O Mosaico não tem posicionamento quanto ao cenário político na região da
Crimeia. O texto tem a intenção de trazer a luz a situação dos judeus
residentes na região a décadas e como suas comunidades vivem sua religião
enfrentando os mais difíceis obstáculos e desafios. Uma coisa é certa, nunca
perderam a fé em D’us estando prontos a
abnegação e altruísmo para manter seus costumes e hábitos. Judaísmo. A Crimeia
e os Judeus. Texto de Jaime Spitscovsky. Pivô de uma das crises internacionais
mais relevantes das últimas décadas, a península da Crimeia, anexada em março
de 2014 pela Rússia após seis décadas de controle pela Ucrânia, evoca diversos
momentos importantes da história judaica.
A presença comunitária remonta ao século I e a região representou
abrigo para judeus que fugiam do pogroms da era czarista, foi palco de projetos
agrícolas de treinamento para o movimento sionista e serviu como pretexto para
um dos momentos mais dramáticos do antissemitismo soviético. O ditador
Josef Stalin (1878-1953) fabricou a paranoia de que a Crimeia serviria para a
criação de um separatismo judaico, com apoio do arqui-inimigo EUA. A Crimeia se
notabilizou ao longo da história por representar uma área estratégica. Trata-se
de saída para o importante mar Negro, cujas águas banham o litoral
de dois gigantes, russos e turcos. Czares e sultões travaram guerras para
garantir também um território com solo cultivável. No século, Catarina, a
Grande (1729-1796), impôs o controle russo sobre a região, ao derrotar os
rivais otomanos. Sete décadas mais tarde, eclodiu a Guerra da Crimeia,
responsável por envolver o sul da Rússia e se estender até os Bálcãs. Naquele
conflito, o império russo tentou ampliar sua hegemonia avançando sobre o
decadente poder otomano, mas teve de enfrentar reação responsável por unir
britânicos, franceses, e italianos. O czar Nicolau I (1868-1918)
testemunhou o fracasso da empreitada militar, que se celebrizou como uma das
primeiras “guerras modernas”, com uso intenso de estradas de ferro e
telégrafos. Apesar da derrota, que diversos historiadores classificam como o
início da decadência dos czares que levaria à Revolução Bolchevique de 1917, o
império russo manteve a península da Crimeia sob seu domínio. Na região
de clima temperado, a presença judaica, registrada há quase vinte séculos,
passou a aumentar depois de 1791, após a permissão czarista para o assentamento
de judeus. Os pogroms (é uma palavra russa que significa causar estrago,
destruir violentamente. Historicamente, o termo refere-se aos violentos ataques
físicos da população em geral contra os judeus, tanto no império russo como em
outros países) de 1881 e 1882 em outras áreas do império russo impulsionaram a
chegada de judeus à Crimeia, atraídos também pela perspectiva da região se
transformar num polo para produção e exportação agrícola. A discriminação
também era menos intensa do que em áreas do império russo, como Ucrânia ou
Bielorrússia, cenário histórico de shttels, a aldeia judaica típica
da Europa Oriental. A vida comunitária na península se intensifica a partir do
final do século XIX (1801-1900), com a organização de vida religiosa e
cultural. Em 1897, contabilizavam-se lá mais de 28 mil judeus, cerca de 5% da população.
Nessa época, florescia o movimento sionista, que encontrou na Crimeia uma
comunidade interessada em participar ativamente do sonho da reconstrução do
Estado judeu. Um dos personagens mais importantes da história do sionismo,
Joseph Trumpeldor (1880-1920), buscou aquelas terras às margens do Mar Negro
para treinar jovens interessados em aprender técnicas agrícolas que seriam
fundamentais para a criação das comunidades judaicas na Terra de Israel, então
dominada pelo império otomano. Trumpeldor, nascido na Rússia, morreu em 1920,
na batalha pela defesa de Tel Hai, comunidade pioneira localizada na Galileia.
Chamada muitas vezes de “parte da Nova Rússia”, por ter sido conquistada pelo
império apenas no final do século XVIII, a Crimeia não escapou das turbulências
e da violência que castigaram a região durante a guerra civil ocorrida após a
revolução bolchevique de 1917. Comunistas liderados por Vladimir Lênin
(1870-1924) enfrentaram a resistência do antigo regime czarista, e a península
do Mar Negro testemunhou algumas das batalhas mais sangrentas. Houve também
significativo êxodo de população civil. Após ter chegado ao ápice demográfico,
com 60 mil integrantes, a comunidade judaica viu seu tamanho se reduzir à
metade, quando do conflito final entre vermelhos e brancos, em 1921. O fim do
enfrentamento representou um novo impulso para a presença judaica na Crimeia. A
derrota dos remanescentes do czarismo não significou estabilidade nos domínios
bolcheviques, e muitos judeus do interior da Ucrânia buscaram refúgio na
península meridional, à espera da consolidação do regime comunista ou na rota
da aliá, aguardando a oportunidade de emigrar para a Terra de
Israel. Entre 1922 e 1929, a parte norte da Crimeia abrigou três comunas
judaicas. A década de 1920 reservou momentos fundamentais para a história
judaica na península. O norte americano, agrônomo, Joseph Rosen (1877-1949), de
origem judaica, propôs ao governo soviético que reassentasse judeus atingidos
por pogroms em áreas da Ucrânia, no solo fértil e no clima mais ameno da
Crimeia. O Joint, organização judaica de assistência humanitária, financiaria a
empreitada. O Kremlin aprovou a ideia. Imaginava ganhar assim reforço em
bolsões de resistência anticomunista na Crimeia, onde os tártaros, habitantes
da região desde a invasão mongol no início da Idade Média, além de ucranianos e
descendentes de alemães, ensaiavam movimentos nacionalistas e contrários ao
poder soviético. O poderoso Politburo, órgão máximo de decisões do Partido
Comunista da URSS, aprovou, em 1923, a criação da Região Autônoma Judaica da
Crimeia. Meses depois, a cúpula bolchevique reviu a decisão e, para a “questão
judaica”, optou por desenhar uma região na longínqua Birobidjan, próxima à
Sibéria e à fronteira com a China. A Crimeia, no entanto, não saiu do mapa do
Joint. A organização angariou recursos junto a filantropos judeus, como Julius
Rosenwald (1862-1932), empresário famoso por sua participação na história da
Sears, Roebuck & Co., para viabilizar fazendas coletivas judaicas em solo soviético.
O censo oficial de 1939 indicou mais de 65 mil judeus vivendo na península
(quase 6% da população), dos quais 20 mil em colônias agrícolas. Os nomes das
iniciativas revelavam a riqueza linguística e diferentes influências
ideológicas que conseguiram conviver em meio à agitação dos anos 1930. Havia
Pobeda (vitória, em russo), Fraylebn (vida livre, em iídiche), e Yidendorf
(vilarejo judaico, em iídiche), rótulos mais inspiradores para os judeus
comunistas do que os nomes Achdut (unidade, em hebraico) e Herut (liberdade, em
hebraico), certamente mais apreciados por aqueles que sonhavam em fazer aliá.
Professor da Universidade de Michigan, Jeffrey Veidlinger, lembrou, em texto
recente publicado no site Tablet Magazine, que uma das canções em iídiche mais
famosas do período soviético começa com o verso “A caminho de Sebastopol, não
muito longe de Simferopol”, referências a duas das mais importantes cidades da
Crimeia. A música celebra uma fazenda coletiva judaica na localidade de
Dzhankoy e fala das “conquistas da sovietização”, além de destacar a
transformação de judeus comerciantes em agricultores. A propaganda do Kremlin
buscava alicerçar as bases de um regime imposto pelo stalinismo. De Moscou, o
ditador Josef Stalin preferia a opção de Birobidjan para a “questão judaica”.
Mas, na Crimeia, os judeus comunistas não desistiam de trazer para a península
a proposta de uma região em que ganhassem autonomia, ainda que debaixo do
guarda-chuva vermelho. Em 1941, para surpresa de Stalin, os nazistas invadiram
a URSS, rompendo um pacto de não-agressão que havia sido assinado dois anos
antes. Adolf Hitler (1889-1945) desejava manter a frente oriental em silêncio,
enquanto avançava sobre o oeste da Europa. O ditador soviético avaliou que
poderia dividir com seu inimigo ideológico o espólio dos impérios britânico e
francês. Interessados na agricultura da Ucrânia e no petróleo do Cáucaso,
fundamentais para a estratégia bélica de Berlim, os hitleristas rasgaram o
pacto e mergulharam no solo do império fundado por Lênin. A aproximação da
barbárie nazista levou judeus a buscarem refúgio em paragens no leste da URSS,
chegando, por exemplo, ao Cazaquistão e ao Uzbequistão, na Ásia Central.
Reorganizaram lá suas fazendas coletivas. Muitos retornaram ao front, para
combater no Exército vermelho. Em 1944, os nazistas foram derrotados na
península da Crimeia, depois do massacre de cerca de 40 mil judeus na
península. A vitória sobre o nazismo significou o início de uma nova etapa de
atrocidades na região. O regime stalinista deportou 180 mil tártaros da Crimeia
para a Ásia Central, acusados de colaborar com o invasor hitlerista. Na punição
coletiva, calcula-se que quase 50% das vítimas morreram de fome e de doenças
durante o deslocamento. Apenas em 1967, o Partido Comunista da URSS reabilitou
a população punida, mas manteve restrições a seu retorno à península. Tais
limites duraram até os últimos dias da União Soviética, que se desintegrou em
1991. No período stalinista, a Crimeia também esteve presente numa tragédia
para o povo judeu. O capítulo começa quando o líder Salomon Mikhoels
(1890-1948), do Comitê Judaico Antifascista, se reuniu com o chanceler
soviético, Vyacheslav Molotov (1890-1986), para resgatar a ideia de criar uma
região de autonomia judaica na Crimeia do pós-guerra. Mikhoels havia retornado
de uma viagem aos Estados Unidos, onde, a mando de Stalin, esforçou-se para
arrecadar fundos para o esforço de guerra do Kremlin. Expoente do teatro
iídiche, Mikhoels foi ao encontro com Molotov acompanhado do poeta Yitzik
Fefer, integrante do Comitê Judaico Antifascista. Os dois saíram da reunião
convencidos do apoio de Molotov à ideia, que tinha respaldo do Joint. Em
seguida, enviaram a proposta por escrito a Josef Stalin. Cometeram um equívoco
trágico. O ditador soviético nutria a paranoia de que poderiam ser
espiões os soviéticos que haviam entrado em contato com o inimigo. Mikhoels se
encaixava na categoria, devido à viagem aos EUA. Além disso, o popular ator e
diretor havia ousado desenhar uma proposta para a “questão judaica” com o apoio
da comunidade judaica norte-americana. Stalin, logo após a Segunda Guerra
Mundial, manifestou a crença de que um conflito armado com os Estados Unidos
seria inevitável e num futuro próximo. E, na visão stalinista, “os judeus
conspirariam a favor do inimigo”. Uma onda de antissemitismo varreu a
URSS. Salomon Mikhoels foi assassinado em 12 de janeiro de 1948. Seu corpo foi
colocado sob um carro, para simular atropelamento. A sanha stalinista
prendeu o poeta Fefer. Foi executado em 1952, na prisão de
Lubyanka, sede da NKVD, a antecessora da KGB. Naquele 12 de agosto, que
entrou para a história como a Noite dos Poetas Assassinados, foram também
mortos mais doze intelectuais judeus, como Dovid Hofshteyn (1889-1952),
Benjamin Zuskin, Peretz Markish (1895-1952) e Leyb Kvitko (1890-1952). A
perseguição seguiu com outra fabricação do stalinismo: o Complô dos
Médicos. O Kremlin acusou diversos médicos, em sua maioria judeus, de
tentar envenenar lideranças soviéticas. Stalin morreu em 5 de março de 1953,
antes do final do julgamento-farsa. Os acusados foram então libertados.
No ano seguinte, Nikita Khruschev, successor de Stalin, transferiu o
controle da Crimeia da Rússia para a Ucrânia. À época, pareceu uma mudança
cosmética, já que o fim da União Soviética não despontava no horizonte.
Ao contrário. O regime comunista parecia reforçar seu controle sobre os solos
russo e ucraniano, vindo, a mão-de-ferro, de Moscou. Porém, em 1991, a URSS se
desintegrou, e o império criado por Lênin deu lugar a 15 países
independentes, entre eles a Rússia, o maior de todos, e a Ucrânia. E, em março
de 2014, o presidente Vladimir Putin, após a Ucrânia iniciar o afastamento da
órbita de influência de Moscou, reanexou a península da Crimeia, sob o
argumento de que 60% dos habitantes são russos e que “corrigia o erro
histórico de Khruschev”. Atualmente, vivem na península cerca de 17 mil
judeus. E que assistem, preocupados, às turbulências da região e às
ameaças antissemitas. Recentemente, antes da anexação russa, a sinagoga de
Simferopol amanheceu pichada, com a inscrição “Morte aos judeus”. Putin afirmou
que vai combater o antissemitismo e outras formas de intolerância na Crimeia.
Importantíssimo acompanhar, com atenção, uma região com um histórico longo de
guerras, tragédias e mortes. JAIME SPTIZCOVSKY, foi editor internacional e
correspondente da Folha de S. Paulo em Moscou e em Pequim. http://www.morasha.com.br. Abraço. Davi.
Nenhum comentário:
Postar um comentário