sexta-feira, 2 de setembro de 2016

BUDISMO BÁSICO.



Budismo. Escrito por Tenzin Gyatso (1935-  ), o Dalai Lama. APESAR DE ACREDITAR que a compaixão e a afeição humanas sejam valores universais que transcendem as fronteiras da diferença religiosa, o significado da compaixão dentro do Budismo está baseado em uma visão de mundo específica, com objetivos e métodos. Essa visão de mundo não expõe apenas o que expliquei anteriormente a respeito dos benefícios da compaixão e dos métodos anteriormente para desenvolvê-la, mas também mostra como o desenvolvimento da compaixão é parte integrante do entendimento budista da realidade e do caminho para a iluminação. Assim,, pode ser útil fornecer algumas explicações sobre a filosofia budista. AS QUATRO NOBRES VERDADES E A CAUSALIDADE. Os ensinamentos fundamentais de Budha se baseiam nas quatro nobres verdades. Elas são a base do ensinamento budista. As quatro nobres verdades, são a verdade do sofrimento, sua origem, a possibilidade da cessação do sofrimento e o caminho que leva a essa cessação. Os ensinamentos das quatro nobres verdades baseiam-se na experiência humana, no centro da qual está a aspiração natural para buscar a felicidade e evitar o sofrimento. A felicidade que desejamos e o sofrimento que afastamos não são aleatórios, mas ocorrem devido a determinadas causas e condições. Entender o mecanismo causal por trás de nosso sofrimento e de nossa felicidade, devemos analisar a causalidade com cuidado. Por exemplo, você pode pensar que suas experiências de dor e sofrimento e felicidade ocorrem sem razão – em outras palavras, que não tem causa. Os ensinamentos budistas dizem que isso não é possível. Talvez você pense que o sofrimento e a felicidade sejam, de alguma maneira, causados por um ser transcendente. Talvez você pense que uma substância primeva possa estar na origem de todas as coisas. Os ensinamentos budistas rejeitam essa possibilidade também. Usando razões para eliminar essas possibilidades, o budismo conclui que nossas experiências de sofrimento e felicidade não ocorrem por moto próprio nem devido a alguma causa de existência independente, nem tampouco são o produto de alguma combinação dessas coisas. Pelo contrário, o ensinamento budista compreende a causalidade em termos do que chama de originação interdependente: todas as coisas e acontecimentos, incluindo nossas experiências de sofrimento e felicidade, vêm da reunião de uma multiplicidade de causas e condições. ENTENDENDO O PAPEL PRIMÁRIO DA MENTE. Se examinarmos com cuidado o ensinamento das quatro nobres verdades, descobriremos a importância primordial da consciência, ou da mente, na determinação de nossas experiências de sofrimento e felicidade. O ponto de vista budista é que existem diferentes níveis de sofrimento. Por exemplo, há o sofrimento que é muito óbvio para todos nós, como as experiências dolorosas. Todos podemos reconhecer isso como sofrimento. Um segundo nível de sofrimento inclui o que definimos normalmente como sensações prazerosas. Na realidade, as sensações prazerosas são sofrimento porque carregam dentro de si a semente da insatisfação. Há também um terceiro nível de sofrimento, que na terminologia budista chama-se sofrimento penetrante do condicionamento. Poder-se-ia dizer que esse terceiro nível de sofrimento é o simples fato de nossa existência como seres não iluminados sujeitos a emoções, pensamentos e ações kármicas negativas. Karma significa ação, e é o que nos mantém presos a um ciclo negativo. Estar preso ao karma dessa maneira é o terceiro tipo de sofrimento. Se você olhar para esses três tipos diferentes de sofrimento, verá que em última instância estão baseados em estados de espírito. Na verdade, estados de espírito indisciplinados são por si só sofrimento. Se olharmos para a origem do sofrimento nos textos budistas, veremos que, embora leiamos sobre karma e sobre a ilusão que motiva a ação kármica, estamos lidando com ações cometidas por um agente. Já que sempre há um motivo por trás de cada ação, o karma também pode ser compreendido fundamentalmente em termos de estado de espírito, um estado de espírito indisciplinado. Da mesma forma, quando falamos sobre ilusões que fazem com que uma pessoa aja de modo negativo, elas também são estados de espírito indisciplinados. Portanto, quando os budistas se referem à verdade da origem do sofrimento, estamos falando sobre um estado de espírito que é indisciplinado e indomado, um estado de espírito que obscurece nossa iluminação e que nos faz sofrer. A origem do sofrimento, a causa do sofrimento e o sofrimento em si, no final das contas, só podem ser entendidos em termos de estado de espírito. Quando falamos sobre a cessação do sofrimento, estamos falando apenas em relação a um ser vivo, um agente com consciência. Os ensinamentos budistas descrevem a cessação do sofrimento como o estado mais elevado de felicidade. Essa felicidade não deve ser entendida em termos de sensações prazerosas; não estamos falando de felicidade no nível do sentimento ou da sensação. Estamos, isso sim, nos referindo ao nível mais elevado de felicidade: total liberação do sofrimento e da ilusão. Mais uma vez, isso é um estado de espírito, um nível de realização. Por fim, de modo a compreender nossa experiência de sofrimento e dor, e o caminho que leva à cessação – as quatro nobres verdades – temos que entender a natureza da mente. MENTE E NIRVANA. O processo pelo qual a mente cria o sofrimento no qual vivemos é descrito pelo mestre indiano Chandrakirti (600 DC) em seu Guia para o caminho do meio, quando afirma: “Um estado de espírito indisciplinado dá origem a ilusões que levam um indivíduo a ações negativas, que em seguida criam o ambiente negativo no qual a pessoa vive”. Para tentar entender a natureza da ausência de sofrimento que os budistas chamam de nirvana, podemos examinar um trecho do célebre Fundamentos do caminho do meio, de Nagarjuna (150 DC), onde ele, de algum modo, equilibra a existência não iluminada (samsara) e a existência iluminada (nirvana). O que Nagarjuna explica é que não devemos pensar que existe uma natureza intrínseca, essencial de nossa existência, seja ela iluminada ou não. Do ponto de vista do vazio, ambas são igualmente desprovidas de qualquer tipo de realidade intrínseca. O que diferencia um estado não iluminado de um estado iluminado é o conhecimento e a experiência do vazio. O conhecimento e a experiência do vazio do samsara por si só é o nirvana. A diferença entre samsara e nirvana é um estado de espírito. Assim, levando isso em conta, é legítimo perguntar: o budismo está sugerindo que tudo nada mais é do que a projeção da nossa mente? Essa é uma questão crítica que suscitou diferentes respostas de professores budistas ao longo da história do budismo. Por um lado, grandes mestres argumentaram que, em última análise, tudo, até nossa experiência do sofrimento e da felicidade, nada mais é do que uma projeção de nossa mente. Mas existe outra vertente que argumentou com veemência contra essa forma extrema de subjetivismo. Essa segunda vertente afirma que, embora se possa, em certo sentido, entender tudo, até mesmo as próprias experiências como criações da própria mente, isso não significa que tudo esteja apenas na mente. Eles argumentam que é preciso manter um grau de objetividade e acreditar que as coisas de fato existem. Embora essa vertente também afirme que a consciência desempenha um papel na criação de nossa experiência e do mundo, ao mesmo tempo existe um mundo objetivo. Há outra coisa que penso que se deva entender em relação ao conceito budista de nirvana. Nagabuddhi, um aluno de Nagarjuna, afirma que: “A iluminação ou a liberdade espiritual não é uma dádiva que alguém possa lhe dar, nem tampouco a semente da iluminação é algo que pertença a alguma outra pessoa”. O que isso implica é que o potencial para a iluminação existe naturalmente em todos nós. O aluno de Nagarjuna prossegue, perguntando: “O que é o nirvana, que é a iluminação, o que é a liberdade espiritual”? Em seguida ele responde; “A verdadeira iluminação  não é nada até que a natureza do próprio ser seja plenamente realizada”. Essa natureza do próprio ser é o que os budistas chamam de luz clara derradeira ou natureza interna radiante da mente. Quando isso estiver plenamente cumprido ou realizado, isso é a iluminação, isso é a verdadeira budheidade. Podemos ver que, quando falamos de iluminação e nirvana, que são frutos das realizações espirituais de cada um, estamos falando de estado de espírito. Do mesmo modo, quando falamos das ilusões que obstruem nossa realização desse estado iluminado, também estamos falando de estados de espíritos – estados de espíritos iludidos. Estamos nos referindo em particular às ilusões baseadas em uma maneira distorcida de apreender o próprio ser e o mundo. A única maneira de podermos eliminar esse entendimento errado, essa maneira distorcida de apreender o próprio ser e o mundo, é cultivando uma compreensão da verdadeira natureza da mente. Em suma, os ensinamentos do Budha identificam: por um lado, um estado de espírito indisciplinado com o sofrimento e, por outro, um estado de espírito disciplinado com a felicidade e a liberdade espiritual. Esse é um ponto essencial. PENSAMENTO VÁLIDO E INVÁLIDO. No budismo, mente tem um significado amplo que abrange todo o espectro da experiência consciente, incluindo todos os pensamentos e emoções. Um fato natural – suponho que se possa chama-lo de lei psicológica – de nossa experiência objetiva é que dois pensamentos ou emoções diretamente opostos não podem coexistir ao mesmo tempo. A partir de nossa experiência cotidiana normal, sabemos que existem pensamentos que podem ser classificados como válidos e inválidos. Por exemplo, se um determinado pensamento corresponde à realidade, ou seja, se existe uma correspondência entre um estado de coisas no mundo e a percepção que temos dele, então se pode chamar isso de pensamento válido ou de experiência válida. Mas também temos pensamentos e emoções completamente contrários à maneira como as coisas se apresentam. Em alguns casos, podem ser formas de exagero, mas em outros podem ser diametralmente opostos à maneira como as coisas realmente são. Esses pensamentos e emoções podem ser chamados de inválidos. Os textos budistas, especialmente aqueles que lidam com os modos de conhecimento, fazem essa distinção entre pensamentos e emoções válidos e inválidos para discutir a cognição válida e seus resultados. O que queremos dizer é que, para que um empreendimento seja bem sucedido e leve à realização de um objetivo, são necessários pensamentos e emoções válidos. Nos textos budistas, o alcance da mais alta liberação espiritual é considerado fruto de pensamentos e emoções válidos. Por exemplo, segundo os ensinamentos budistas, considera-se que o principal fator que dá origem à iluminação é a verdadeira percepção da natureza da realidade. A verdadeira percepção da natureza da realidade é uma maneira válida de conhecer as coisas, tais como a natureza do mundo. A compaixão, o altruísmo e o bodhichita – o espírito da iluminação – são parte integrante dessa verdadeira percepção da realidade e, assim, baseiam-se em pensamentos válidos. Embora o altruísmo e a compaixão sejam mais emoções do que pensamentos cognitivos, o processo que leva à realização da compaixão Universal e do bodhichita envolve a comparação de verdades e falsidades. Isso é um processo de cultivar maneiras válidas de ver e experimentar as coisas. Portanto, podemos dizer que ser um Budha em si é uma consequência de pensamentos e emoções válidos. Pelo contrário, podemos ver a experiência não iluminada (samsara) como produto de modos de experiência inválidos. Por exemplo, segundo o budismo, a raiz fundamental de nossa existência não iluminada é a ignorância. A principal característica dessa ignorância é uma percepção distorcida do mundo e de nós mesmos. Mas uma vez, pensamentos e emoções inválidos, maneiras inválidas de ver e experimentar as coisas e nós mesmos, são, no final das contas, a origem de nosso sofrimento e de nossa não iluminação. Em última análise, pensamentos e emoções válidos estão relacionados com a felicidade e com a liberdade espiritual, enquanto pensamento e emoções inválidos estão relacionados com o sofrimento e com o estado não iluminado. AS DUAS VERDADES. Ao treinar a mente, desenvolvemos, intensificamos e aperfeiçoamos pensamentos e emoções válidos, assim como impedimos, minamos e acabamos por eliminar as formas inválidas. As múltiplas abordagens do treinamento da mente têm dois aspectos principais. Um deles é o desenvolvimento da percepção ou da sabedoria, ou seja, desenvolver essas maneiras válidas de pensar. O outro é o método ou os meios habilidosos. Esse modo de ver a essência dos ensinamentos do Budha como ensinamentos sobre conhecimento e sobre método corresponde maravilhosamente a uma observação de Nagarjuna, quando diz que todos os ensinamentos do Budha devem ser compreendidos por meio das duas verdades: a verdade convencional e a absoluta. É preciso entender os ensinamentos essenciais das quatro nobres verdades em termos dessas duas verdades. No entanto, quando falamos sobre a natureza das duas verdades, devemos entender que elas não são dois reinos independentes e sem relação. As várias escolas filosóficas têm entendimento diferentes dessas duas verdades. Quando falo sobre elas, meu entendimento está fundamentado na perspectiva dos pensadores indianos Mahyamika, com relação aos quais tenho uma inclinação particular baseada na admiração. Segundo a visão Madhyamika, a realidade convencional é constituída pela experiência comum no reino da causa e efeito (karma). Esse é o reino da multiplicidade, no qual vemos operarem as diversas leis da realidade. Esse nível de realidade é chamado de verdade convencional, porque a verdade de nossa experiência nesse nível é específica a uma maneira convencional ou normal de entender o mundo. Se formos mais além, descobrimos que todas as coisas são o resultado de muitas coisas e condições. A origem das coisas e acontecimentos depende de fatores múltiplos. Qual a implicação dessa realidade de interdependência? A implicação é que nenhuma coisa, nenhum acontecimento, incluindo o próprio eu de cada um, possui uma realidade independente ou intrínseca. Essa ausência de realidade independente é chamada de verdade absoluta. A razão pela qual é chamada de verdade absoluta é que ela não é óbvia para nós, em nosso nível comum de percepção do mundo. É preciso ir mais adiante para encontrá-la. Essas duas verdades são, na realidade, dois lados da mesma coisa – duas perspectivas de um mesmo e único mundo. O princípio das duas verdades é muito importante porque fala diretamente ao nosso entendimento da relação entre nossa percepção e a realidade do mundo. Encontramos na literatura budista indiana inúmeras conversas, debates e análises sobre como a mente, ou a consciência, apreende o mundo. Surgem perguntas como: qual a natureza da relação entre nossa experiência subjetiva e o mundo objetivo? E até que ponto nossas experiências são constituídas pelo mundo que apreendemos? Penso que a razão pela qual essas questões foram tão intensamente discutidas no budismo é que sua resposta tem um papel crucial no desenvolvimento de nossa mente. OS DOIS ASPECTOS DA BUDHEIDADE. A esses dois níveis de realidade correspondem as duas dimensões do caminho: método e sabedoria. E porque há duas dimensões principais do caminho, existem dois aspectos do estado resultante de budheidade. Um deles é o corpo formal de um Budha, e o outro é seu corpo verdadeiro, a verdadeira realidade de uma mente iluminada. O corpo formal é definido como a aspecto de um ser plenamente iluminado, que existe puramente em relação aos outros. Ao assumir formas e aparências tão diversas, um ser plenamente iluminado pode realizar todo tipo de atividade para assegurar o bem-estar dos outros. O corpo verdadeiro de um Budha é definido como o aspecto que existe em relação a outros Budhas. A razão para tal é que o corpo verdadeiro só é diretamente acessível a um ser plenamente iluminado. É só assumindo um corpo formal que o corpo verdadeiro pode se manifestar e realizar atividades benéficas para seres não iluminados. Assim, a budheidade pode ser considerada a realização tanto do interesse pessoal de uma pessoa quanto do interesse dos outros. Tornar-se um Budha significa que uma pessoa compreendeu plenamente a verdadeira natureza da realidade e desenvolveu plenamente o desejo de beneficiar outras pessoas. Portanto, um Budha é uma manifestação completa tanto de sabedoria quanto de compaixão. Livro A Vida de Compaixão. Abraço. Davi.

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