Espiritismo. Texto de Alan
Kardec (1804-1869). O RETORNO DA VIDA CORPORAL. Capítulo VII. 1. Prelúdio do retorno. 2. União da Alma e do
Corpo. Aborto. 3. Faculdades Morais e Intelectuais do Homem. 4. Influência do Organismo.
5. Idiotia, Loucura. 6. A Infância. 7. Simpatias e Antipatias Terrenas. 8.
Esquecimento do Passado. PRELÚDIO DO RETORNO. Os Espíritos sabem em que época
reencarnarão? “Eles a pressentem, como o cego percebe o fogo do qual se
aproxima. Eles sabem que devem retomar um corpo, como sabeis que deveis morrer
um dia, mas sem poder precisar quando isso ocorrerá.” A reencarnação é, então,
uma necessidade da vida espiritual, como a morte é uma necessidade da vida
corporal? “Certamente; é assim mesmo.” Todos os Espíritos se preocupam com a
sua reencarnação? “Há os que de modo algum pensam nisso, que nem mesmo a
compreendem; isso depende de sua natureza mais ou menos adiantada. Para alguns,
a incerteza em que se encontram, sobre o seu futuro, constitui uma punição.” O
Espírito pode apressar ou retardar o momento de sua reencarnação? “Pode
apressá-lo, atraindo-o com um intenso desejo; pode ainda afastá-lo, se recuar
diante da prova, pois, entre os Espíritos, há também covardes e indiferentes.
Mas não o faz impunemente; sofre por isso, como aquele que não aceita um
remédio salutar que pode curá-lo.” Se um Espírito, se considerasse bastante
feliz, em uma condição mediana, entre os Espíritos errantes e não tivesse a
ambição de se elevar, poderia prolongar esse estado indefinidamente?
“Indefinidamente, não; o progresso é uma necessidade que o Espírito, cedo ou
tarde, experimenta; todos devem elevar-se, esse é o destino de todos.” A união
da alma a este ou àquele corpo está predestinada, ou só no último momento é que
a escolha é feita? “O Espírito é sempre designado com antecedência. Escolhendo
a prova que quer experimentar, pede para reencarnar; ora, Deus, que tudo sabe e
tudo vê, soube e viu, antecipadamente, que tal alma se uniria a tal corpo.”
Cabe ao Espírito a escolha do corpo no qual deva encarnar, ou somente a do
gênero de vida que deva servir-lhe de prova? “Ele pode também escolher o corpo,
pois as imperfeições deste corpo são, para ele, provas que auxiliarão no seu
progresso, se ele vencer os obstáculos que, então, encontre; a escolha, porém,
não depende sempre dele; ele pode pedir.” O Espírito poderia, no último
momento, recusar-se a assumir o corpo escolhido por ele? “Se recusasse,
sofreria, em consequência, muito mais do que aquele que não tivesse tentado
prova alguma.” Poderia acontecer que uma criança que tivesse que nascer, não
encontrasse Espírito que nela quisesse encarnar? “Deus a isso proviria. A
criança, quando deve nascer viável, está sempre predestinada a ter uma alma;
nada foi criado sem um desígnio.” A união do Espírito com determinado corpo
pode ser imposta por Deus? “Ela pode ser imposta, assim como as diferentes
provas, principalmente, quando o Espírito ainda não está apto a fazer uma
escolha com conhecimento de causa. Como expiação, o Espírito pode ser
constrangido a se unir ao corpo de tal criança que, pelo seu nascimento e a
posição que ocupará no mundo, poderá tornar-se, para ele, um motivo de
castigo.” Se acontecesse de vários Espíritos se apresentarem para um mesmo
corpo que devesse nascer, o que é que decidiria entre eles? “Vários Espíritos
podem pedi-lo; é Deus quem julga, em semelhante caso, aquele que é mais capaz
de desempenhar a missão que à criança está destinada; porém, como já disse, o
Espírito é designado, antes do instante em que deva unir-se ao corpo.” O
momento da encarnação é acompanhado de uma perturbação semelhante àquela que se
dá, quando da desencarnação? “Muito maior e, sobretudo, mais longa. Com a
morte, o Espírito sai da escravidão; com o nascimento, entra para ela.” O
instante em que um Espírito deve encarnar é, para ele, um instante solene?
Executa esse ato como uma coisa grave e importante para ele? “Ele é como um
viajante que embarca para uma travessia perigosa e não sabe se encontrará a
morte, nas ondas que afronta.” O viajante que embarca, sabe a que perigos se
expõe, mas não sabe se naufragará; acontece o mesmo com o Espírito: ele conhece
o gênero das provas às quais se submete, mas não sabe se sucumbirá. Assim como
a morte do corpo é uma espécie de renascimento para o Espírito, a reencarnação
é, para este, uma espécie de morte, ou melhor, de exílio e de clausura. Ele
deixa o mundo dos Espíritos pelo mundo corporal, como o homem deixa o mundo
corporal pelo mundo dos Espíritos. O Espírito sabe que reencarnará, como o
homem sabe que morrerá; porém, como este, disso só tem consciência no último
momento, quando chega o tempo apropriado; então, nesse instante supremo, a
perturbação se apodera dele, como no homem que está em agonia, e essa
perturbação persiste até que a nova existência esteja nitidamente constituída.
A proximidade da reencarnação representa uma espécie de agonia, para o
Espírito. A incerteza em que o Espírito se encontra, quanto à eventualidade do
êxito nas provas que vai suportar na vida, é, para ele, uma causa de ansiedade
antes da sua encarnação? “Uma ansiedade bem grande, visto que as provas de sua
existência o retardarão ou o farão progredir, conforme ele as tiver bem ou mal
suportado.” No momento de sua reencarnação, o Espírito é acompanhado por outros
Espíritos seus amigos, que vão assistir à sua partida do mundo espiritual, como
vão recebê-lo, quando para lá retorna? “Isto depende da esfera em que o
Espírito habita. Se está nas esferas onde reina a afeição, os Espíritos que o
amam acompanham-no, até o último momento, encorajando-o e, frequentemente, até
o seguem durante a vida.” Os Espíritos amigos que nos seguem durante a vida
seriam aqueles que vemos em sonho, que nos demonstram afeição e que a nós se
apresentam, sob traços desconhecidos? “Muito frequentemente são eles que vêm
visitar-vos, como ides ver um prisioneiro encarcerado.” UNIÃO DA ALMA E DO
CORPO. Em que momento a alma se une ao corpo? “A união começa na concepção, mas
só é completa no momento do nascimento. Desde o instante da concepção, o
Espírito designado para habitar tal corpo a este se liga por um laço fluídico,
que vai se apertando cada vez mais, até o instante em que a criança vem à luz.
O grito que, então, a criança solta, anuncia que ela faz parte do número dos
vivos e servidores de Deus.” A união entre o Espírito e o corpo é definitiva,
desde o momento da concepção? Durante este primeiro período, o Espírito poderia
renunciar a habitar o corpo designado? “A união é definitiva, no sentido de que
um outro Espírito não poderia substituir o que está designado para aquele
corpo; porém, como os laços que a ele o prendem são muito fracos, facilmente se
rompem e podem romper-se pela vontade do Espírito, que recua diante da prova
que escolheu; neste caso, porém, a criança não sobrevive.” O que acontece com o
Espírito, se o corpo que escolheu morre antes de nascer? “Ele escolhe um
outro.” Qual pode ser a utilidade dessas mortes prematuras? “São as
imperfeições da matéria que, mais frequentemente, ocasionam essas mortes.” Que
utilidade pode ter, para um Espírito, sua encarnação num corpo que morre poucos
dias depois do seu nascimento? “O ser não tem a consciência de sua existência
bastante desenvolvida. A importância da morte é quase nula; é, frequentemente,
como o dissemos, uma prova para os pais.” O Espírito sabe, antecipadamente, que
o corpo que escolheu não tem possibilidade de viver? “Algumas vezes ele o sabe;
porém, se ele o escolhe por este motivo, significa que está recuando diante da
prova.” Quando uma encarnação está perdida para o Espírito, por uma razão
qualquer, ela é suprida, imediatamente, por uma outra existência? “Nem sempre,
imediatamente; o Espírito precisa de tempo para escolher novamente, a menos que
a reencarnação imediata provenha de uma determinação anterior.” O Espírito, uma
vez unido ao corpo da criança e quando não há mais como voltar atrás, lamenta,
algumas vezes, a escolha que fez? “Queres perguntar se, como homem, ele se
lamenta da vida que tem? Se a desejaria de outra maneira? Sim. Se ele lamenta a
escolha que fez? Não; ele não sabe que a escolheu. O Espírito, uma vez
encarnado, não pode lastimar uma escolha de que não tem consciência; porém, ele
pode achar a carga muito pesada e considerá-la acima de suas forças, é, então,
que recorre ao suicídio.” No intervalo entre a concepção e o nascimento, o
Espírito goza de todas as suas faculdades? “Mais ou menos, conforme a época,
pois ele ainda não está encarnado, porém, ligado. Desde o instante da
concepção, a perturbação começa a tomar conta do Espírito, advertido por ela,
de que chegou o momento de iniciar uma nova existência; essa perturbação vai
aumentando até o nascimento; nesse intervalo, seu estado é quase o de um
Espírito encarnado, durante o sono do corpo; à medida que o momento do
nascimento se aproxima, suas ideias se apagam, assim como a lembrança do passado,
do qual não tem mais consciência, como homem, uma vez que entra na vida; essa
lembrança, porém, retorna-lhe, pouco a pouco, à memória, no seu estado de
Espírito.” No momento do nascimento, o Espírito recobra, imediatamente, a
plenitude de suas faculdades? “Não, elas se desenvolvem, gradualmente, com os
órgãos. É uma nova existência para ele; é preciso que aprenda a se servir dos
seus instrumentos; as ideias lhe voltam, pouco a pouco, como no homem que
desperta do sono, e se encontra numa posição diferente da que ocupava na
véspera.” A união do Espírito ao corpo, não estando completa e defi nitivamente
consumada senão após o nascimento, pode-se considerar que o feto tenha uma
alma? “O Espírito que deve animá-lo existe, de certa forma, fora dele; ele não
tem, portanto, propriamente falando, uma alma, visto que a encarnação está
apenas em via de operar-se; acha-se, porém, ligado àquela que ele deve
possuir.” 354. Como explicar a vida intrauterina? “É a da planta que vegeta. A
criança vive vida animal. O homem possui em si a vida animal e a vida vegetal,
que ele completa, pelo nascimento, com a vida espiritual.” Há, como o indica a
Ciência, crianças que, desde o seio materno, não são viáveis; com que objetivo
isto acontece? “Isto se dá frequentemente; Deus o permite como prova, quer para
os pais, quer para o Espírito designado para assumir o seu lugar.” Há
natimortos que não tenham sido destinados à encarnação de um Espírito? “Sim, há
aqueles que nunca tiveram um Espírito destinado para seus corpos: para eles, nada
devia se cumprir. É, então, apenas pelos pais que essa criança veio.” Um ser
dessa natureza pode vir a nascer? “Sim, algumas vezes; mas, então, não vive.”
Toda criança que sobrevive após o seu nascimento tem, portanto,
necessariamente, um Espírito nela encarnado? “O que seria, sem isso? Não seria
um ser humano.” Quais são, para o Espírito, as consequências do aborto? “É uma
existência nula que terá que recomeçar.” Constitui um crime o aborto
voluntário, qualquer que seja a época da concepção? “Há sempre crime, quando
transgredis a lei de Deus. A mãe, ou qualquer outra pessoa, cometerá sempre um
crime, tirando a vida de uma criança antes do seu nascimento, pois impede a
alma de experimentar as provas de que o corpo devia ser o instrumento.” No caso
em que a vida da mãe estivesse em perigo, por causa do nascimento da criança,
haveria crime em sacrificar a criança para salvar a mãe? “É preferível
sacrificar o ser que não existe ao ser que existe.” Será racional ter para com
o feto as mesmas atenções que se dispensam ao corpo de uma criança que tivesse
vivido? “Em tudo isto, vede a vontade de Deus e sua obra; não trateis,
portanto, levianamente, coisas que deveis respeitar. Por que não respeitar as
obras da criação, que estão incompletas, algumas vezes, pela vontade do
Criador? Isto faz parte dos seus desígnios que a ninguém cabe julgar.”
FACULDADES MORAIS E INTELECTUAIS DO HOMEM. Qual a origem, no homem, de suas
qualidades morais, boas ou más? “São as do Espírito que nele está encarnado;
quanto mais puro é esse Espírito, mais propenso ao bem é o homem.” Parece daí
resultar que o homem de bem é a encarnação de um bom Espírito e o homem
vicioso, a de um Espírito mau? “Sim; mas diz, de preferência, que é um Espírito
imperfeito, do contrário, poder-se-ia acreditar na existência de Espíritos
sempre maus, a que chamais demônios.” Qual o caráter dos indivíduos nos quais
encarnam Espíritos travessos e levianos? “São estabanados, espertos e, algumas
vezes, seres maléficos.” Os Espíritos possuem paixões que não pertencem à Humanidade?
“Não; do contrário, eles há teriam comunicado.” É o mesmo Espírito que dá ao
homem as qualidades morais e as da inteligência? “Certamente, é o mesmo, e isso
em razão do grau de adiantamento a que chegou. O homem não tem em si dois
Espíritos.” Por que homens muito inteligentes, o que denota neles um Espírito
superior, são, algumas vezes, ao mesmo tempo, profundamente viciosos? “É que o
Espírito encarnado não é bastante puro e o homem cede à infl uência de outros
Espíritos piores. O Espírito progride, através de uma insensível marcha
ascendente, mas o progresso não se efetua, simultaneamente, em todos os
sentidos; num período, ele pode progredir em ciência, num outro, em
moralidade.” O que se deve pensar da opinião, segundo a qual as diferentes faculdades
intelectuais e morais do homem corresponderiam à quantidade de Espíritos
diferentes, nele encarnados, e possuindo, cada um, uma aptidão especial?
“Refletindo, reconhece-se que ela é absurda. O Espírito deve possuir todas as
aptidões; para poder progredir, é lhe necessária uma vontade única; se o homem
fosse um amálgama (mistura, fusão) de Espíritos, essa vontade não existiria e
não haveria, para ele, a individualidade, visto que, com a sua morte, todos
aqueles Espíritos seriam como um bando de pássaros que escapassem da gaiola. O
homem, frequentemente, se queixa de não compreender certas coisas e é curioso
ver como ele multiplica as dificuldades, quando tem ao seu alcance uma
explicação absolutamente simples e natural. Ainda, aqui, se toma o efeito pela
causa; faz-se com o homem o que os pagãos faziam com Deus. Acreditavam em
tantos deuses quantos eram os fenômenos no Universo; entre eles, porém, pessoas
sensatas viam, nesses fenômenos, apenas efeitos que tinham como causa um Deus
único.” O mundo físico e o mundo moral nos oferecem, sobre esse tema, numerosos
pontos de comparação. Acreditaram na existência múltipla da matéria, enquanto
se detiveram na aparência dos fenômenos; atualmente, compreende-se que esses
fenômenos, tão variados, podem muito bem ser apenas modificações de uma matéria
elementar única. As diferentes faculdades são manifestações de uma mesma causa,
que é a alma, ou do Espírito encarnado, e não de várias almas, assim como os
diferentes sons do órgão são o produto de uma mesma espécie de ar e, não, de
tantas espécies de ar quantos sons existam. Resultaria desse sistema que,
quando um homem perdesse ou adquirisse algumas aptidões, alguns pendores, seria
o caso da ida e vinda de tantos Espíritos, o que dele faria um ser múltiplo,
sem individualidade e, por conseguinte, sem responsabilidade. Além disso, ele é
contestado pelos exemplos tão numerosos de manifestações, através das quais os
Espíritos provam sua personalidade e sua identidade. INFLUÊNCIA DO ORGANISMO. O
Espírito, unindo-se ao corpo, identifica-se com a matéria? “A matéria é apenas
o envoltório do Espírito, como a roupa é o envoltório do corpo. O Espírito,
unindo-se ao corpo, conserva os atributos da natureza espiritual.” Após sua
união com o corpo, as faculdades do Espírito são exercidas com toda a
liberdade? “O exercício das faculdades depende dos órgãos que lhes servem de
instrumento; elas são enfraquecidas pela grosseria da matéria.” Assim sendo, o
envoltório material seria um obstáculo à livre manifestação das faculdades do Espírito,
como um vidro opaco se opõe à livre emissão da luz? “Sim, e muito opaco.”
Pode-se ainda comparar a ação da matéria grosseira do corpo sobre o Espírito de
um lodaçal, que tira a liberdade dos movimentos do corpo que nele se encontra
mergulhado. O livre exercício das faculdades da alma está subordinado ao
desenvolvimento dos órgãos? “Os órgãos são os instrumentos da manifestação das
faculdades da alma; esta manifestação está subordinada ao desenvolvimento e ao
grau de perfeição desses mesmos órgãos, como a excelência de um trabalho, à
excelência da ferramenta.” Da influência dos órgãos pode-se deduzir que haja
uma relação entre o desenvolvimento dos órgãos cerebrais e o das faculdades
morais e intelectuais? “Não confundais o efeito com a causa. O Espírito sempre
dispõe de faculdades que lhe são próprias; ora, não são os órgãos que dão as
faculdades, mas as faculdades que impulsionam o desenvolvimento dos órgãos.”
Assim sendo, a diversidade das aptidões, no homem, deve-se unicamente ao estado
do Espírito? “Unicamente não é exatamente o termo; aí está o princípio, nas
qualidades do Espírito, que pode ser mais ou menos adiantado; porém, é preciso
levar em conta a influência da matéria que entrava, mais ou menos, o exercício
de suas faculdades.” O Espírito, encarnando, traz certas predisposições e, se
se admite, para cada uma dessas aptidões, um órgão correspondente no cérebro, o
desenvolvimento desses órgãos será um efeito e não uma causa. Se as faculdades
tivessem seu princípio nos órgãos, o homem seria uma máquina sem livre-arbítrio
e sem responsabilidade pelos seus atos. Seria preciso admitir que os maiores
gênios, sábios, poetas, artistas, só fossem assim, porque o acaso lhes tivesse
dado órgãos especiais. Donde se conclui que, sem esses órgãos, não teriam sido
gênios e que o último dos imbecis poderia ter sido um Isaac Newton (1643-1727),
um Públio Virgílio (70 AC 19) ou um Rafael Sanzio (1483-1520), se tivesse sido
provido de certos órgãos; suposição mais absurda ainda, quando a aplicamos às
qualidades morais. Assim, segundo este sistema, São Vicente de Paulo, dotado
pela Natureza desse ou daquele órgão, teria podido ser um celerado, e ao maior
celerado bastaria apenas um órgão para ser um Vicente de Paulo. Admiti, ao
contrário, que os órgãos especiais, se é que existem, são consecutivos, que se
desenvolvem pelo exercício da faculdade, como os músculos pelo movimento, e
nada tereis de irracional. Façamos uma comparação trivial, à força de ser
verdadeira. Por alguns sinais fi sionômicos, reconheceis um homem dado à
bebida; serão esses sinais que o tornam bêbedo, ou a embriaguez é que dá origem
a esses sinais? Pode-se dizer que os órgãos recebem a marca das faculdades.
IDIOTI, LOUCURA. A opinião, segundo a qual os cretinos e os idiotas teriam uma
alma de natureza inferior, tem fundamento? “Não, eles têm uma alma humana,
frequentemente, mais inteligente do que imaginais, que sofre pela insuficiência
dos meios de que dispõe para se comunicar, como o mudo sofre, por não poder
falar.” Qual é o objetivo da Providência criando seres desgraçados, como os
cretinos e os idiotas? “São Espíritos em punição os que habitam corpos de
idiotas. Esses Espíritos sofrem pelo constrangimento que experimentam e pela
impotência em que se encontram, para se manifestar através de órgãos não
desenvolvidos ou destrambelhados.” Então, não é exato dizer que os órgãos não
têm influência sobre as faculdades? “Nunca dissemos que os órgãos não têm
influência; eles têm uma muito grande sobre a manifestação das faculdades, mas
não dão as faculdades; aí está a diferença. Um bom músico, com um instrumento
ruim, não produzirá boa música, e isso não o impedirá de continuar sendo um bom
músico.” É preciso distinguir o estado normal do estado patológico. No estado
normal, o moral supera o obstáculo que a matéria lhe impõe; mas há casos em que
a matéria oferece uma resistência tal, que as manifestações são entravadas ou
desnaturadas, como na idiotia e na loucura; são casos patológicos e, nesse
estado em que a alma não goza de toda a liberdade, a própria lei humana a
isenta da responsabilidade de seus atos. Qual poderia ser o mérito da
existência para os seres que, como os idiotas e os cretinos, não podendo fazer
o bem nem o mal, acham-se impedidos de progredir? “É uma expiação imposta pelo
abuso que fizeram de certas faculdades; é uma parada temporária.” a) Um corpo
de idiota pode, então, conter um Espírito que tenha animado um homem de gênio,
numa precedente existência? “Sim; o gênio se torna, às vezes, um flagelo quando
dele se abusa.” A superioridade moral nem sempre é proporcional à superioridade
intelectual e os maiores gênios podem ter muito que expiar; daí,
frequentemente, lhes resulta uma existência inferior à que já tiveram e uma
causa de sofrimentos; as dificuldades que o Espírito experimenta nas suas
manifestações são, para ele, como as correntes que comprimem os movimentos de
um homem vigoroso. Pode-se dizer que o cretino e o idiota são estropiados do
cérebro, como o manco o é das pernas e o cego, dos olhos. O idiota, no estado
de Espírito, tem consciência de seu estado mental? “Sim, muito frequentemente;
ele compreende que as correntes que dificultam seu voo são uma prova e uma
expiação.” Qual é a situação do Espírito, na loucura? “O Espírito, no estado de
liberdade, recebe diretamente suas impressões e exerce, diretamente, sua ação
sobre a matéria; encarnado, porém, ele se encontra em condições inteiramente
diferentes e na obrigação de só fazê-lo com o auxílio de órgãos especiais. Se
uma parte ou o conjunto desses órgãos fosse alterado, sua ação ou suas
impressões, no que concerne a esses órgãos, seriam interrompidas. Se perde os
olhos, torna-se cego; se é a audição, torna-se surdo, etc. Imagina, agora, que
o órgão que preside aos efeitos da inteligência e da vontade esteja parcial ou
inteiramente atacado ou modificado e será fácil compreenderes que o Espírito,
só tendo a seu serviço órgãos incompletos ou deformados, deve experimentar uma
perturbação de que ele, por si mesmo e no seu foro íntimo, tem perfeita
consciência, mas não é capaz de deter-lhe o curso.” Então, é sempre o corpo e
não o Espírito que está desorganizado? “Sim; mas é preciso não perder de vista
que, assim como o Espírito age sobre a matéria, esta reage sobre ele, numa
certa medida, e que o Espírito pode se encontrar, momentaneamente,
impressionado pela alteração dos órgãos através dos quais ele se manifesta e
recebe suas impressões. Pode acontecer que com o tempo, caso se prolongue a
loucura, a repetição dos mesmos atos acabe por ter, sobre o Espírito, uma
influência de que ele só se libertará, após sua completa liberação de qualquer
impressão material.” Donde se origina a ideia de que a loucura leva, algumas
vezes, ao suicídio? “O Espírito sofre pelo constrangimento que experimenta e
pela impotência em que está de manifestar-se livremente, é por isso que
procura, na morte, um meio de quebrar seus elos.” O Espírito do alienado se
ressente, após a morte, da desorganização de suas faculdades? “Pode
ressentir-se, durante algum tempo, após a morte, até que esteja completamente
desligado da matéria, como o homem que desperta se ressente, por algum tempo,
da perturbação em que o sono o mergulhou.” Como a alteração do cérebro pode
reagir sobre o Espírito, depois da morte? “É uma recordação; um peso oprime o
Espírito e, como ele não teve a compreensão de tudo o que se passou durante a
sua loucura, sempre lhe é necessário um certo tempo, para pôr-se a par de tudo;
é por isso que, quanto mais durar a loucura durante a vida, mais tempo durará a
dificuldade, o constrangimento, após a morte. O Espírito liberto do corpo se
ressente, por algum tempo, da impressão dos seus vínculos.” A INFÂNCIA. O
Espírito que anima o corpo de uma criança é tão desenvolvido quanto o de um
adulto? “Pode sê-lo mais ainda, se mais tiver progredido; são somente os órgãos
imperfeitos que o impedem de se manifestar. Ele age de acordo com o instrumento
com o auxílio do qual pode manifestar-se.” Na criança pequenina, excetuando o
obstáculo que a imperfeição dos órgãos opõe à sua livre manifestação, o
Espírito pensa como uma criança ou como um adulto? “Quando ele é criança, é
natural que os órgãos da inteligência, não estando desenvolvidos, não lhe
possam dar toda a intuição de um adulto; ele tem, efetivamente, a inteligência
muito limitada, aguardando que a idade amadureça sua razão. A perturbação que
acompanha a encarnação não cessa subitamente, no momento do nascimento; ela só
gradualmente se dissipa, com o desenvolvimento dos órgãos.” Uma observação vem
apoiar esta resposta: é a de que os sonhos, na criança, não têm o mesmo caráter
dos de um adulto; o objeto deles é, quase sempre, pueril, o que é um indício da
natureza das preocupações do Espírito. Com a morte da criança, o Espírito
retoma imediatamente seu vigor anterior? “Ele deve fazê-lo, já que está
desembaraçado de seu envoltório carnal; todavia, só retoma sua lucidez
anterior, quando a separação se completa, isto é, quando não mais existe elo
algum, entre o Espírito e o corpo.” O Espírito encarnado sofre, durante a
infância, pelo constrangimento que lhe impõe a imperfeição de seus órgãos?
“Não; esse estado é uma necessidade; ele está na Natureza e de acordo com os
objetivos da Providência; é um tempo de repouso para o Espírito.” Qual é, para
o Espírito, a utilidade de passar pelo estado de infância? “O Espírito,
encarnando para se aperfeiçoar, é mais sensível, durante esse tempo, às
impressões que recebe e que podem ajudar no seu aperfeiçoamento, para o qual
devem contribuir aqueles que estão encarregados de sua educação.” Por que a
primeira manifestação da criança é o choro? “Para despertar o interesse da mãe
e suscitar os cuidados que lhe são necessários. Não compreendes que, se ela só
tivesse manifestações de alegria, enquanto ainda não soubesse falar, pouco se
inquietariam com o de que ela necessitasse? Admirai, em tudo, a sabedoria da
Providência.” De onde se origina a mudança que se opera no caráter, numa certa
idade e, particularmente, ao sair da adolescência? É o Espírito que se
modifica? “É o Espírito que retoma sua natureza e se mostra como era. Não
conheceis o segredo que escondem as crianças na sua inocência; não sabeis o que
são, nem o que foram, nem o que serão; e, no entanto, vós as amais, vós as
acariciais como se fossem parte de vós mesmos, de tal forma que o amor de uma
mãe pelos seus filhos é considerado como o maior amor que um ser possa ter por
um outro ser. De onde se origina essa meiga afeição, essa terna benevolência
que os próprios estranhos sentem por uma criança? Vós o sabeis? Não; é isto que
vou vos explicar. As crianças são os seres que Deus envia a novas existências;
e para que não possam acusá-lo de uma severidade muito grande, ele lhes dá
todas as aparências da inocência; mesmo que se trate de uma criança de natureza
má, cobrem-se suas más ações com a inconsciência de seus atos. Essa inocência
não representa uma superioridade real sobre o que eram antes; não, é a imagem
do que deveriam ser e, se não o são, é apenas sobre elas que recai o tormento.
Mas não foi apenas por elas que Deus lhes deu esse aspecto; foi também e,
sobretudo, pelos seus pais, de cujo amor a fraqueza delas necessita. Esse amor
seria singularmente enfraquecido, diante de um caráter áspero e intratável, ao
passo que, julgando seus filhos bons e dóceis, eles lhes dão toda a sua afeição
e os cercam dos mais delicados cuidados. Porém, quando os filhos não têm mais
necessidade dessa proteção, dessa assistência que lhes foi dada durante quinze
a vinte anos, seu caráter real e individual reaparece em toda sua nudez:
permanece bom, se era fundamentalmente bom; mas, matiza-se, sempre, com as
nuanças que estavam escondidas pela primeira infância. Vedes que os caminhos de
Deus são sempre os melhores e, quando se tem o coração puro, é fácil apreender
a explicação. Com efeito, pensai que o Espírito das crianças que nascem entre
vós pode vir de um mundo onde tenha adquirido hábitos inteiramente diferentes;
como quereríeis que fosse, no vosso meio, esse novo ser que vem com paixões bem
diversas das que possuís, com inclinações e gostos inteiramente opostos aos
vossos; como quereríeis que ele se incorporasse às vossas fileiras senão como
Deus o quis, isto é, pela peneira da infância? Nela vêm confundir-se todos os
pensamentos, todos os caracteres, todas as variedades de seres gerados por essa
infinidade de mundos, nos quais se desenvolvem as criaturas. E vós mesmos, ao
morrerdes, vos encontrareis numa espécie de infância, entre novos irmãos; e, na
vossa nova existência extraterrena, ignorareis os hábitos, os costumes, as
relações desse mundo novo para vós; manejareis com dificuldade uma língua que não
estareis habituados a falar e mais viva do que, hoje, é o vosso pensamento. A
infância tem ainda outra utilidade: os Espíritos só entram na vida corporal
para se aperfeiçoar, para se melhorar; a fraqueza da pouca idade os torna
flexíveis, acessíveis aos conselhos da experiência e dos que devem fazê-los
progredir; é, então, que se pode reformar lhes o caráter e reprimir seus maus
pendores; esse é o dever que Deus confiou aos seus pais, missão sagrada pela
qual terão que responder. É assim que a infância é não apenas útil, necessária,
indispensável, mas também a consequência natural das leis que Deus estabeleceu
e que regem o Universo.” SIMPATIAS E ANTIPATIAS TERRENAS. Dois seres que se
conheceram e se amaram podem se reencontrar numa outra existência corporal e se
reconhecer? “Reconhecer-se, não; mas, serem atraídos um para o outro, sim; e,
frequentemente, ligações íntimas, fundadas numa afeição sincera, não possuem
outra causa. Dois seres se aproximam um do outro, por circunstâncias
aparentemente fortuitas, mas que decorrem da atração de dois Espíritos que se
buscam, em meio à multidão.” Não lhes seria mais agradável reconhecerem-se?
“Nem sempre; a lembrança das existências passadas teria inconvenientes maiores
do que imaginais. Depois da morte, eles se reconhecerão, terão consciência do
tempo que passaram juntos.” A simpatia tem sempre por princípio um conhecimento
anterior? “Não; dois Espíritos que se agradam mutuamente, naturalmente se
procuram, sem que se tenham conhecido como homens.” Os encontros de certas
pessoas, que algumas vezes ocorrem e se atribuem ao acaso, não seriam o efeito
de uma espécie de relações simpáticas? “Há, entre os seres pensantes, ligações
que não conheceis ainda. O magnetismo é o piloto desta Ciência que, mais tarde,
compreendereis melhor.” De onde se origina a repulsão instintiva que se
experimenta por algumas pessoas, à primeira vista? “Espíritos antipáticos que
se adivinham e se reconhecem, sem se falarem.” A antipatia instintiva é sempre
um sinal de natureza má? “Dois Espíritos não são necessariamente maus, por não
serem simpáticos; a antipatia pode nascer de uma divergência de ideias; porém,
à medida que se elevam, as diferenças se apagam e a antipatia desaparece.” A
antipatia entre duas pessoas nasce, primeiramente, naquela em que o Espírito é
pior ou melhor? “Numa e noutra; as causas e os efeitos, porém, são diferentes.
Um Espírito mal tem antipatia contra quem quer que possa julgá-lo e
desmascará-lo; vendo uma pessoa pela primeira vez, sabe que vai ser criticado;
seu afastamento se 154 Capítulo VII transforma em ódio, em inveja e lhe inspira
o desejo de praticar o mal. O bom Espírito sente repulsão pelo mau, porque sabe
que não será compreendido e que eles não comungam os mesmos sentimentos; mas,
seguro de sua superioridade, não tem contra o outro nem ódio, nem inveja:
contenta-se em evitá-lo e compadecer-se dele.” ESQUECIMENTO DO PASSADO. Por que
o Espírito encarnado perde a lembrança de seu passado? “O homem não pode, nem
deve, saber tudo; Deus, na sua sabedoria, assim o quer. Sem o véu que lhe
oculta certas coisas, o homem ficaria ofuscado, como aquele que passa, sem
transição, da escuridão para a luz. Com o esquecimento do passado, ele se sente
mais senhor de si.” Como o homem pode ser responsável por atos e resgatar
faltas de que não se lembra? Como pode aproveitar da experiência adquirida em
outras existências caídas no esquecimento? Conceberíamos que as tribulações da
vida fossem uma lição para ele, se se recordasse do que as tivesse ocasionado;
porém, desde o momento em que disso não se recorda, cada existência é para ele
como se fosse a primeira e, assim, está sempre a recomeçar. Como conciliar isto
com a justiça de Deus? “A cada nova existência, o homem dispõe de mais
inteligência e pode melhor distinguir o bem do mal. Onde estaria o seu mérito,
se ele se lembrasse de todo o passado? Quando o Espírito retorna para sua vida
primitiva (a vida espiritual), toda sua vida passada desenrola-se diante dele;
ele vê as faltas que cometeu e que são a causa de seu sofrimento, e o que teria
podido impedi-lo de cometê-las; compreende que a posição que lhe é dada é justa
e busca, então, a existência que possa reparar a que acaba de transcorrer.
Procura provas análogas àquelas pelas quais passou, ou as lutas que acredite
apropriadas ao seu adiantamento e pede aos Espíritos que lhe são superiores
para ajudá-lo nessa nova tarefa que empreende, pois sabe que o Espírito que lhe
será dado como guia, nessa nova existência, procurará fazê-lo reparar suas
faltas, dando-lhe uma espécie de intuição das que cometeu. Esta intuição é o
pensamento, o desejo criminoso que, frequentemente vos assalta, e ao qual
resistis, instintivamente, atribuindo, a maior parte do tempo, vossa
resistência aos princípios que recebestes de vossos pais, quando é a voz da consciência
que vos fala; essa voz é a recordação do passado, voz que vos adverte para não
cairdes novamente nas faltas que já cometestes. Tendo entrado nessa nova
existência, se o Espírito passa por essas provas com coragem e resiste,
eleva-se e sobe na hierarquia dos Espíritos, quando retorna para o meio deles.”
Se não temos, durante a vida corporal, uma lembrança precisa do que fomos e do
que fizemos de bem ou de mal, nas nossas existências anteriores, temos disto a
intuição, e nossas tendências instintivas são uma reminiscência de nosso
passado, às quais nossa consciência, que é o desejo que experimentamos de não
mais cometer as mesmas faltas, nos adverte para resistir. Nos mundos mais
adiantados que o nosso, onde não se acham premidos por todas as nossas necessidades
físicas, nossas enfermidades, os homens compreendem que são mais felizes do que
nós? A felicidade, em geral, é relativa; sentimo-la por comparação com um
estado menos feliz. Como alguns desses mundos, embora melhores do que o nosso,
não se encontram no estado de perfeição, os homens que os habitam devem ter, a
seu modo, motivos de desgostos. Entre nós, o rico, mesmo que não sinta as
angústias das necessidades materiais, como o pobre, nem por isso tem menos
tribulações, que tornam sua vida amarga. Ora, pergunto se, na posição em que se
encontram, os habitantes desses mundos não se consideram tão infelizes quanto
nós e não se lamentam de sua sorte, já que não possuem a lembrança de uma
existência inferior como termo de comparação? “A isto, é preciso dar duas
respostas distintas. Há mundos, entre os de que falas, cujos habitantes possuem
uma lembrança muito clara e muito precisa de suas existências anteriores;
esses, compreendes, podem e sabem apreciar a felicidade que Deus lhes permite
fruir; há outros, porém, cujos habitantes, colocados, como o dizes, em melhores
condições do que vós, não deixam de enfrentar grandes desgostos e até
desgraças; estes não apreciam sua felicidade, pelo motivo mesmo de não se
recordarem de um estado ainda mais infeliz. Se não a apreciam como homens,
apreciam-na como Espíritos.” Não há, no esquecimento dessas existências
passadas, sobretudo quando tenham sido penosas, algo de providencial, onde se
revela a sabedoria divina? É nos mundos superiores, quando a recordação das existências
infelizes não constituir mais que um pesadelo, que elas se apresentam à
memória. Nos mundos inferiores, as desgraças presentes não seriam agravadas
pela recordação de todas aquelas que já tenham sido suportadas? Concluamos daí,
pois, que tudo o que Deus fez está bem feito e que não nos cabe criticar suas
obras, nem dizer como ele deveria ter regulado o Universo. A lembrança de
nossas individualidades anteriores teria inconvenientes muito graves; ela
poderia, em alguns casos, nos humilhar singularmente; em outros, exaltar nosso
orgulho e, por isso mesmo, entravar nosso livre-arbítrio. Para nos melhorarmos,
Deus nos deu apenas o que nos é necessário e sufi ciente: a voz da consciência
e nossas tendências instintivas; ele nos retira o que poderia nos prejudicar.
Acrescentemos, ainda, que, se tivéssemos a lembrança de nossos atos pessoais
anteriores, teríamos, igualmente, a dos atos de outrem e que esse conhecimento
poderia ter os efeitos lamentáveis, sobre as relações sociais; nem sempre
podendo nos dignificar do nosso passado, é melhor que, prontamente, um véu seja
lançado sobre ele. Isto está perfeitamente de acordo com a doutrina dos
Espíritos, acerca dos mundos superiores ao nosso. Nesses mundos, onde só reina
o bem, a lembrança do passado nada tem de penosa; eis por que lembrar-se de sua
existência anterior é como lembrar-se do que se fez na véspera. Quanto à estada
em mundos inferiores, não passa, como já o dissemos, de um sonho ruim. 395.
Podemos ter algumas revelações sobre nossas existências anteriores? “Nem
sempre. Todavia, muitos sabem o que foram e o que faziam; se lhes fosse
permitido dizê-lo, abertamente, fariam singulares revelações sobre o passado.”
396. Algumas pessoas julgam ter uma vaga lembrança de um passado desconhecido,
que a elas se apresenta, como a imagem fugidia de um sonho que, em vão, tentam
reter. Não será apenas uma ilusão? “É, algumas vezes, real; mas,
frequentemente, também é uma ilusão, contra a qual é preciso se resguardar,
pois pode ser o efeito de uma imaginação superexcitada”. Nas existências
corporais de uma natureza mais elevada do que a nossa, a lembrança das
existências anteriores é mais precisa? “Sim, à medida que o corpo se torna
menos material, lembramo-nos melhor. A lembrança do passado é mais nítida, para
aqueles que habitam os mundos de uma ordem superior.” Sendo as tendências
instintivas do homem uma reminiscência de seu passado, segue-se que, pelo
estudo dessas tendências, ele possa conhecer as faltas que cometeu? “Até um
certo ponto, sim; mas, é preciso levar em conta a melhora que pôde operar-se no
Espírito e as resoluções que tomou no estado errante; a existência atual pode
ser muito melhor do que a precedente.” a) Poderá ser pior, isto é, o homem pode
cometer, numa existência, faltas que não cometeu na existência precedente?
“Isto depende do seu adiantamento; se não souber resistir às provações, pode
ser arrastado a novas faltas, que são a consequência da posição que escolheu;
geralmente, porém, estas faltas denotam muito mais um estado estacionário do que
um estado retrógrado, pois o Espírito pode se adiantar ou estacionar, mas não
retrocede.” As vicissitudes da vida corporal sendo, ao mesmo tempo, uma
expiação das faltas passadas e provas futuras, segue-se que, pela natureza
dessas vicissitudes, se possa deduzir o gênero da existência anterior? “Muito
frequentemente, visto que cada um é punido por aquilo em que pecou; todavia,
não se deve fazer disto uma regra absoluta; as tendências instintivas são um
indício mais seguro, pois as provações que o Espírito experimenta referem-se
tanto ao futuro, quanto ao passado.” Ao chegar ao termo marcado pela
Providência para sua vida errante, o Espírito escolhe, ele próprio, as provas a
que quer se submeter para apressar seu adiantamento, isto é, o gênero de
existência que julga o mais apropriado para lhe fornecer os meios, e essas
provas estão sempre relacionadas com as faltas que ele deve expiar. Se delas
triunfa, eleva-se; se sucumbe, tem que recomeçar. O Espírito goza sempre de seu
livre-arbítrio; é em virtude dessa liberdade que, no estado de Espírito, ele
escolhe as provas da vida corporal e que, no estado de encarnado, ele delibera
se fará ou não, e escolhe entre o bem e o mal. Negar ao homem o livre-arbítrio,
seria reduzi-lo à condição de máquina. Tendo retornado à vida corporal, o
Espírito perde, momentaneamente, a lembrança de suas existências anteriores,
como se um véu as ocultasse; todavia, algumas vezes, delas possui uma vaga
consciência, e estas podem até ser-lhe reveladas, em certas circunstâncias;
mas, então, isto só se dá pela vontade dos Espíritos superiores, que o fazem
espontaneamente, com um fim útil, nunca para satisfazer uma vã curiosidade. As
existências futuras, em nenhum caso, podem ser reveladas pelo fato de
dependerem da maneira segundo a qual efetua-se a existência presente e da
escolha ulterior do Espírito. O esquecimento das faltas cometidas não constitui
um obstáculo à melhoria do Espírito, pois, se não tem uma lembrança precisa
delas, o conhecimento que delas possuía no estado errante e o desejo que
experimentou de repará-las, guiam-no, através da intuição, e dão-lhe a ideia de
resistir ao mal; essa ideia é a voz da consciência, na qual é secundado pelos
Espíritos que o assistem, se ele escuta as boas inspirações que lhe sugerem. Se
o homem não conhece os próprios atos que cometeu nas suas existências
anteriores, pode sempre saber de que gênero de faltas ele se tornou culpado e
qual era seu caráter dominante. Basta-lhe estudar a si mesmo, e pode julgar o
que foi, não pelo que ele é, mas pelas suas tendências. As vicissitudes da vida
corporal são, ao mesmo tempo, uma expiação, com relação às faltas passadas, e
provas, para o futuro. Elas nos depuram e nos elevam, conforme as suportamos,
com resignação e sem reclamação. A natureza das vicissitudes e das provas que
experimentamos pode também nos esclarecer sobre o que fomos e sobre o que
fizemos, assim como julgamos, neste mundo, os atos de um culpado pelo castigo
que a lei lhe inflige. Assim, este será castigado, no seu orgulho, pela
humilhação de uma existência subalterna; o mau rico e o avarento, pela miséria;
o que foi cruel para os outros, pelas crueldades que sofrerá; o tirano, pela
escravidão; o mau filho, pela ingratidão de seus filhos; o preguiçoso, por um
trabalho forçado, etc. O Livro dos Espíritos. Abraço. Davi.
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