quinta-feira, 22 de setembro de 2016

EUTANÁSIA. O DIREITO DE MORRER.



Espiritualidade. Texto de Leonardo Boff (1938-  ). Ano de publicação 2002. O DIREITO DE MORRER. A aprovação pelo parlamento holandês da eutanásia está provocando acaloradas discussões também entre nós. A questão é polêmica e permite múltiplas posições. Queremos apresentar uma das posições, compartilhada por significativo grupo de teólogos cristãos. Embora não gozem de unanimidade, representam uma contribuição a ser considerada. Há de se partir do fato de que a morte pertence à vida. E a vida pertence à eternidade que é a realização plena das virtualidades da vida. Como somos responsáveis pela nossa vida assim devemos ser responsáveis também pela nossa morte. Temos direito a uma vida digna e também o direito de uma morte digna. Esse direito muitas vezes nos é negado pelo fato de sermos obrigados a ficar atrelados a aparelhos e a medicamentos que nos prolongam a vida no sentido meramente vegetativo (chamamos a isso distanásia), o que é insuficiente para a integralidade da vida minimamente humana. A vida como auto-organização da matéria comparece como o fruto mais elevado da evolução e, numa perspectiva espiritual, representa o maior dom de Deus. Mesmo assim, como seres éticos, somos responsáveis pelo começo da vida e também responsáveis pelo fim da vida. Outrora, as Igrejas relutavam em acolher o planejamento familiar, pois imaginavam, erroneamente, que seria interferir no desígnio de Deus de introduzir vidas no mundo. Hoje, as mesmas igrejas ensinam o planejamento familiar responsável. Ensinam, outrossim, que todo ser humano tem o direito de morrer humanamente. Cabe ao próprio ser humano, mortalmente doente, decidir de forma qualificada sobre o prolongamento ou não de seu estado irreversível. Na sua impossibilidade, ocupam o seu lugar os familiares e os médicos. Isso implica que o médico fará tudo para curar o paciente e proporcionar os remédios para aliviar-lhe a dor. Não significa que deva recorrer a tratamentos extraordinários para prolongar a vida ou postergar a morte, sobretudo, em situações limite. Uma terapia só tem sentido quando se ordena à reabilitação e à restituição das funções essenciais e vitais e não simplesmente garantir uma vida vegetativa. Importa “deixar morrer”, o que não é a mesma coisa que “fazer morrer”. O cuidado pelo doente não deve ser apenas coisa dos médicos e enfermeiros, mas também dos familiares, dos conselheiros espirituais (sacerdotes, pastores, rabinos, monges, pais ou mães de santo etc) e dos amigos próximos. Devem ser respeitadas as convicções e as crenças religiosas do paciente, especialmente ao sentido que dá à vida e à morte. Caso contrário lhe fazemos violência, sempre, entretanto, no pressuposto de que a vida é o bem supremo em nome do qual nenhuma visão, ideologia ou convicção religiosa contrária, possa prevalecer. Para o cristianismo – a religião da maioria do povo brasileiro – a morte não é um fim, mas um peregrinar para a Fonte originária de toda vida. Não é um diluir-se na poeira cósmica, mas um cair nos braços do Pai e Mãe eternos que têm infinita saudade de seus filhos e filhas peregrinantes. Estamos sempre nascendo e com a morte acabamos de nascer. Destarte, a morte perde seu caráter de brutal interrupção do ciclo da vida para se transfigurar numa passagem bem aventurada para a plenitude da vida. São Francisco de Assis (1182-1226), o primeiro depois do Único, morreu cantando, agradecendo a vida por tudo o que ela lhe proporcionara. Morrer é então fechar os olhos para ver melhor, como disse José Marti (1853-1895), o maior dos cubanos. Ver o sentido do universo e o nosso lugar no conjunto de todos os seres, carregados pelo Mistério no qual mergulharemos. Tais visões ajudam a humanizar a morte e a desdramatizar os casos terminais. Pois não vivemos para morrer, como dizem os existencialistas, mas morremos para ressuscitar, para viver mais e melhor, como creem os cristãos. ENTENDER A VIOLÊNCIA? Os atos de violência sofridos em São Paulo, especialmente os sequestros e assassinatos dos prefeitos de Campinas e de Santo André (cidades brasileiras), além de nos indignar nos fazem pensar. Por que a violência e como sair de seu círculo férreo? Já se fizeram, sem conta, todo tipo de reflexão. Quero apresentar, sumariamente, uma de notável pensador francês vivendo nos EUA, René Girard (1923-2015) já esteve algumas vezes no Brasil, pois dedicou toda sua vida no esforço de entender esse mecanismo avassalador. Seu esforço de elucidação, porém, não nos deve fazer esquecer o transfundo de violência permanente que caracteriza a sociedade brasileira. Ela é marcada por um modelo altamente predatório de capitalismo que produz de forma crescente mais e mais excluídos. Apesar disso é hoje um privilégio ser explorado por esse sistema a preço de uma remuneração miserável com alguma seguridade social, pois, do contrário, milhões seriam condenados ao trabalho informal ou ao desemprego. Qual é a singularidade de Girard? Ele parte da tradição filosófico psicanalítica que afirma ser o desejo uma das forças mais estruturadoras do ser humano. Sua característica é ser ilimitado e orientado à totalidade dos objetos. Por ser indeterminado, o ser humano, não sabe como desejar. Aprende a desejar, imitando o desejo dos outros (desejo mimético na linguagem de Girard). Isso se vê claro na criança. Não obstante os muitos brinquedos que possua, o que mais ela quer é o brinquedo do outro. E ai surge a rivalidade com ele. Quer o brinquedo só para si, excluindo o outro. Ocorre que outros também concorrem com ela, desejando também o mesmo objeto. Origina-se daí um conflito de todos contra todos. Esse mecanismo é paradigmático para toda sociedade. Supera-se a situação de rivalidade exclusão, diz Girard, quando todos se unem contra um, fazendo-o bode expiatório. Ele é feito culpado de querer só para si o objeto. Ao se unirem contra ele, esquecem a violência interna e convivem com um mínimo de paz. Com efeito, as sociedades vivem criando bodes expiatórios. Culpados são sempre os outros: o Estado, a polícia, os pobres, os terroristas, os anti globalização e por ai vai. Importa não esquecer que o bode expiatório oculta a violência escondida, pois todos continuam rivalizando entre si. Por isso a sociedade goza de um equilíbrio frágil. De tempos em tempos, com ou sem bode expiatório explícito, a violência se manifesta especialmente naqueles que se sentem prejudicados e buscam compensações. Bem o expressa Rubem Fonseca (1925-  ) em seu livro O Cobrador. Um jovem de classe média empobrecida, por força das circunstâncias, pratica atos ilícitos. Sente-se roubado pela sociedade dominante e confessa: “Estão me devendo colégio (...) sanduíche de mortadela no botequim, sorvete, bola de futebol…estão me devendo uma garota de vinte anos, cheia de dentes e perfume. Sempre tive uma missão e não sabia. Agora sei (...) sei que se todo fodido (necessitado) fizesse como eu o mundo seria melhor e mais justo”. Aqui busca-se uma solução individual para um problema social. Na medida em que permanece individual não causa grande medo. Pelo contrário, os causadores principais da violência estrutural (as classes dominantes que controlam o ter, o saber e o ser) se sentem mais seguras quanto mais duramente se aplicam as leis contra os marginais. Assim conseguem fazer esquecer que eles são os principais causadores de uma situação permanente de violência. Mais ainda, vivemos num tipo de sociedade cujo eixo estruturador é a magnificação do consumo individualista. A publicidade apresenta os produtos como sacramentos produtores da graça da felicidade total. E ela enfatiza que alguém é mais alguém quando consome um produto exclusivo que os outros não têm. Cria-se uma relação social violenta porque exclusiva. Enquanto perdurar esta lógica, prossegue o processo vitimatório. Mas o desejo não é só concorrencial, diz Girard. Ele pode ser cooperativo. Todos se unem para compartilhar do mesmo objeto. De concorrentes se fazem aliados. Tal propósito supõe outro tipo de sociedade, mais cooperativa que competitiva, com democracia participativa e não apenas delegatícia. O caminho mais curto e seguro para tal propósito é a educação crítica, acessível a todos. Por ela as pessoas se civilizam, socializam valores e aprendem a não criar bodes expiatórios mas a assumirem elas mesmas a tarefa de construção de uma sociedade na qual todos possam caber. Então sim haverá mais paz que violência. A CULTURA DA PAZ. A cultura dominante, hoje mundializada, se estrutura ao redor da vontade de poder que se traduz por vontade de dominação da natureza, do outro, dos povos e dos mercados. Essa é a lógica dos dinossauros que criou a cultura do medo e da guerra. Praticamente em todos os países as festas nacionais e seus heróis são ligados a feitos de guerra e de violência. Os meios de comunicação levam ao paroxismo a magnificação de todo tipo de violência, bem simbolizado nos filmes de  Arnold Schwazenegger (1947-  ) como o “Exterminador do Futuro”. Nessa cultura o militar, o banqueiro e o especulador valem mais do que o poeta, o filósofo e o santo. Nos processos de socialização formal e informal, ela não cria mediações para uma cultura da paz. E sempre de novo faz suscitar a pergunta que, de forma dramática, Albert Einstein (1879-1955) colocou a Sigmund Freud (1856-1939) nos idos de 1932: é possível superar ou controlar a violência? Freud, realisticamente, responde: “É impossível aos homens controlar totalmente o instinto de morte (...). Esfaimados pensamos no moinho que tão lentamente mói que poderíamos morrer de fome antes de receber a farinha”. Sem detalhar a questão, diríamos que por detrás da violência funcionam poderosas estruturas. A primeira delas é o caos sempre presente no processo cosmogênico. Viemos de uma imensa explosão, o big bang. E a evolução comporta violência em todas as suas fases. São conhecidas cerca de 5 grandes dizimações em massa, ocorridas há milhões de anos atrás. Na última, há cerca de 65 milhões de anos, pereceram todos os dinossauros após reinarem, soberanos, 133 milhões de anos. A expansão do Universo possui também o significado de ordenar o caos através de ordens cada vez mais complexas e, por isso também, mais harmônicas e menos violentas. Possivelmente a própria inteligência nos foi dada para pormos limites à violência e conferir-lhe um sentido construtivo. Em segundo lugar, somos herdeiros da cultura patriarcal que instaurou a dominação do homem sobre a mulher e criou as instituições do patriarcado assentadas sobre mecanismos de violência como o Estado, as classes, o projeto da tecno-ciência, os processos de produção como objetivação da natureza e sua sistemática depredação. Em terceiro lugar, essa cultura patriarcal gestou a guerra como forma de resolução dos conflitos. Sobre esta vasta base se formou a cultura do capital, hoje globalizada; sua lógica é a competição e não a cooperação, por isso, gera guerras econômicas e políticas e com isso desigualdades, injustiças e violências. Todas estas forças se articulam estruturalmente para consolidar a cultura da violência que nos desumaniza a todos. A essa cultura da violência há que se opor a cultura da paz. Hoje ela é imperativa. É imperativa, porque as forças de destruição estão ameaçando, por todas as partes, o pacto social mínimo sem o qual regredimos a níveis de barbárie. É imperativa porque o potencial destrutivo já montado pode ameaçar toda a biosfera e impossibilitar a continuidade do projeto humano. Ou limitamos a violência e fazemos prevalecer o projeto da paz ou conheceremos, no limite, o destino dos dinossauros. Onde buscar as inspirações para cultura da paz? Mais que imperativos voluntarísticos, é o próprio processo antroprogênico a nos fornecer indicações objetivas e seguras. A singularidade do 1% de carga genética que nos separa dos primatas superiores reside no fato de que nós, à distinção deles, somos seres sociais e cooperativos. Ao lado de estruturas de agressividade, temos capacidades de afetividade, compaixão, solidariedade e amorização. Hoje é urgente que desentranhemos tais forças para conferir rumo mais benfazejo à história. Toda protelação é insensata. O ser humano é o único ser que pode intervir nos processos da natureza e copilotar a marcha da evolução. Ele foi criado criador. Dispõe de recursos de reengenharia da violência mediante processos civilizatórios de contenção e uso de racionalidade. A competitividade continua a valer mas no sentido do melhor e não de destruição do outro. Assim todos ganham e não apenas um. Há muito que filósofos da estatura de Martin Heidegger (1889-1976), resgatando uma antiga tradição que remonta aos tempos de César Augusto, veem no cuidado a essência do ser humano. Sem cuidado ele não vive nem sobrevive. Tudo precisa de cuidado para continuar a existir. Cuidado representa uma relação amorosa para com a realidade. Onde vige cuidado de uns para com os outros desaparece o medo, origem secreta de toda violência, como analisou Freud. A cultura da paz começa quando se cultiva a memória e o exemplo de figuras que representam o cuidado e a vivência da dimensão de generosidade que nos habita, como Mahatma Gandhi (1869-1948), Dom Helder Câmara (1909-1999) e Martin Luther King (1929-1968) e outros. Importa fazermos as revoluções moleculares Félix Gatarri (1930-1992), começando por nós mesmos. Cada um estabelece como projeto pessoal e coletivo a paz enquanto método e enquanto meta, paz que resulta dos valores da cooperação, do cuidado, dá compaixão e da amorosidade, vividos cotidianamente. www.leonardoboff.com.br. Abraço. Davi.

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