Judaísmo. Texto do Rabino Avraham Cohen. A Verdade: o que é e onde se
encontra? Desde que Aristóteles questionou o que seria “verdade”, muitas mentes
brilhantes têm tentado defini-la; lamentavelmente, sem o lograr. Neste mundo em
que vivemos, infelizmente há muita mentira. Regimes políticos e profissões,
ciências e religiões, artes e literatura, crenças místicas e filosofias, nada
está imune a esse mal. Vivemos sob o império da falsidade. Esta se encontra nos
relacionamentos humanos, nas pregações de pseudo gurus, no discurso político e
mesmo na linguagem "convenientemente" dita diplomática, em que vemos
grandes líderes fazerem declarações quando, de fato, querem dizer algo
totalmente diferente. A realidade é que vivemos cercados da própria mentira
camuflada. O que esperar, então, como resposta, ao tentar falar sobre verdade
àqueles que vivem envoltos em falsidade? Ao tratar do tema, não temos a
presunção de cobri-lo por inteiro. Nosso intuito é tentar demonstrar aquilo que
o judaísmo tem a oferecer acerca de um assunto tão antigo quanto a própria
criação do homem. É muito difícil despertar nas pessoas o desejo de buscar a
verdade. Muitos têm uma noção um tanto ilusória a respeito da palavra
"verdade". Só estariam dispostos a admitir que o homem pode chegar a conhecer
a Verdade se alguém lhes mostrar a verdade total - aquela resposta universal e
completa sobre as questões mais profundas e difíceis - para as quais o homem
tem procurado resposta desde que o mundo é mundo. E, como ninguém consegue
satisfazer esta exigência, concluem, com o ceticismo clássico, que toda verdade
é incognoscível. Mas esse tipo de exigência não expressa uma busca sincera pela
verdade. A busca sincera inclui descobrir tanto as verdades corriqueiras quanto
as supremas, sem exigir, desde logo, respostas definitivas para todas as
perguntas. O que seria, pois, a Verdade? Existiria uma verdade única,
intangível e absoluta? Antes de analisar o que o judaísmo tem a dizer a
respeito, vejamos algumas opiniões de grandes filósofos e pensadores dos séculos
passados. Há uma corrente de pensamento que sustenta não haver nenhuma verdade
além daquilo que é perceptível aos órgãos sensoriais. A "verdade" é a
realidade como ela é. Em grego, a palavra para verdade é alithia, a dizer, o
não-oculto, não-escondido, não-dissimulado. Verdade é tudo o que se manifesta
aos olhos do corpo e do espírito. Verdade é a manifestação de tudo o que é ou
existe tal como é. Por exemplo, se ao comer certo alimento, percebermos que é
amargo, o gosto do alimento deixa de ser uma suposição, torna-se um dado, uma
certeza. E, se virmos que a cor de uma flor é vermelha, não nos caberá dúvidas
quanto à sua coloração. Outra corrente de pensamento, no entanto, advoga que
cada um tem sua própria verdade, não existindo, portanto, a verdade única.
Segundo estes pensadores, não há percepções e sensações uniformes. Estas
diferem de ser para ser e de situação para situação. Um exemplo: coloca-se uma
mão na água fria e a outra na água quente; e, a seguir, ambas em água morna.
Uma mão terá a sensação de que a água está fria enquanto a outra, a de que está
quente. Afinal, em qual das mãos está a razão? Certamente, as duas sensações
são verdadeiras, pois cada mão tem uma experiência anterior que justifica a sua
afirmação. Já o judaísmo defende a existência de uma verdade única e absoluta,
sendo que o ser humano pode, até um certo nível, chegar a alcançá-la.
Perguntamo-nos, qual das opiniões acima seria "a" verdadeira? Talvez
todas o sejam; talvez não. Trata-se de uma discussão controversa. Rabi Nachman
de Breslav (1772-1810) afirmava: "A verdade é uma só. Mas muitas verdades
são mentiras". Refletindo um pouco sobre suas sábias palavras, poderemos
entender o ensinamento do grande mestre chassídico. O judaísmo e a verdade.
O Talmud afirma que "o selo de D'us é a verdade". O Eterno é a fonte
de todas as virtudes e da absoluta perfeição. Por que então, o "selo"
de D'us é a verdade e não um dos outros Atributos Divinos, como a compaixão ou
a justiça? De acordo com o sábio Maharal de Praga (1513-1609), isto demonstra
que assim como D'us é Único, a verdade também é uma só, e assim como o Eterno é
imutável, também a verdade o é. Todos os outros atributos são, de certa forma,
relativos. Ao encarar uma situação específica, podemos demonstrar pouca ou muita
compaixão, pouca ou muita paciência. Mas, quando se trata da verdade, não há
verdades parciais; a verdade é ou não é. Como reconhecer então o que é verdade?
O "Aurélio", Dicionário da Língua Portuguesa, define verdade como
sendo a "conformidade com o real". Isto é bastante complicado, já que
determinar o que é ou não "real" não é tarefa simples. O que é real
para uns, por exemplo, anjos e alma, pode não ser para outros. Segundo essa
definição, para determinar o que é verdadeiro, necessitamos conhecer muito bem
a realidade. E como consegui-lo? Como distinguir o que é real? Como separar o
fato concreto da opinião subjetiva; como distinguir aquilo que é real, "de
verdade", daquilo que é apenas fruto de uma visão pessoal ou da crença de
um determinado grupo de pessoas? Ilustrando-o com um exemplo: quatro homens
cegos encontram um elefante. O primeiro agarra a pata do animal e acredita ter
agarrado o tronco de uma árvore. O segundo segura a cauda e pensa tratar-se de
um chicote. O terceiro toca a trompa do elefante e julga ser uma mangueira,
enquanto que o quarto homem apalpa o lado do corpo do elefante e tem certeza de
que se trata de uma parede. Qual a moral desta história? Muitos usam esta
parábola para explicar que tudo, na vida, é relativo. Outros usam-na para
exemplificar como agem os diferentes povos: cada povo tira suas próprias
conclusões, diferentes entre si, e, presumindo estar com a razão, luta para
impor "a sua verdade". Mas cabe a pergunta: o elefante existe?
Naturalmente! O elefante é real e lá está! É uma realidade objetiva,
independente de qualquer opinião. A verdade não muda, é uma só, incontestável,
ainda que a maioria não concorde com a mesma. Onde, então, teriam errado os
quatro cegos? Tiraram suas conclusões sem ter informações suficientes. O que,
então, deveriam ter feito? Deveriam ter compartilhado as respectivas impressões
e, unindo as partes, obteriam uma "visão", uma ideia mais clara e
objetiva. Daí a chegar à identificação do elefante, pouco faltaria. Quando
isolamos uma única informação de um conjunto, muito provavelmente, a análise
resultante será distorcida. Imaginem um pai que, ao entrar no quarto das
crianças, vê o filho se aproximar para bater na irmãzinha. O pai pune apenas o
filho, mas o que ele não viu foi que a menina havia provocado o irmão pouco
antes dele chegar. Para descobrir a verdade e fazer justiça, precisamos
analisar o todo. A palavra Emet, verdade, em hebraico, é composta de três
letras: Alef, Mem e Tav. Alef é a primeira letra do alfabeto hebraico; Mem, a
do meio, e Tav, a última. Há uma mensagem contida nesta palavra: para alcançar
a verdade é necessário analisar o começo, o meio e o fim, senão, teríamos
apenas uma faceta da questão em pauta. Assim sendo, seria impossível ter uma
visão clara e verdadeira do assunto. A verdade é complexa, multifacetada e, por
vezes, muito difícil de ser depreendida. No entanto, não é relativa; é objetiva
e real. Quando, face a uma questão qualquer, assumimos o compromisso e a
franqueza de descobrir o maior número possível de informações sobre a mesma,
passamos a ter um retrato mais claro da realidade objetiva. Ou seja, só estando
constantemente abertos a desvendar as partes do enigma na busca pelo conjunto
completo, pelo todo, chegaremos à verdade. Pensar por si próprio é ser capaz de
alcançar a verdade por meios próprios. Aliás, uma das condições para o
desenvolvimento da inteligência é não fazer questão de ter uma opinião
diferente apenas para "ser diferente". O importante é fazer questão
de tudo analisar por si só e chegar a uma conclusão, sem necessitar da
aprovação do grupo ou de quem quer que seja. É mais importante ser capaz de
examinar qualquer questão por si próprio do que ter uma opinião diferente dos
demais. O atributo místico para a verdade é Tiferet, que literalmente significa
beleza, harmonia. O Maharal define verdade como sendo uma figura inteira e
completa - algo que inclui passado, presente e futuro, que inclui a realidade
interna e externa. A verdade é a síntese de um todo - a harmonia. Se algo for
verdadeiro, deve ser por completo espiritual, física e matematicamente, bem
como filosoficamente. Se uma ideia é aplicável apenas em um nível, mas não em
algum outro, não pode ser considerada uma verdade absoluta. O Maharal considera
a verdade transcendental como a única verdade real, na mais pura acepção da
palavra. Conta-se que Rabi Shneur Zalman de Liadi, grande sábio chassídico,
dedicou-se durante 21 anos a alcançar a tão bela e valiosa virtude. Nos
primeiros 7 anos, lutou para entender qual a definição exata da verdade. Nos 7
seguintes, afastou-se totalmente da mentira. E ainda precisou de mais 7 anos
para introduzir a verdade no mais profundo de seu ser. Cada um de nós deve
esforçar-se para atingir um nível tão elevado de veracidade a ponto de alcançar
aquilo que diz o Salmista: "Falar a verdade em seu coração". O Talmud
(Macot 24a) relata um exemplo de alguém que incorporou a verdade a tal ponto
que lhe era impossível agir de forma diferente. Rav Safra tinha um artigo a
vender. Alguém interessado em comprá-lo se aproximou do Rabino, oferecendo seu
preço. Como o sábio estava recitando o Shemá, não pôde responder a seu
interlocutor. Este não havia percebido que Rav Safra rezava e pensou que sua
oferta fora muito baixa. Então, elevou a oferta. Novamente não obteve resposta
do Rabino e novamente imaginou que este não aceitara a oferta. Dobrou mais uma
vez o valor. O Rabino, que ainda estava absorto em meio ao Shemá, não podia
interromper a oração e continuou em silêncio. O outro lançou mão de uma última
tentativa, aumentando ainda mais o valor. Depois que Rav Safra terminou a
leitura, disse ao comprador que o negócio estava fechado, mas que só aceitaria
vender o objeto pelo primeiro preço oferecido, já que, em pensamento,
concordara originalmente com aquela oferta. Eis um trecho do filósofo
brasileiro Olavo de Carvalho (1947- ),
que ilustra o comportamento de Rav Safra: "Por onde começa o treinamento
da consciência para admitir a verdade? O primeiro grau no aprendizado da
verdade consiste em aprender a reconhecer aquelas verdades que só você sabe e
que ninguém, fora você, pode confirmar ou negar. Por exemplo, só você conhece
suas intenções, só você conhece os atos que praticou em segredo, só você
conhece os sentimentos que não confessou. Você, nesses casos, é a única
testemunha, e é aí que você vai conhecer a diferença radical e intransponível
entre verdade e falsidade. As pessoas que vivem negando a existência de
verdades não conhecem essa experiência, nunca deram senão falso testemunho de
si mesmas ante o tribunal da consciência, mentem para si mesmas e por isto
sentem que tudo no mundo é mentira". Alguns exemplos da vida. Pode-se
debater durante horas acerca da verdade, sem no entanto chegar a uma definição
clara e convincente. Para nós, judeus, mais importante do que a descoberta da
definição da própria verdade é inserir seus ensinamentos em nosso cotidiano.
Qual é, por exemplo, o valor atribuído à verdade? Ou seja, que preço estamos
dispostos a pagar para zelar pela verdade? Certamente não há um valor unânime,
cada pessoa tem seu próprio preço, que se transforma no seu próprio valor. Pois
o valor de uma pessoa é proporcional ao preço que está disposta a pagar pela
verdade. Uma pequena história pode ilustrar a afirmação acima. Havia um judeu
que não acreditava na vida após a morte e, consequentemente não acreditava que
existisse vida no Olam Habá, o Mundo Vindouro. Certa vez, durante uma discussão
entre amigos, quis demonstrar sua descrença em relação a estes conceitos, e,
para tanto, "pôs à venda" o seu direito ao Mundo Vindouro por uma
simples moeda. Um dos presentes, que acreditava no Olam Habá, aproveitou a
ocasião e a venda se concretizou. De volta à casa, o homem conta à esposa
acerca do "negócio". Ela fica muito zangada, ao ponto de questionar
seu casamento, afirmando não estar disposta a viver com alguém que negava os
fundamentos do judaísmo. Determinada, a mulher convence o marido a retificar o
erro, "recomprando" seu quinhão para o Mundo Vindouro. Mas, quando
quis se explicar ao comprador, este não aceitou fazer a "devolução" pelo
mesmo valor. "Para recuperar o que lhe toca do Olam Habá, você terá que me
pagar dez mil moedas". Quanto valia o Mundo Vindouro para este judeu,
antes de vendê-lo? Uma única moeda. No entanto, depois de tê-lo perdido e
recuperado, seu "tesouro" valia dez mil vezes mais! O mesmo acontece
com a verdade. Cada um de nós é avaliado de acordo com o preço que está
disposto a pagar para alcançar a verdade. O ser humano, criado à imagem de D'
us, não gosta do que não é verdadeiro. A busca pela verdade se manifesta desde
cedo. E é mais perceptível nas crianças, por sua pureza e autenticidade. Elas
não aceitam mentiras e ficam nervosas quando percebem que não lhes dizem a
verdade. Insistem e perguntam aos adultos se algo "é de verdade ou de
mentira". Mesmo quando adultos, o sentimento da busca pela verdade
permanece em nós. Um exemplo comum a todos é instintivamente tocar as flores de
um arranjo bonito, cujas cores e beleza nos atraem. Por quê? Por querer a
certeza de serem verdadeiras. O artificial pode impressionar-nos, mas isto não
pressupõe que nos agradará ou nos convencerá. Esta característica está
arraigada em nosso ser. Afinal, o que é a Verdade e como a reconhecer?
Finalizaremos com uma regra simples. Verdade é aquilo que nos leva a fazer o
bem e a cumprir a vontade de D'us. A mentira é exatamente o contrário. Apesar
de a verdade ser o alicerce do mundo, nossos sábios ensinam que há algo ainda
mais importante: a paz! Por isso, esclarecem que há situações específicas nas
quais se pode mudar ou omitir a verdade, se o objetivo final for manter a
harmonia e a paz entre as pessoas. Mesmo se, aparentemente, a pessoa estiver
mentindo, estiver sendo falsa, mas seu objetivo for nobre. Contudo, nossos
sábios alertam que a pessoa não deve agir assim de forma corriqueira, para que
a prática não vire hábito e passe a cultivar a mentira e a falsidade. A verdade
é, ao mesmo tempo, frágil e poderosa. Frágil porque os poderes constituídos
podem destruí-la. Poderosa, porque a busca e a exigência do verdadeiro é o que
dá sentido à existência humana. Rabino Avraham Cohen é rabino da Sinagoga
Beit Yaacov, São Paulo. http://www.morasha.com.br.
Abraço. Davi.
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