Taoísmo. Texto do acadêmico
Inty Scoss Mendoza. O conceito do “Tao” 道
é tão antigo quanto complexo e seria
inviável trata-lo aqui em todas as suas implicações para
o pensamento filosófico, experiência religiosa e concepções
políticas ao longo da história chinesa, portanto, me restrinjo ao enfoque
de dois autores contemporâneos de língua chinesa que buscaram
traduzir – não para as línguas ocidentais, mas para o
pensamento ocidental – esse conceito amplo, profundo e misterioso
(para utilizar-me de alguns adjetivos frequentemente
atribuídos a ele). São os autores: Zhang Dainian 张岱年 e Zhang Liwen 张立文. O primeiro é um aclamado estudioso do pensamento chinês
do século XX na República Popular da China. Nasceu em 1909 e
faleceu em 2004 tendo, portanto, vivido
as transformações intensas que ocorreram naquele país no
século passado. Filho de um erudito chinês do final da Dinastia
Manchu e formado em Educação na Universidade de Beijing em 1933,
quando, então, se tornou professor assistente da área de filosofia da
Universidade de Qinghua e professor titular no ano de 1951. Profundamente
influenciado pelo irmão mais velho, Zhang Songnian, um professor de
filosofia ocidental, entrou em contato com a Filosofia Analítica
– Bertrand Russel (1872-1970), G. E. Moore (1873-1958) e Wittgenstein
(1889-1951) – que se tornou um
dos seus grandes referenciais teóricos. Um outro
referencial teórico presente em sua obra, entretanto um pouco
controverso, é o marxismo. Tal questão é percebida no livro consultado para
esse artigo: “Os Tópicos da Filosofia Chinesa” [中国哲学大纲], considerado leitura obrigatória em
todos os cursos de filosofia chinesa da República Popular da
China. Onde no prefácio da primeira edição, em 1937, Zhang Dainian faz uma
breve menção ao método dialético quando descreve um
dos objetivos do livro: O enfoque no desenvolvimento
histórico sempre será útil para definir as origens e a evolução
(...); para compreender profundamente uma determinada linha de pensamento é
preciso enxergar seu percurso de desenvolvimento, buscar
suas origens e transformações. Poder-se-ia dizer que isso
significa utilizar o método dialético para analisar a filosofia
chinesa (Zhang 1997, p.19). Entretanto, nas edições posteriores
consta ainda uma “autocrítica dos estudos anteriores da
filosofia chinesa” escrita em 1957, onde Zhang Dainian aponta a falha
teórica de não ter se apoiado solidamente no pensamento marxista: “Há vinte anos,
quando escrevi esse livro, não tinha ainda um conhecimento profundo do
marxismo leninismo, por esse motivo, graves falhas não puderam ser
evitadas”. As falhas citadas situam-se na
interpretação do campo conceitual que se cria na intersecção entre as
noções complexas do pensamento chinês e
as categorias analíticas do pensamento ocidental, pois
esse autor buscou aplicar o citado método dialético (esforço acompanhado
por toda uma geração de historiadores, filósofos e
sociólogos chineses dos últimos 60 anos) e o
método analítico absorvido em suas leituras da filosofia de língua
inglesa, como recurso de traduzir a dimensão filosófico religiosa (para usar
mais uma vez as categorias ocidentais) do povo chinês em
termos em que se possa confrontar China e Ocidente no campo do
pensamento. Haveria, então uma interpretação marxista leninista e outras
não, e para sorte do leitor os adendos pós autocrítica de
Zhang Dainian são separados do texto original permitindo
as múltiplas leituras de seu trabalho. O segundo
autor citado nesse artigo, que também realiza essa aproximação
conceitual do Tao para categorias do pensamento ocidental, é Zhang
Liwen, um igualmente respeitado pesquisador da filosofia chinesa. Nascido
em 1935, é professor das áreas de filosofia e religião
chinesas e diretor do Instituto Confúcio da Universidade Popular da
China. Organizou uma coleção intitulada “As categorias
essenciais da filosofia chinesa” [中国哲学范畴精粹丛书], onde há um
tomo específico para o Tao. No prefácio dessa obra, de 1987, Zhang Liwen
descreve o contexto em que um esforço teórico dessa natureza se
inscreve: Em tempos idos,
muitos grandes pensadores empreenderam uma reflexão histórica
sobre a cultura tradicional chinesa. Olhando para a história chinesa
nesses últimos cem anos vemos a invasão das
nações poderosas e a emergência de toda a sorte de calamidades
em nosso país. Um grupo de homens corajosos e benevolentes,
preocupados com o povo e a nação, não mediram esforços em buscar a
verdade no Ocidente, enquanto as nações do ocidente irromperam
na sociedade chinesa com o uso da força militar e religiosa. Isso
gerou os conflitos entre “pensamento chinês” e “pensamento
ocidental”, “pensamento antigo” e “pensamento moderno”, ou ainda
as noções de “base chinesa e aplicação ocidental”. [中体西用]
ou “ocidentalização completa”. Apesar da discussão ter sido
acirrada, não conseguiu resolver a séria questão de acudir o povo e
fortalecer a China. Os ecos desse debate permanecem até
os dias de hoje. (Zhang L. org 1996, p.I). Como fica claro no
posicionamento desses dois autores, o empreendimento de análise
dos conceitos chineses com categorias do pensamento
filosófico ocidental tem para a China dos séculos XX e XXI
claras conotações político ideológicas, entretanto não é
a intenção desse artigo enfocar tais questões, me restringindo aqui
às contribuições desses autores na aproximação
desses dois pensamentos, e, como ocidental, busco nesses
pensadores chineses interlocutores que estejam nessa mesma
orientação, China Ocidente, mesmo que em sentidos contrários. Considero
esse um movimento fundamental nos tempos atuais, não como mero
exercício de comparação, mas principalmente como um esclarecedor
jogo de espelhos em que se ver refletido no reflexo do outro
descortina os limites do próprio pensamento. Perceber a triunfante
“razão ocidental” em apuros ao lidar com conceitos que teimam em não se
tornar “analisáveis”, mas que, mesmo assim se diferenciam no momento em
que adentram o cenário de suas múltiplas aplicações,
diz muito a respeito das nossas – e
dos autores citados aqui – mais íntimas convicções.
Apresentarei aqui de forma sucinta os oito significados atribuídos historicamente
ao termo Tao, com base na síntese de Zhang Liwen contida no início do livro que
analisa a presença e o desenvolvimento desse conceito na história chinesa,
pontuando com algumas contribuições da estrutura conceitual
proposta por Zhang Dainian. TAO COMO O CAMINHO – 道为道路. O significado primeiro da palavra chinesa “Dao”
道 se relaciona à noção de caminho. Na escrita oracular,
a mais antiga encontrada em sítios arqueológicos e que
eram gravadas em cascos de tartaruga ou ossos de
animais, 6. 甲骨文 datados da Dinastia Shang (1046 AC ao
século XVII), não se encontra tal ideograma, mas um outro – Tu 途
– para indicar “caminho”. A forma primitiva do ideograma “Dao” surge na
fase seguinte do desenvolvimento da escrita, aquela encontrada em
peças de bronze (jinwen 金文) – sinos e
caldeirões rituais – e que datam da dinastia
Zhou (ou Chou, de 1046 e 256 a.C.). O ideograma
“Dao” 道 seria formado por três outros ideogramas:
首 shou,行 xing, 止 zhi. O
primeiro tem uma gama maior de sentidos, podendo ser traduzida
nos seus usos no chinês moderno como: cabeça, líder,
“o que vai à frente”. O segundo tem o significado de “trilhar”, e o
terceiro é: parar, fincar, enraizar, ou por extensão “pé”. Algumas
fontes associam somente as duas primeiras partes na
formação do ideograma “Dao” (“cabeça” e “trilhar”, ou seja, a fusão de
sabedoria e prática), no entanto a junção
desses três sentidos oferece mais subsídios para
compreender o Tao como Caminho. O Shuowen Jiezi 说文解字, o primeiro dicionário etimológico dos
ideogramas chineses, escrito entre 100 e 121, apresenta as
seguintes definições para tais componentes do Tao:
“Shou 首, a realização (meta) da ação (trajeto)”;
“Xing 行, o caminhar do ser humano”; “Zhi 止,
fincar-se, como as plantas que brotam a partir de um local,
por isso zhi é a base (pé)”. A definição do Tao contida nesse dicionário é uma
síntese desses três ideogramas originais: “uma meta
(ou ‘atingir’ uma meta, ou destino, ou ainda ‘realização’) é o
Tao” [ 一达谓之道] (Zhang L. org. 1996, pp. 19 e 20). Portanto, a
primeira característica do Tao como Caminho é ter um sentido, um destino
determinado e é justamente esse caráter de determinação que passou a ser
desenvolvido nos sistemas de pensamento anteriores à unificação
do primeiro Imperador da dinastia Qin 秦 (221 AC
207)) como uma ideia de princípio universal ao qual
todas as coisas estão sujeitas, ou seja, um sentido
inelutável. Essas filosofias pré Qin são as grandes
escolas de pensamento chinês, como Confucionismo, Taoísmo, Moísmo e
o Legismo. O Tao é, portanto, nesse primeiro significado apontado por
Zhang Liwen, um curso trilhado pelos pés humanos e que tem uma
meta ou uma realização definida. Tal realização está para a trajetória
assim como a cabeça está para o resto do corpo: é a sua orientação.
Contudo, antes do surgimento desse significado filosófico para “Caminho”,
o ideograma “Dao” já aparecia em alguns dos clássicos
mais antigos da história chinesa – como “Livro da Poesia”
[诗经] (as partes mais antigas datam de
cerca de 1000 AC), ou no “Livro das Mutações” [易经] (o
Zhou Yi, uma das seções dessa obra, dataria do início
dinastia Zhou, 1046 AC) – com o significado de “caminho” e “curso”,
sem maiores implicações metafísicas, ao menos não
explicitamente como em clássicos e textos filosóficos de
períodos posteriores (Zhang L.org 1996 pp. 19 e 20). Poder-se-ia
contestar o caráter estritamente objetivo deste significado do “Tao como
Caminho” pois esses mesmos clássicos (‘Poesia’ e
‘Mutações’) são a fontes de inspiração das mais sutis
metafísicas. TAO COMO A RAIZ E ORIGEM DE TODAS AS COISAS. 道为万物之本体或本原. É tributada ao sábio Lao Tsé 老子 (‘Laozi’
na transliteração oficial) a nomeação do princípio que rege o Universo.
Nada mais estaria acima desse princípio, nenhuma outra manifestação
poderia ser concebida fora dele, e de tão intangível, ele não poderia ter
um nome. Explicá-lo seria não entende-lo, busca-lo seria perde-lo.
Entretanto, lá está ele “isolado!”, “eclipsado!”, “ofuscante!”,
“escondido!” (Tao Te King – Dao de jing, cap. 21). 8 . “Eu não sei
seu nome; dou-lhe a grafia: 道 (Dao)” (cap.
25). Essa foi uma ‘nomeação’ tão fundamental para o pensamento chinês que surge
a partir dela uma longa tradição que a carrega: o Taoísmo. Contudo, tal
nomeação se apoia em determinados conceitos que a tornam mais
complexa – se é que isso é possível – que um nome acidental
para uma dimensão intangível. Lao Tsé divide em sua definição do Tao
duas questões fundamentais: o que pode ser dito ou descrito e o
que é permanente, constante ou eterno. A eternidade aqui se relaciona ao
ordinário, ao simples, ao que está tão constantemente presente que sequer
percebe-se sua existência, diferentemente das descrições humanas, do
domínio da palavra. As duas frases iniciais do Tao Te King
são categóricas nesse sentido: “O Tao que pode ser manifesto
(explicado), não é o Tao eterno. O Nome que pode ser nomeado, não é o nome
eterno” (Cap. 1). Portanto, a metafísica aqui é o que está além da palavra, o
que remete a uma intensa discussão da época em que a relação entre os
nomes e a realidade lançava os pensadores em
todas as direções possíveis desse dilema. Aqui se expressa
a visão que o nome não alcança a realidade última, sequer alcança a
realidade última do próprio nome enquanto tal. Uma observação em relação
à língua chinesa se faz importante para uma maior aproximação do campo onde
esses conceitos estão postos: não há, principalmente no
chinês clássico, distinção entre verbo, substantivo ou adjetivo na
própria palavra, isto é, não há ao nível da forma –
morfológico – qualquer flexão que indique sua classe, sendo
essa entendida, portanto, como uma função e ficando ao encargo do contexto a
sua interpretação. Um exemplo é o ideograma traduzido como “meta”, “destino”,
na seção anterior: da 达. Em determinados
contextos ele pode assumir o sentido de “atingir”, “alcançar”,
ou seja, a ação de chegar ao objetivo. Em outros, é o “alcançado”.
Ou pode ainda assumir o caráter do que foi realizado, sendo então um
distintivo de uma virtude “realizada”, por exemplo. No pensamento, tal
característica da língua chinesa torna esse dilema “nominalista realista”
diferente de um esforço de descrever ou estabelecer uma definição da
realidade, pois como a proposição chinesa “nome realidade” coloca de
maneira clara, se trata aqui de encontrar o nome verdadeiro e, portanto,
“ouvir” a realidade das coisas. Tais nomes sintetizam dentro de
si as dimensões de substância, de atributos e de ação e, sendo
indivisíveis, constituem o que, em nosso sistema de pensamento, reconheceríamos
como o “Ser”. Isso falaria da raiz, da estrutura primeira (ou última)
das coisas, conceitos esses que são uma tradução aproximada da
expressão chinesa benti 本体 contida no título dessa seção. No jogo de espelhos das
traduções do pensamento da China para o Ocidente e vice-versa,
encontramos um interessante reflexo, pois, quando se buscou uma
tradução do termo “ontologia” para o chinês, escolheu-se justamente essa
expressão benti para o “óntos” grego. É possível que os
taoístas não se reconheçam nesse espelho “ontológico”
ou os aristotélicos nesse espelho “bentilógico”. Zhang Dainian
conceitua essa dimensão da estrutura radical
das coisas através da ideia de leis que as regem. Dada a
multiplicidade de fenômenos, algo que o pensamento chinês procurou regular
em suas cosmovisões, haveria então uma multiplicidade de
leis para regê-las. A questão seria: qual é a Lei que rege essa
multiplicidade de leis? Esse seria o caráter do Tao de Lao Tsé, ou seja,
é um princípio unificador que não poderia ser abordado no nível da
diversidade da palavra e das nomeações humanas (Zhang D. 1997, p.20). O
surgimento de algo depende de uma lei, sem a qual tal existência seria
impossível. Ora, as leis que regem cada coisa, não são independentes
umas das outras. Todas essas leis se remetem a uma unidade, isto
é, estão unidas em uma lei mais radical. As leis, portanto, seguem
uma grande lei, última e Universal, e sendo partilhada por todas as
coisas, é única e não dual, eterna e imutável, e poderia ser chamada de: Lei
Geral. TAO COMO UM. 道为一. Em
concepções desenvolvidas nos períodos posteriores à
“nomeação” do Tao por Lao Tsé os pensadores chineses
iniciaram um longo percurso de descrição do que seria esse nomeado inominável.
A definição do “Tao como Um” surge em dois tratados
influenciados pelo pensamento de Lao Tsé no início da dinastia Han (206
AC 220): Lüshi Chungqiu 吕氏春秋 e
Huainanwang shu 淮南王书, e que tomaram como base uma passagem do Tao Te King:
“O TAO GERA O UM, O UM GERA O DOIS, O DOIS GERA O TRÊS, O TRÊS GERA TODAS
AS COISAS.” (cap. 42). Em ambos os tratados o Tao passa a ser
definido como Tai yi [太一], o “SUPREMO UM”, um estado
indiferenciado anterior ao surgimento de todas as coisas. Esse ponto
inicial, o caos original, seria o Um de onde são gerados o Céu
e a Terra (o Dois), e então os três princípios de YIN 阴,
YANG 阳, e CHONGQI 盅[冲]气
(o sopro circulante, o princípio dinâmico), e então
todas as coisas (Zhang D. 1997 p. 21). Tal enfoque
prioriza a visão da gênese do Universo, que, segundo Zhang Dainian, não seria
fiel à colocação original de Lao Tsé em termos da ordem dessa
criação: No Lüshi Chunqiu o “Supremo” e o “Um” foram unidos
em um nome próprio, sendo uma outra denominação para o Tao: “O Tao é
suma essência, não tem forma, não pode ser nomeado, se
forçado a nomeá-lo o chamaria de “SUPREMO UM’”. Em Huainanwang
shu, o “UM” é ainda mais claramente utilizado como um pronome para
o Tao: “O UM é a raiz das dez mil coisas, não é outro senão
o Tao”, o que não está em harmonia com colocação de Lao Tsé:
“O Tao gera o Um”. (idem p. 22, grifo meu) Um
dos tratados citados, o Huainanwang shu, altera inclusive a frase
original de Lao Tsé ao dizer que: “O Tao inicia com o Um” (Zhang L. org
1996, p.2). Tal questão aponta para um dos mais
pungentes dilemas do pensamento chinês: a raiz de todas
as coisas é existente ou não existente, ou seja, vazia.
É curioso que em Lao Tsé essa questão é posta em termos de
não contradição, pois o Tao está além da existência e da não existência,
sendo ambas apenas faces dessa raiz primeira, inominada e
indefinível. Apesar disso o fato de se estabelecer uma hierarquia metafísica
aparentemente abriu espaço para pensar o que é isso que está além da
existência e da não existência. Uma das opções filosóficas na
história da China foi afirmar uma existência não material e impossível de ser
percebida pelo sentidos, um caldo original de onde todas as
coisas emergiram a uma existência definida, chamado: “SUPREMO UM”.
Referências bibliográficas: LAO TSÉ. Os escritos do Curso e
sua Virtude. São Paulo: Mandruvá, 1997. ZHANG, Dainian. 中国哲学大纲 Os
tópicos da Filosofia Chinesa. Beijing: Academia Chinesa de
Ciências Sociais, 1997. ZHANG, Liwen. 道 Dao. Beijing:
Universidade Popular da China, 1996. Faculdade de Educação da Universidade de
São Paulo – SP – Brasil.
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