Cristianismo.
Sermão do Místico alemão Mestre Eckhart (1260-1328) para que os leitores
apreciam uma voz na Idade Média que mesmo sendo clérigo da Igreja Católica
seguia sua intuição, ministrando uma palavra independente e descompromissada do
proselitismo pertinente à época. Foi um dos primeiros a predicar para seus
compatriotas em alemão, coisa que a Igreja proibia pois os discursos as massas
deveriam ser realizados em latim a língua oficial da Igreja. Hoje vemos isso
como um absurdo visto que pouquíssimos do povo conheciam esses vernáculos
naqueles dias, desse modo o termo Idade das Trevas é perfeitamente justificado.
Na verdade a Igreja não tinha interesse em esclarecer o povo (com as Escrituras
Sagradas) pois se o fizesse despertaria uma consciência individual, perdendo
assim a submissão e subordinação coletiva dos mais humildes que eram a grande
maioria. Nesse aspecto os sermões do Mestre Eckhart revestem-se de grande
importância pois ele caminhava na contramão daquilo que seus superiores
hierárquicos diziam, e como sabem foi perseguido pela Igreja passando por um
processo formal de censura. Mestre Eckhart inaugurou a famosa Teologia
Negativa ou Teologia Apofática. É uma teologia que tenta descrever Deus,
o Divino Bem, pela negação para falar apenas em termos daquilo que não pode ser
dito sobre o Ser Perfeito que é Deus. Sintetizando teologia negativa é uma
tentativa de alcançar a unidade com o Divino através do discernimento, ganhar
conhecimento de que Deus pela (apophasis), em vez de descrever o que Deus é.
Nessa negativação da teologia, é aceito que o Divino é Inefável, baseando-se na
ideia de que os seres humanos não podem descrever em palavras a essência do
indivíduo, nem podem definir o Divino, na sua imensa complexidade, relacionadas
com todo o domínio da realidade e, portanto, todas as descrições tentadas, em
última instância, serão falacias e as conceituações devem ser evitadas, com
efeito que, por definição escapa a definição. Nesse panorama vejamos alguns
conceitos referentes a Teologia Negativa: 1. Nem a existência ou inexistência
como nós a entendemos na esfera física, aplica-se a Deus, isto é, o Divino é
abstrato para o indivíduo, para além das já existentes ou não existentes, e não
só no que diz respeito a conceituação toda não sendo possível dizer que Deus
existe, no sentido comum do termo, nem se pode dizer que Deus é inexistente. 2.
Deus é divinamente simples portanto não se deveria reivindicar que Deus é um,
ou três, ou qualquer tipo de ser. 3. Deus não é ignorante, assim, não se deve
dizer que Deus é sábio uma vez que esta palavra implica ensoberbecer pois
sabedoria refere-se, em uma escala divina, que nós só sabemos o que significa
sabedoria, crendo-se, um contexto cultural confinado. 3. Do mesmo modo Deus não
é o mal. Para dizer o que Deus é pode-se descrever pela palavra "bom"
limites ao que Deus significa para os seres humanos individualmente e em massa.
4. Deus não é definível conceitualmente em termos de espaço e localização. 5.
Deus não é uma criação, mas para além disso, não podemos definir como Deus
existe ou opera em relação a toda a humanidade. 6. Deus não é conceitualmente
confinável no tempo. Mesmo que a via negativa essencialmente rejeite a
compreensão teológica como um caminho para Deus, alguns têm tentado fazer isso
como um exercício intelectual, descrevendo só Deus, em termos daquilo que Deus
não é. Um dos problemas observados com esta abordagem, é que parece não haver
base fixa para decidir sobre o que Deus não é, a menos que o Divino seja
entendido como um resumo da experiência plena e única para a consciência de
cada indivíduo, e universalmente, a perfeita bondade aplicável a todo domínio
da realidade. O filósofo contemporâneo francês Jacques Derrida (1930-2004) teve
como base os argumentos filosóficos do Mestre Eckhart quanto a Teologia
Negativa para criar seu projeto que tentava desconstruir a filosofia. Isso se
deu ao criar um método chamado desconstrução. Segundo esse sistema, não se
trata de destruir e sim de decompor os elementos da escrita para descobrir
partes do texto que estão dissimuladas. Essa metodologia de análise centra-se
apenas nos textos. Em seguida, Derrida criou outros dois conceitos: a
indecibilidade, que mostra a impossibilidade de determinar aquilo que é forma
no texto ou fundo ideológica. E o conceito de diferença que parte da análise
semântica dos dois sentidos do infinito latino differre (diferir), o primeiro,
remete para o futuro (tempo), o segundo para a distinção de algo criado pelo
confronto. Vamos agora começar o Primeiro Sermão Alemão do Mestre Eckhart.
"Hoje, mesmo vivendo dentro do tempo, celebramos o nascimento eterno no
qual Deus Pai nasce e incessantemente repete este ato de nascer na eternidade,
por que este nascimento do qual falamos é realizado nesta natureza humana e
inserido no tempo. Diz Santo Agostinho (354-430) "Do que adiantaria que
este nascimento ocorresse sempre se não fosse para ser realizado, dentro de
mim? Que isto ocorra dentro de mim é o que me interessa". Discorramos pois
de tal nascimento, de como ele pode ser realizado em nós e como ocorre na
pessoa virtuosa sempre que Deus Pai fala a sua palavra eterna na alma perfeita.
Pois tudo aquilo que falarei aqui é para ser entendido do homem purificado e
estável que trilha os caminhos de Deus, não, é claro, do homem natural e sem prática,
pois este está totalmente distanciado deste nascimento, além de o ignorar. Um
ditado dos sábios diz: "Quando todas as coisas estavam envoltas em
silêncio, então surgiu em mim uma Palavra Secreta, que veio direto do trono
real, desde o alto". O que se segue deste sermão é todo sobre esta
Palavra. Logo três coisas ficam nitidamente evidenciadas aqui. Primeiramente,
em que localidade exata da alma Deus o Pai dá o Seu recado, onde acontece o
nascimento, e onde a alma é receptiva a tal, pois isto somente pode ocorrer
naquela parte mais pura, elevada e sutil da alma. A verdade é que, se Deus Pai
em sua onipotência pudesse doar a alma algo mais nobre e se a alma por sua vez
pudesse receber Dele algo de mais nobre, então o Pai teria de adiar o
nascimento para a vinda desta excelência maior ainda. Portanto a alma onde este
nascimento ocorreria deve se manter absolutamente pura e viver em nobre estilo,
por completo dona de si mesma e voltada em sua totalidade para o interior, não
saindo a todo instante pelos cinco sentidos para a multiplicidade das
criaturas, mas voltada para dentro, recolhida na parte mais pura. Ali é seu
lugar, ela despreza tudo que for menos. A segunda parte deste sermão aborda a
atitude do homem em relação a este acontecimento, ao recado de Deus, a esta
palavra dentro da alma, a este nascimento. Se for mais conveniente que o homem
coopere para que isto seja efetuado através de seu próprio esforço e mérito, se
o homem deve possuir uma predisposição mental, arquitetar pensamentos,
refletindo na grande sabedoria de Deus. Se isto é o mais favorável para que o
Pai possa vir a nascer na alma. Ou se a pessoa deve subtrair todos os
pensamentos, palavras e ações, bem como todas as imagens preconcebidas geradas
pelo intelecto, mantendo uma atitude receptiva total para com a chegada de
Deus, como se a pessoa, permanecendo inerte, abrisse caminho em seu íntimo para
a ação de Deus. Qual a melhor atitude com respeito a este nascimento? Atentem
que tudo que eu afirmar em seguida será corroborado por dados concretos, para
que se possa observar universalmente que assim é, pois, embora tenha fé total
nas Escrituras, acho mais fácil constatarem-se os fatos através de argumentos
palpáveis. Em primeiro lugar, analisemos as palavras: "Quando todas
as coisas estavam envoltas em silêncio, então surgiu em mim uma Palavra
Secreta". "Mas caro fulano de tal, onde é que está este Silêncio e,
mais ainda, onde está a Palavra Secreta". Como eu acabei de expor, ela
está no lugar mais puro que a alma é capaz de alcançar, na parte mais nobre, no
chão. De fato, na essência mesma da alma, que é sua parte mais Secreta. Ali é
que está o Silencioso "meio", pois ali criatura alguma jamais chegou,
e menos ainda imagem alguma jamais penetrou neste lugar, nem tem a alma deste
lugar qualquer compreensão, e por isto mesmo é que ali ela não está
consciente de nenhuma imagem, quer seja uma imagem gerada por si mesmo, ou
imagem alheia, de alguma outra criatura. O que a alma faz, ela o faz com suas
forças. O que ela compreende, compreende com o intelecto, o que lembra é com a
memória, se quiser amar, usa a vontade e assim ela trabalha com suas forças,
não com sua essência. Todo ato externo está ligado a algum meio. O poder da
visão funciona com os olhos se assim não fosse, não poderia nem usar a visão
nem ver, e assim ocorre também com os demais sentidos. Todo ato externo da alma
é realizado através de algum meio. Mas na essência da alma, ali não ocorre
atividade alguma, pois as forças ali empregadas provêm do chão do ser. Contudo,
é neste mesmo chão que se encontra o silencioso "meio", ali nada
existe senão o repouso e a celebração deste nascimento, deste ato, no qual Deus
Pai fala Sua Palavra, pois é um fato constatado que este lugar a nada é
receptivo exceto à divina essência, sem mediação. Ali Deus entra na alma com
sua força total e não parcialmente. Deus entra pois neste chão da alma. Ninguém
pode tocar este chão da alma, senão Deus apenas. Nenhuma criatura pode penetrar
no chão da alma, deve permanecer de fora, nas "forças". Desde dentro,
a alma se apercebe da imagem através da qual a criatura foi absorvida e
classificada. Pois sempre que as forças da alma percebem uma criatura , elas
começam a funcionar e tecem uma reprodução da criatura, em imagem e semelhança,
a qual é em seguida assimilada pelas forças. É assim que estas forças chegam a
um conhecimento da criatura. Não há criatura que se aproxime mais da alma do
que isso e a alma também por sua vez não se aproxima jamais de uma criatura,
sem antes ter tecido esta imagem dela para si mesma. E através da mediação
desta imagem presente que a alma se achega às criaturas, assinalando-se que a
imagem é algo que a alma constrói com suas próprias forças a partir dos objetos
externos. Quer se trate de uma pedra, um cavalo. um homem, ou o que seja, que
ela deseje conhecer, ela produz a imagem daquilo que ela havia já assimilado, e
é desta forma que ela se une ao objeto. Mas para o homem receber de tal forma
uma imagem, deve ela necessariamente vir de fora, através dos sentidos. Por
consequência, nada há que seja tão ignoto à alma quanto ela mesma, pois as
imagens entram através dos sentidos, logo, dela mesma ela não pode ter imagem
alguma. Assim, de si mesma ela é desconhecida. Por esta razão disse um mestre
que de si mesma a alma não pode obter nem criar imagens. Portanto, ela não tem
meios de se auto conhecer, pois se as imagens emanam através dos canais dos
sentidos, então dela mesma ela não possui imagens. Segue-se que, por falta de
mediação, de si mesma ela é ignota. E deve se saber que por dentro a alma está
livre e esvaziada de todo e qualquer intermediário e imagem, eis porque a ela
Deus pode se unir livremente sem forma e sem semelhança. Se a pessoa diz que um
mestre espiritual qualquer possui força, não se pode atribuir esta força que
ele quiçá possua, senão a Deus sem limites. Quanto mais forte e cheio de
recursos hábeis é o mestre, tanto mais expedito é o seu trabalho, e tanto mais
se constata a simplicidade com que realiza seu trabalho. O homem necessita de
muitos intermediários para produzir obras externas, muito preparo prévio dos
materiais se faz necessário antes que ele execute a obra como estava pensando.
Mas o sol em seu poder soberano faz o seu trabalho de verter luz de forma
imediata, no mesmo instante em que seu brilho aparece, todos os lugares até os
confins da terra se enchem de luz. Quanto mais elevado for o anjo tanto menos
ele necessita de coisas para seu trabalho, de tanto menos imagens ele
necessita, isto se deve ao fato de que ele percebe como unidade tudo aquilo que
seus subalternos percebem como sendo múltiplos. Mas Deus não necessita sequer
de qualquer imagem, tampouco possui Ele qualquer imagem que seja. Sem qualquer
semelhança, intermediário ou imagem, Deus age diretamente na alma, naquele chão
mesmo do qual falávamos, onde imagem alguma jamais penetrou, apenas Ele mesmo
com seu ser. Isto não há criatura que possa fazer. "Como Deus Pai faz
nascer Seu Filho na alma como criatura, imagem ou semelhança?". Não, de
forma alguma, mas assim como Ele o faz nascer na eternidade, é assim, sem tirar
nem por. "Bem, mas neste caso, como Ele O faz nascer?" Vejam: Deus
Pai tem de Si mesmo um conhecimento tão penetrante e irretocável, tão profundo,
Dele de Si mesmo, que não é feito através de imagens. É assim que Deus Pai dá a
luz seu Filho na unidade da natureza divina. É desta forma e apenas desta
forma, note-se bem, que Deus Pai dá a luz o Filho no chao e essência da alma, e
assim se une Deus à alma. Pois se houvesse intermediação de qualquer imagem que
fosse, não haveria união legítima, e nesta união realizada é que reside toda a
felicidade de alma. Açguém poderia levantar a questão de que nada há alma senão
imagens. Não é isto que ocorre, de forma alguma! Se assim fosse a alma não
poderia jamais se tornar abençoada, pois Deus não geraria jamais criatura
alguma da qual se pudesse receber a felicidade inefável, porquanto, se tal
ocorresse, não seria Deus a benção mais elevada e o objetivo final, quando o
contrário é o que ocorre, é a natureza de Deus ser esta bnção, e é sua absoluta
vontade ser o alfa e o ômega de todas as coisas. Nenhuma criatura pode ser a
felicidade de uma pessoa, nem a perfeição desta pessoa aqui na terra, pois o
que é nesta terra a perfeição, ou seja, o somatório total das boas qualidades
da pessoa, é seguida pela perfeição na vida depois desta. Portanto temos que
nos postar e permanecer postados na essência e no chão, e é ali que Deus nos
tocará com sua essência simples, sem a intervenção de qualquer imagem. Nenhuma
imagem representa e aponta pra si mesma. Ela é sempre imagem daquilo que ela
representa. E já que não temos imagem alguma, exceto de coisas externas a nós
(que são absorvidas pelos sentidos, e sempre ficam indicando aquilo de que é
imagem, é impossível atingir a felicidade através de qualquer imagem que seja.
É por esta razão que deve haver um silêncio e uma quietação e é através deste
meio que o Pai virá a ser conhecido e se expressará, dando à luz seu Filho e
realizando a obra que é isenta de imagens. O segundo ponto importante a ser
levado em conta: Qual parte o homem tem que aplicar de si mesmo para chegar a
merecer e ganhar a consumação deste nascimento dentro de si? Será melhor fazer
algo ativamente para isto, como imaginar e sonhar com Céus, ou será melhor
ficar em quietação e silêncio, e deixar que, em vez de imaginar, que fale Deus
e chega a agir através de si, ou seja, uma atitude receptiva à espera de Deus?
O que vou dizer agora refere-se apenas àqueles que já se estabilizaram em algum
grau de atitude correta, que praticaram e assimilaram virtudes, e que estas já
se tornaram coisa natural neles, sem que sequer eles estejam cientes de tal. E
que acima de tudo levem digna vida, permanecendo nos elevados ensinamento de
Nosso Senhor Jesus Cristo. Devem então estar plenamente cônscios de que o
Excelso ensinamento transmitido nesta vida é o silêncio que abre espaço, para
Deus fazer seu trabalho interno na alma. Apenas quando todas as forças forem
retraídas de todos os seus trabalhos e imagens é que a palavra poderá então ser
falada. Foi por isto que ele disse: "Quando todas as coisas estavam
envoltas em silêncio, então surgiu em mim uma palavra secreta". Concluímos
o primeiro sermão na parte II. Abraço. Davi.
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