Espiritualidade. Texto de Leonardo Boff (1938- ). Ano de publicação 2002. O DIREITO DE
MORRER. A aprovação pelo parlamento holandês da eutanásia está provocando
acaloradas discussões também entre nós. A questão é polêmica e permite
múltiplas posições. Queremos apresentar uma das posições, compartilhada por
significativo grupo de teólogos cristãos. Embora não gozem de unanimidade,
representam uma contribuição a ser considerada. Há de se partir do fato de que
a morte pertence à vida. E a vida pertence à eternidade que é a realização
plena das virtualidades da vida. Como somos responsáveis pela nossa vida assim
devemos ser responsáveis também pela nossa morte. Temos direito a uma vida
digna e também o direito de uma morte digna. Esse direito muitas vezes nos é
negado pelo fato de sermos obrigados a ficar atrelados a aparelhos e a
medicamentos que nos prolongam a vida no sentido meramente vegetativo (chamamos
a isso distanásia), o que é insuficiente para a integralidade da vida
minimamente humana. A vida como auto-organização da matéria comparece como o
fruto mais elevado da evolução e, numa perspectiva espiritual, representa o
maior dom de Deus. Mesmo assim, como seres éticos, somos responsáveis pelo
começo da vida e também responsáveis pelo fim da vida. Outrora, as Igrejas
relutavam em acolher o planejamento familiar, pois imaginavam, erroneamente,
que seria interferir no desígnio de Deus de introduzir vidas no mundo. Hoje, as
mesmas igrejas ensinam o planejamento familiar responsável. Ensinam, outrossim,
que todo ser humano tem o direito de morrer humanamente. Cabe ao próprio ser
humano, mortalmente doente, decidir de forma qualificada sobre o prolongamento
ou não de seu estado irreversível. Na sua impossibilidade, ocupam o seu lugar
os familiares e os médicos. Isso implica que o médico fará tudo para curar o
paciente e proporcionar os remédios para aliviar-lhe a dor. Não significa que
deva recorrer a tratamentos extraordinários para prolongar a vida ou postergar
a morte, sobretudo, em situações limite. Uma terapia só tem sentido quando se
ordena à reabilitação e à restituição das funções essenciais e vitais e não
simplesmente garantir uma vida vegetativa. Importa “deixar morrer”, o que não é
a mesma coisa que “fazer morrer”. O cuidado pelo doente não deve ser apenas
coisa dos médicos e enfermeiros, mas também dos familiares, dos conselheiros
espirituais (sacerdotes, pastores, rabinos, monges, pais ou mães de santo etc)
e dos amigos próximos. Devem ser respeitadas as convicções e as crenças
religiosas do paciente, especialmente ao sentido que dá à vida e à morte. Caso
contrário lhe fazemos violência, sempre, entretanto, no pressuposto de que a
vida é o bem supremo em nome do qual nenhuma visão, ideologia ou convicção
religiosa contrária, possa prevalecer. Para o cristianismo – a religião da
maioria do povo brasileiro – a morte não é um fim, mas um peregrinar para a
Fonte originária de toda vida. Não é um diluir-se na poeira cósmica, mas um
cair nos braços do Pai e Mãe eternos que têm infinita saudade de seus filhos e
filhas peregrinantes. Estamos sempre nascendo e com a morte acabamos de nascer.
Destarte, a morte perde seu caráter de brutal interrupção do ciclo da vida para
se transfigurar numa passagem bem aventurada para a plenitude da vida. São
Francisco de Assis (1182-1226), o primeiro depois do Único, morreu cantando,
agradecendo a vida por tudo o que ela lhe proporcionara. Morrer é então fechar
os olhos para ver melhor, como disse José Marti (1853-1895), o maior dos
cubanos. Ver o sentido do universo e o nosso lugar no conjunto de todos os
seres, carregados pelo Mistério no qual mergulharemos. Tais visões ajudam a
humanizar a morte e a desdramatizar os casos terminais. Pois não vivemos para
morrer, como dizem os existencialistas, mas morremos para ressuscitar, para
viver mais e melhor, como creem os cristãos. ENTENDER A VIOLÊNCIA? Os atos de
violência sofridos em São Paulo, especialmente os sequestros e assassinatos dos
prefeitos de Campinas e de Santo André (cidades brasileiras), além de nos
indignar nos fazem pensar. Por que a violência e como sair de seu círculo
férreo? Já se fizeram, sem conta, todo tipo de reflexão. Quero apresentar,
sumariamente, uma de notável pensador francês vivendo nos EUA, René Girard
(1923-2015) já esteve algumas vezes no Brasil, pois dedicou toda sua vida no
esforço de entender esse mecanismo avassalador. Seu esforço de elucidação,
porém, não nos deve fazer esquecer o transfundo de violência permanente que
caracteriza a sociedade brasileira. Ela é marcada por um modelo altamente
predatório de capitalismo que produz de forma crescente mais e mais excluídos.
Apesar disso é hoje um privilégio ser explorado por esse sistema a preço de uma
remuneração miserável com alguma seguridade social, pois, do contrário, milhões
seriam condenados ao trabalho informal ou ao desemprego. Qual é a singularidade
de Girard? Ele parte da tradição filosófico psicanalítica que afirma ser o
desejo uma das forças mais estruturadoras do ser humano. Sua característica é
ser ilimitado e orientado à totalidade dos objetos. Por ser indeterminado, o
ser humano, não sabe como desejar. Aprende a desejar, imitando o desejo dos
outros (desejo mimético na linguagem de Girard). Isso se vê claro na criança.
Não obstante os muitos brinquedos que possua, o que mais ela quer é o brinquedo
do outro. E ai surge a rivalidade com ele. Quer o brinquedo só para si,
excluindo o outro. Ocorre que outros também concorrem com ela, desejando também
o mesmo objeto. Origina-se daí um conflito de todos contra todos. Esse
mecanismo é paradigmático para toda sociedade. Supera-se a situação de
rivalidade exclusão, diz Girard, quando todos se unem contra um, fazendo-o
bode expiatório. Ele é feito culpado de querer só para si o objeto. Ao se
unirem contra ele, esquecem a violência interna e convivem com um mínimo de
paz. Com efeito, as sociedades vivem criando bodes expiatórios. Culpados são
sempre os outros: o Estado, a polícia, os pobres, os terroristas, os anti
globalização e por ai vai. Importa não esquecer que o bode expiatório oculta a
violência escondida, pois todos continuam rivalizando entre si. Por isso a
sociedade goza de um equilíbrio frágil. De tempos em tempos, com ou sem bode
expiatório explícito, a violência se manifesta especialmente naqueles que se
sentem prejudicados e buscam compensações. Bem o expressa Rubem Fonseca
(1925- ) em seu livro O Cobrador. Um
jovem de classe média empobrecida, por força das circunstâncias, pratica atos
ilícitos. Sente-se roubado pela sociedade dominante e confessa: “Estão me
devendo colégio (...) sanduíche de mortadela no botequim, sorvete, bola de
futebol…estão me devendo uma garota de vinte anos, cheia de dentes e perfume.
Sempre tive uma missão e não sabia. Agora sei (...) sei que se todo fodido
(necessitado) fizesse como eu o mundo seria melhor e mais justo”. Aqui busca-se
uma solução individual para um problema social. Na medida em que permanece
individual não causa grande medo. Pelo contrário, os causadores principais da
violência estrutural (as classes dominantes que controlam o ter, o saber e o
ser) se sentem mais seguras quanto mais duramente se aplicam as leis contra os
marginais. Assim conseguem fazer esquecer que eles são os principais causadores
de uma situação permanente de violência. Mais ainda, vivemos num tipo de
sociedade cujo eixo estruturador é a magnificação do consumo individualista. A
publicidade apresenta os produtos como sacramentos produtores da graça da
felicidade total. E ela enfatiza que alguém é mais alguém quando consome um
produto exclusivo que os outros não têm. Cria-se uma relação social violenta
porque exclusiva. Enquanto perdurar esta lógica, prossegue o processo
vitimatório. Mas o desejo não é só concorrencial, diz Girard. Ele pode ser
cooperativo. Todos se unem para compartilhar do mesmo objeto. De concorrentes
se fazem aliados. Tal propósito supõe outro tipo de sociedade, mais cooperativa
que competitiva, com democracia participativa e não apenas delegatícia. O
caminho mais curto e seguro para tal propósito é a educação crítica, acessível
a todos. Por ela as pessoas se civilizam, socializam valores e aprendem a não
criar bodes expiatórios mas a assumirem elas mesmas a tarefa de construção de
uma sociedade na qual todos possam caber. Então sim haverá mais paz que
violência. A CULTURA DA PAZ. A cultura dominante, hoje mundializada, se
estrutura ao redor da vontade de poder que se traduz por vontade de dominação
da natureza, do outro, dos povos e dos mercados. Essa é a lógica dos
dinossauros que criou a cultura do medo e da guerra. Praticamente em todos os
países as festas nacionais e seus heróis são ligados a feitos de guerra e de
violência. Os meios de comunicação levam ao paroxismo a magnificação de todo
tipo de violência, bem simbolizado nos filmes de Arnold Schwazenegger (1947- ) como o “Exterminador do
Futuro”. Nessa cultura o militar, o banqueiro e o especulador valem mais do que
o poeta, o filósofo e o santo. Nos processos de socialização formal e informal,
ela não cria mediações para uma cultura da paz. E sempre de novo faz suscitar a
pergunta que, de forma dramática, Albert Einstein (1879-1955) colocou a Sigmund
Freud (1856-1939) nos idos de 1932: é possível superar ou controlar a
violência? Freud, realisticamente, responde: “É impossível aos homens controlar
totalmente o instinto de morte (...). Esfaimados pensamos no moinho que tão
lentamente mói que poderíamos morrer de fome antes de receber a farinha”. Sem
detalhar a questão, diríamos que por detrás da violência funcionam poderosas
estruturas. A primeira delas é o caos sempre presente no processo cosmogênico.
Viemos de uma imensa explosão, o big bang. E a evolução comporta violência em
todas as suas fases. São conhecidas cerca de 5 grandes dizimações em massa,
ocorridas há milhões de anos atrás. Na última, há cerca de 65 milhões de anos,
pereceram todos os dinossauros após reinarem, soberanos, 133 milhões de anos. A
expansão do Universo possui também o significado de ordenar o caos através de
ordens cada vez mais complexas e, por isso também, mais harmônicas e menos
violentas. Possivelmente a própria inteligência nos foi dada para pormos
limites à violência e conferir-lhe um sentido construtivo. Em segundo lugar,
somos herdeiros da cultura patriarcal que instaurou a dominação do homem sobre
a mulher e criou as instituições do patriarcado assentadas sobre mecanismos de
violência como o Estado, as classes, o projeto da tecno-ciência, os processos
de produção como objetivação da natureza e sua sistemática depredação. Em
terceiro lugar, essa cultura patriarcal gestou a guerra como forma de resolução
dos conflitos. Sobre esta vasta base se formou a cultura do capital, hoje
globalizada; sua lógica é a competição e não a cooperação, por isso, gera
guerras econômicas e políticas e com isso desigualdades, injustiças e
violências. Todas estas forças se articulam estruturalmente para consolidar a
cultura da violência que nos desumaniza a todos. A essa cultura da violência há
que se opor a cultura da paz. Hoje ela é imperativa. É imperativa, porque as
forças de destruição estão ameaçando, por todas as partes, o pacto social
mínimo sem o qual regredimos a níveis de barbárie. É imperativa porque o
potencial destrutivo já montado pode ameaçar toda a biosfera e impossibilitar a
continuidade do projeto humano. Ou limitamos a violência e fazemos prevalecer o
projeto da paz ou conheceremos, no limite, o destino dos dinossauros. Onde
buscar as inspirações para cultura da paz? Mais que imperativos
voluntarísticos, é o próprio processo antroprogênico a nos fornecer indicações
objetivas e seguras. A singularidade do 1% de carga genética que nos separa dos
primatas superiores reside no fato de que nós, à distinção deles, somos seres
sociais e cooperativos. Ao lado de estruturas de agressividade, temos
capacidades de afetividade, compaixão, solidariedade e amorização. Hoje é
urgente que desentranhemos tais forças para conferir rumo mais benfazejo à
história. Toda protelação é insensata. O ser humano é o único ser que pode
intervir nos processos da natureza e copilotar a marcha da evolução. Ele foi
criado criador. Dispõe de recursos de reengenharia da violência mediante
processos civilizatórios de contenção e uso de racionalidade. A competitividade
continua a valer mas no sentido do melhor e não de destruição do outro. Assim
todos ganham e não apenas um. Há muito que filósofos da estatura de Martin
Heidegger (1889-1976), resgatando uma antiga tradição que remonta aos tempos de
César Augusto, veem no cuidado a essência do ser humano. Sem cuidado ele não
vive nem sobrevive. Tudo precisa de cuidado para continuar a existir. Cuidado
representa uma relação amorosa para com a realidade. Onde vige cuidado de uns
para com os outros desaparece o medo, origem secreta de toda violência, como
analisou Freud. A cultura da paz começa quando se cultiva a memória e o exemplo
de figuras que representam o cuidado e a vivência da dimensão de generosidade
que nos habita, como Mahatma Gandhi (1869-1948), Dom Helder Câmara (1909-1999)
e Martin Luther King (1929-1968) e outros. Importa fazermos as revoluções
moleculares Félix Gatarri (1930-1992), começando por nós mesmos. Cada um
estabelece como projeto pessoal e coletivo a paz enquanto método e enquanto
meta, paz que resulta dos valores da cooperação, do cuidado, dá compaixão e da
amorosidade, vividos cotidianamente. www.leonardoboff.com.br. Abraço. Davi.
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