “Eu ouvi a opressão do meu povo, ouvi seus gritos de aflição,
conheço seus sofrimentos. Desci para libertá-los (...). Agora vai que eu te
envio para que libertes o meu povo”. Estas palavras foram dirigidas a cada um
de nós, a cada Igreja, à cada consciência minimamente ética e humanitária. Deus
habita, sim, numa luz inacessível. É um mistério insondável com o qual não
podemos brincar. Mas face ao padecimento humano, deixa sua transcendência, toma
partido pelos oprimidos contra seus opressores e decide intervir, animar
profetas como Oséias e suscitar líderes como Moisés, para libertar seus filhos
e filhas humilhados e ofendidos. Nos anos 70 (século XX) os oprimidos eram os
pobres econômicos e em função das mínimas condições de vida e de trabalho se
formulou um processo de libertação social e política à luz da fé. Nos anos 80
(século XX) os índios e negros como os oprimidos históricos de nossos povos e
eram animados a serem eles mesmos sujeitos de sus libertação. Nos anos 90 (século
XX) enfatizou-se singularidade da opressão das mulheres que há milênios sob
submetidas ao patriarcalismo e feitas invisíveis na sociedade. Buscam ser
atoras da história em pé de igualdade com os homens, diferentes e
complementares. Todos esses gritam por vida e liberdade. Setores importantes
das Igrejas históricas se organizaram para responder ao grito dos oprimidos. E
o fizeram pela prática libertadora através das comunidades eclesiais de base
(só no meu país – Brasil – existem 100.000 delas), dos inúmeros centros de
defesa dos direitos humanos, das pastorais sociais por Terra, casa, saúde,
educação e segurança, através da leitura popular e libertadora da Bíblia. A
reflexão que se fez a partir destas práticas se chama teologia da libertação. É
a teologia das Igrejas que tomaram a sério a questão dos pobres e excluídos.
Por isso está presente além da América Latina, na África, na Ásia, e nos grupos
comprometidos pela justiça internacional, pela causa feminista e pela ecologia
nos países centrais. A teologia da libertação tentou com sucesso mostrar que a
fé judaico cristã pode ser um elemento de mobilização social em função de
mudanças profundas na sociedade que tragam mais justiça para todos, mais
participação para os marginalizados e mais dignidade para os injustamente
humilhados. A revolução não é monopólio do marxismo e das tradições políticas
contestatárias. Um cristão porque é cristão pode ser um autêntico
revolucionário. Somos herdeiros de alguém que em razão de seu anúncio e prática
libertadora foi perseguido, preso, torturado e crucificado. Sua ressurreição
significa uma insurreição contra a ordem deste mundo que legitima
discriminações, sacraliza privilégios e torna impossível a convivência na
justiça, no cuidado, na compaixão e na paz. Não só os pobres e oprimidos
gritam. Gritam as águas, gritam os animais, gritam as florestas, gritam os
solos, enfim, grita a Terra como super organismo vivo, chamada Gaia. Gritam
porque são sistematicamente agredidos. Gritam porque são ameaçados de
desaparecer. A cada dia cerca de 10 espécies de seres vivos desparecem devido à
agressividade crescente do processo industrialista contemporâneo. A mesma
lógica que explora as classes e subjuga nações, depreda os ecossistemas e
extenua o Planeta Terra. A Terra como seus filhos e filhas empobrecidos precisa
de libertação. Todos vivemos oprimidos sob um paradigma de civilização que nos
exilou da comunidade de vida, que se relaciona com violência sobre a natureza e
que nos fez perder a reverência face à sacralidade e à majestade do Universo.
Esquecemos que somos um elo da imensa corrente de vida e que somos
corresponsáveis pelo destino comum da humanidade e da Terra. Destas percepções
nasceu uma teologia ecológica de libertação. Segundo esta teologia, a injustiça
social se transforma em injustiça ecológica porque atinge a pessoa humana e a
sociedade que são parte e parcela da natureza. Não basta uma ecologia ambiental
que apenas cuida do entorno humano. Precisamos de uma ecologia social que
reeduque o ser humano a conviver com a natureza e a se relacionar cooperativa e
fraternalmente com ela. Já fizemos demasiadas intervenções na natureza e contra
ela. Modificamos a base físico química da Terra. O que precisamos,
urgentemente, é modificar nossa mente e nosso coração. Se quisermos salvar a
biosfera e garantir um futuro bem aventurado para todos precisamos de uma
ecologia mental e espiritual. A Terra está doente. Temos em nossas mentes e
corações demasiada arrogância, vontade de poder como dominação, tendências à
discriminação, à subjugação, e à destruição do outro. O projeto da tecno científico
que tantos benefícios trouxe para a vida humana, permitiu o surgimento do
princípio de auto destruição. A máquina de morte já construída pode devastar
toda a biosfera e impossibilitar o projeto planetário humano. Precisamos, em
contrapartida, criar o princípio de corresponsabilidade e de cuidado por tudo o
que é e por tudo o que vive. A forma dominante de globalização representa uma
tragédia para a maioria da humanidade. A razão reside no fato de que tanto a
economia mundialmente integrada quanto o mercado se regem pela competição e não
pela cooperação. Se dermos livre curso à competição sem a cooperação podemos
nos devorar colocar em alto risco todo o sistema vida. Desta vez não há uma
arca de Noé que salve alguns e deixa perecer os demais. Queremos nos salvar
todos juntos. Precisamos desentranhar tendências que estão também
presentes em nossa mente e em nosso
coração: a solidariedade, a compaixão, o cuidado, a comunhão e a amorização
(relação de amor coletivo, amor com o próximo. Exemplo: cuidar do outro é zelar
à que está diálogo Eu Tu seja libertadora, sinergética e construtora de uma
aliança perene de paz e harmonia). Tais valores e forças interiores poderão
fundar um novo paradigma de civilização, a civilização da humanidade
reunificada na Casa Comum, no Planeta Terra. Viver tais dimensões significa
viver a verdadeira espiritualidade humana. Ela não é monopólio das igrejas e das
religiões, mas a dimensão mais profunda do ser humano. Por ela percebemos que
as coisas todas do Universo não estão justapostas umas às outras, mas estão
inter retro conectadas entre si. Um elo liga e religa tudo constituindo a
sagrada unidade do Universo. Esse elo secreto é a Fonte originária de todo o
ser. É aquilo que todas as religiões chamam de Deus, mistério de vida e de
ternura, cujo nome não se encontra em nenhum dicionário, só no coração. Meu
empenho, há mais de 30 anos, como teólogo da libertação integral, foi pensar e
repensar, viver e transmitir essa mensagem: Terra e humanidade formam uma única
realidade. Na verdade, nós seres humanos, somos a própria Terra que sente,
pensa, ama e venera. Temos uma mesma origem e um mesmo destino. Somos chamados
a ser não o Satã da Terra, mas seu Anjo bom. Chegamos a uma encruzilhada em que
devemos decidir pelo futuro que queremos. E queremos manter a família humana
unida junto com a grande família biótica, inseridos nas forças diretivas que
regem todo o Universo. Nossa missão é de celebrar a grandeza da criação e
religa-la ao Seio de onde veio e para onde vai, com cuidado, leveza, alegria,
reverência e amor. Agradeço o prêmio Right Livelihood que consagrou essa
perspectiva, porque foi vista como benfazeja para o futuro dos pobres, da
humanidade e do Sistema Terra. Muito obrigado. www.leonaroboff.com.br. Leonardo Boff
recebeu este prêmio Right Livelihood em 7 de dezembro de 2001, em Estocolmo, no
parlamento Sueco. É um prêmio alternativo ao Nobel da Paz àqueles que se
destacam no compromisso em favor da paz, reconciliação, justiça, celebração do
espírito humano e proteção ao meio ambiente. Dividiu o prêmio de US$ 187.000
mil com mais algumas personalidades que se sobressaíram naquele ano. Abraço.
Davi.
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