sexta-feira, 16 de setembro de 2016

VI. O EVANGELHO DO BUDHA.

Budismo. Texto do Yogi Kharishnanda Saraswati (1922-2001). FUNDAÇÃO DO REINO DA VERDADE. Capítulo 1. O SERMÃO DE VARANASI OU BENARES. O Senhor Budha voltou para o lugar onde estavam os cinco eremitas que, ao verem aproximar-se o antigo mestre, resolveram não lhe dar mais esse título, mas chama-lo pelo nome, pois diziam entre si: Ele quebrou o seu voto e fracassou na santidade. Já não é dos nossos, mas apenas Gautama, um homem que vive na abundância e se entrega aos prazeres mundanos. Todavia, quando Bem aventurado se aproximou deles, ergueram-se os cinco inconscientemente para recebe-lo e saudá-lo, embora o chamassem pelo nome e o tratassem como amigo. O Bem aventurado lhes disse: Não chamem aoTathágata pelo seu nome nem dê a ele o trato de amigo, porque já é Budha, o Iluminado, que olha todos os seres com a mesma compaixão, e por isso o devem chamar de pai. É mau faltar com respeito ao pai. É pecado menosprezá-lo. O Tathágata não crê que a austeridade seja o caminho para a salvação. Porém, isso não quer dizer que se entregue aos prazeres mundanos e viva na abundância. O Tathágata encontrou o caminho do meio. A abstenção de carnes ou pescados, raspar a cabeça ou trançar o cabelo, vestir-se com túnica grosseira, cobrir-se de pó e oferecer sacrifício a Ani, nada disso purificará aquele que não se libertou do erro. A leitura dos Vedas, as dádivas aos sacerdotes, a mortificação pelo calor ou pelo frio, e outras penitências semelhantes com intuito de alcançar a imortalidade, não purificam quem não se libertou do erro. A ira, a embriaguez, a teimosia, a hipocrisia, a presunção, a maledicência, a arrogância, as más intenções, são impurezas e certamente não são limpas pelas mortificações corporais. Permitam que eu mostre a vocês o CAMINHO DO MEIO que é equidistante dos extremos viciosos. O devoto extenuado pela penitência confunde a sua mente, e seus pensamentos são doentios. A austeridade mortificante não constitui meio eficaz para subjugar os sentidos da percepção. Aquele que alimenta sua lâmpada com água em vez de azeite não dissipará as trevas, e nem é possível avivar o fogo com lenha podre. As mortificações são tão penosas quanto inúteis; e mesmo que o homem leve uma vida austera, não poderá emancipar-se da escravidão da personalidade se não extinguir o fogo da concupiscência. Toda mortificação é inútil se a personalidade persiste em desejar os prazeres do mundo e os deleites do céu. Porém, quem subjuga a personalidade está livre de concupiscência, não deseja prazer nenhum, nem mundano nem celeste, e por isso não o contaminará a satisfação de suas necessidades naturais. Que coma e beba para a manutenção do corpo. A água que rodeia a flor de lótus não molha as suas pétalas. Toda sensualidade é enervante. O homem sensual é escravo de suas paixões, e degrada-se de maneira vil ao buscar o prazer. Porém, não é mau satisfazer as necessidades da vida. Ao contrário, é nosso dever manter a saúde do corpo, porque de outra maneira não poderíamos manter acesa a lâmpada da sabedoria, nem dar fortaleza e lucidez à mente. Esse é, Oh! Devotos, o caminho equidistante dos dois extremos. E os cinco devotos tornaram-se os primeiros discípulos do SenhorBudha. O Bem aventurado falou bondosamente aos seus discípulos, mostrando compaixão pelos erros deles e representando-lhes a inutilidade de seus esforços. A pequena desconfiança que existia no coração deles desapareceu ao calor e persuasão das palavras do Mestre. Então o Bem aventurado pôs em movimento a Roda da Lei, e começou a pregar aos cinco discípulos, abrindo-lhes a porta da imortalidade e expondo-lhes as excelências do Nirvana. Quando o Senhor Budha começou o sermão, os mundos estremeceram de júbilo. Os devas (anjos) abandonaram a sua mansão celeste para ouvir as doces palavras da Verdade; os santos que já haviam saído deste mundo congregaram-se em torno do Grande Instrutor para receber as felizes novas; e até os animais gozaram do benefício que fluía de suas sábias palavras. Todas as criaturas, deuses, homens e animais escutaram e compreenderam, cada qual em seu grau de inteligência, a luminosa mensagem de libertação. Assim disse o Senhor Buda: Os raios da Roda são as regras da retidão de conduta. A justiça é a uniformidade de sua circunferência; a sabedoria é a sua faixa; a meditação é o cubo em que se fixa o eixo da verdade inflexível. Aquele que percebe a existência da dor e conhece a sua causa, o seu remédio e a sua extinção, compreende as Quatro Nobres Verdades e está em bom caminho. Seu reto propósito será a luz que iluminará seus passos, e a palavra verdadeira o seu refúgio. Caminhará em linha reta, porque reta é a conduta. O trabalho honroso terá seu consolo; seus esforços serão seus passos, seus bons pensamentos, seu hálito, e a paz será sua companheira inseparável. Tudo quanto teve princípio terá fim. É vão todo cuidado com a personalidade, todas as atribulações que a afetam são passageiras, e se desvanecerão como um pesadelo quando o sonhador acorda. Quem desperta para o conhecimento da verdade, livra-se de todo temor e conhece a futilidade de suas inquietações, ambições e sofrimentos. Acontece que, às vezes, ao sair de um banho, a pessoa pisa numa corda úmida e a confunde com uma serpente; e horrorizada, sofre a agonia idêntica à causada por um picada venenosa. Quão alegre ficará o homem ao reconhecer o seu engano e a não existência de tal serpente! O motivo de seu espanto está no seu erro, na sua ignorância e ilusão. Quando souber que pisou numa corda, reconquistará o sossego e a tranquilidade. Essa é a atitude de quem conhece a ilusão da personalidade, e que a causa de todas as suas dores, sofrimentos, inquietações e vaidades é uma miragem, uma sombra, um sonho. Feliz aquele que vence o egoísmo. Alcança a paz e encontra a Verdade. A Verdade liberta-nos do mal; não há no mundo libertador igual. Confiem na Verdade, mesmo que não sejam capazes de compreendê-la, mesmo que no começo a sua doçura pareça amarga. O erra extravia; a ilusão é a mãe do mal, que embriaga como bebida fermentada; porém muito logo se desvanece, deixando o homem abatido e desgostos. A personalidade é uma febre, uma visão passageira, um sonho; porém, a Verdade é sublime, saudável, eterna. Unicamente a Verdade é imortal, permanece para sempre. Exposto esse ensinamento, o venerável Kaudinya, o discípulo mais idoso, viu a Verdade com os olhos do espírito e exclamou: Certamente, Oh! Senhor Budha, o Senhor encontrou a Verdade! E os devas (anjos), os santos e os espíritos bons das gerações mortas, que ouviram o sermão do Tathágata, receberam alegres a doutrina e exclamaram: Em verdade o bem aventurado comoveu a Terra. Pôs em movimento a Roda da Lei, sem que ninguém no Universo, deuses e homens, possam movê-la em sentido contrário. A mensagem da Verdade será proclamada em todo o mundo, e a justiça, a boa vontade e a paz reinarão na Terra. Capítulo 2. O PAI DO BUDHA. O Budha estava em Radjagriha, quando recebeu um recado de seu pai, Suddhodana, que dizia: Desejo ver meu filho antes de morrer. Todos têm recebido o benefício de sua doutrina, menos seu pai e seus parentes. Oh! Tathágata a que o mundo adora. Seu pai o espera, como o lírio impaciente aguarda a saída do Sol. O Senhor Budha atendeu ao pedido de seu pai, e se pôs a caminho para Kapilavastu. Esse acontecimento foi conhecido por toda a Comarca, cujas pessoas diziam: O príncipe Sidarta, que deixou seu lar para adquirir luz e conhecimento, volta iluminado. Suddhodana saiu para receber o paríncipe, e acompanhado da família real e de seus ministros. Ao vê-lo de longe, admirou-se da majestade de seu porte e da beleza de sua fisionomia, e alegrou-se em seu coração sem que seus lábios conseguissem proferir uma palavra. Realmente aquele era seu filho, outrora o príncipe Sidharta, o herdeiro do trono, porém agora transformado em Budha, o Bem aventurado, o Santo, o Iluminado, o Tathágata, o Senhor da Verdade, o Instrutor do Mundo. O rei Suddhodana desceu do carro e foi ao encontro de seu filho, dizendo-lhe: Faz sete anos que não vejo você, e com que impaciência esperava este momento! O Senhor Budha sentou-se em frente de seu pai, que avidamente o olhava sem atrever-se a chama-lo pelo nome. Depois, ele lhe disse:Sidharta, junte-se ao seu velho pai e seja de novo seu filho. Porém, ao ver a serena firmeza de seu filho, reprimiu seus sentimentos dolorosos. E assim o rei, sentado em frente de seu filho, gozava em sua aflição e sofria em seu gozo. Podia ufanar-se de seu filho, porém sofria ao pensar que não seria ele o seu herdeiro. O rei disse ao Senhor Budha: Queria oferecer a você o meu reino; porém, você faria tanto caso desta oferta com de um punhado de cinzas. O Senhor Budha respondeu-lhe; Sei que o coração do rei transborda de amor e está profundamente triste por causa do seu filho. Porém, os amorosos laços que o ligam ao filho que perdeu hão de liga-lo com igual bondade a todos os seres, ou em lugar deste filho, receberá outro maior do que Sidharta. Receberá o Budha, o Mestre da Verdade, o pregador da Justiça; a paz do Nirvana inundará o seu coração. Suddhodana estremeceu de alegria ao ouvir as palavras suaves de seu filho, e de mãos untas exclamou com os olhos banhados de lágrimas: Que transmutação maravilhosa! Minha dolorosa tristeza se desvaneceu. Antes, eu estava pesaroso e meu coração aflito, porém agora colho o fruto de sua magna renúncia. Movido de profunda compaixão, você fez muito bem em renunciar às mesquinhas manifestações do régio poder, para cumprir seus nobres propósitos de religiosa devoção. Você encontrou o caminho e já pode pregar a verdade ao mundo ansioso por libertação. Segundo relatam as Escrituras Sagradas, no vasto prado às margens do Kohana, o Mestre sentou-se dominando a multidão respeitosa ali congregada para ouvir a sua palavra. Budha estava sentado à direita do rei, seu pai: ao redor se agrupavam os magnatas da corte, e a seus pés estava Yasodhara, que com seu manto prateado cobriu as pregas do pobre manto amarelo do seu esposo. A noite caiu sobre os ouvintes, como celestial donzela extasiada de amor, cujas tranças de cabelo eram como ondulantes nuvens; as belas estrelas, as pérolas e os diamantes de sua coroa: a Lua, seu diadema, e as densas trevas teciam a sua vestimenta. Assim disse o Senhor Budha: Os livros ensinam que as trevas eram o princípio e que Brahma meditava solitário naquela noite. Não busquem ali Brahma nem o Princípio. Olhos mortais não podem vê-lo, nem a mente humana é capaz de conhecer. Erguerá um véu após outro, mas sempre encontrará outro véu atrás. Os astros rodam e não perguntam: Basta que a vida e a morte, a alegria e a dor subsitam, assim como a causa e o efeito o transcurso do tempo e o incessante fluxo e refluxo da existência que é sempre mutável e desliza como um rio, cujas ondas lentas ou rápidas se sucedem umas às outras desde sua longínqua fonte até o mar onde deságuam. O Sol evapora o mar e restitui ondas perdidas em forma de aveludadas nuvens, que gotejarão montanhas abaixo, para refluir de novo, sem paz nem trégua. Isso basta para se saber quão ilusórios são os céus, as terras, os mundos e as mudanças que o alteram em potentes rodas de lutas e violências, cujo giro turbilhonante ninguém pode deter nem inverter. Não supliquem, porque as trevas não iluminarão. Nada peçam ao silêncio, porque ele está mudo. Nada esperem dos deuses implacáveis, oferecendo-lhes hinos e dádivas. Não pretendam suborna-los com sacrifícios de sangue. Devemos buscar a libertação em nós mesmos. Cada qual cria o seu próprio cárcere. Cada qual tem tanto poder quanto os mais potentes. Porque tanto para as potestades que estão em cima, ao redor e embaixo de nós, como para toda a carne e toda a vida, a ação engendra o prazer e a dor. Do que foi provém aquilo que é e o que será, melhor ou pior. Vocês podem elevar o seu destino à maior altura do que o de Indra ou rebaixá-lo mais do que o da larva; o que sobe pode cair; o que cai pode subir. Os raios da roda não param de girar. Oh! Vocês que sofrem. Saibam que sofrem porque querem. Ninguém os excita à vida nem nela os retém condenados à morte, girando sobre a roda e abraçando seus raios de agonia, seu aro de lágrimas, seu cubo de rija madeira. Mais fundo que o inferno, mais alto que o céu, além das mais longínquas estrelas, mais além da morada de Brahma, há um Poder estável e divino, existente antes do princípio e que não terá fim, eterno como o tempo, seguro como a certeza, que impele para o bem e é súdito de suas própria leis. A um toque seu, florescem os rosais e sua mão modela as pétalas de lótus, e no obscuro solo e nas silenciosas sementes, tece o enfeite da primavera. Seu pincel colore as luzentes nuvens, e no pescoço do pavão real engasta suas esmeraldas. As estrelas são o seu porto, e o relâmpago o vento e a chuva seus escravos. Constrói nas trevas o coração do homem, e na obscuridade do ovo o faisão de colo multicor; sempre ativo, transmuta a ira e o ódio em amor. Seus tesouros são os cinzentos ovos no ninho do colibri dourado; as suas hexágonas favas de abelha são suas redomas de mel; a formiga obedece aos seus mandatos e a pomba branca o conhece bem. Solta as asas da águia toda vez que com pressa volta ao seu ninho; conduz a loba para junto aos seus lobinhos; e encontra sustento e amigos para os seres abandonados. Nada o repugna, nada o detém. Tudo ama. Enche os seios maternais de doce leite, bem como de veneno mortífero os dentes da serpente. Concerta (pactuar) no interminável dossel (cobertura ornamental) do firmamento a harmoniosa música das esferas móveis; nos seios abismais da Terra esconde o ouro, o ônix, a safira e as lazulitas (fosfato de alumínio natural). Envolto perpetuamente no mistério, oculta-se na espessura dos bosques e alimenta ao pé dos cedros admiráveis rebentos com novas fibras, ervas e flores. Mata e salva sem outro motivo que o cumprimento do destino. O Amor e a Vida são os fios, e a Morte e a Dor as lançadeiras do seu tear. Faz, desfaz e emenda tudo. Com o que faz, supera o que fez. Cada vida do homem é o resultado de suas vidas precedentes. Os erros passados engendram tristeza e sofrimento. A retidão passada traz felicidade. Eles colhem o que semeiam. Olhem para seus campos. O sésamo (variação do gergelim) foi sésamo, e o trigo, trigo. O silêncio e a sombra o sabem. Assim nasce o destino do homem. Vem a vida e colhe o que semeou: sésamo ou trigo, ou ervas venenosas e daninhas que corrompem tanto a ele mesmo quanto a Terra doentia. Porém, se a Terra for bem lavrada e as ervas más extirpadas, sendo semeada em lugar delas as sãs e puras, o solo será formoso e fértil e a colheita será ótima. Se aprende a causa da dor e pacientemente suporta, esforçando-se por pagar as dívidas contraídas por suas culpas passadas, sempre fiel ao Amor e à Verdade; se limpa seu sangue da mentira e concupiscência, e sem prejuízo de outrem sofre tudo mansamente, perdoando as ofensas, pagando o mal com o bem; se dia a dia é compassivo santo, justo, amável e sincero, e extirpa o desejo de onde quer que penetre com raízes até extinguir o apego à vida; se agir assim, terminará a conta de sua vida liquidando e saldando seus débitos, e acrescentando e vivificando os créditos recentes ou longínquos, que também produzirão créditos frutíferos. Quem age assim não precisa do que vocês chamam vida. Realizou o propósito que o fez homem. Já não o torturará a ansiedade nem o mancharão os pecados, nem os prazeres e dores humanas turvarão a sua perpétua paz, nem voltarão a eles mortes e renascimentos. Entra no Nirvana. Uniu-se a Vida e, no entanto, não vive. É feliz porque deixou de existir, porém não deixou de ser. E o Senhor Budha retirou-se para o bosque próximo da cidade. Livro O Evangelho de Budha. Abraço. Davi.

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