A INDIZÍVEL MENTE. O Mahamudra é um termo que designa o modo de
ser, a natureza última, de todos os seres. Qual é, fundamentalmente,
essa mente que caracteriza os seres? Está ela no corpo? É ela exterior ao
corpo? Ou em algum lugar entre os dois? É ela branca, vermelha ou de uma outra
cor? Qual é sua forma? Qual é sua dimensão? Se examinarmos a mente com
atenção, constatamos que ela é vazia por natureza. Não podemos atribuir-lhe
nenhuma característica material. A mente é vazia, ela não é uma coisa.
Isso quer dizer que ela não é nada? Também não. A mente não pode ser uma
simples vacuidade, um simples nada, visto que, segundo a experiência que temos
dela, ela é a base de surgimento dos múltiplos pensamentos da existência
condicionada. Dela nascem, do lado negativo, a cólera e as outras emoções
conflituosas, assim como, do lado positivo, a fé e a compaixão. Essa produção
natural dos pensamentos basta para demonstrar que ela não é apenas vacuidade.
Quando procuramos o modo de ser da mente e nos perguntamos o que ela é, não
podemos dar, de fato, nenhuma resposta, não podemos dizer que ela seja algo. Se
disso concluímos que ela não é absolutamente nada, devemos também admitir que
essa conclusão não é pertinente, pois há sentimentos de felicidade e de
sofrimento. A mente não pode ser definida pelas noções de existência e de
não-existência. Em verdade, se a natureza da mente é indizível, é porque
ela é o Dharmakaya o "Corpo Absoluto". Ora, esse dharmakaya
está para além do campo do pensamento ordinário, para além do que podem
exprimir as palavras, para além de todo conceito. Entretanto, embora o Dharmakaya
seja a nossa verdadeira natureza, não o reconhecemos e vagamos no Samsara, o
ciclo das existências e do sofrimento. Reconhecer o Dharmakaya é a
função do Dharma e mais particularmente da meditação do Mahamudra.
A FONTE DA PRÁTICA. Na linhagem kagyupa, a prática do Mahamudra
foi em sua origem revelada pelo Buddha primordial Vajradhara ao grande
realizado indiano Tilopa que, tendo atingido a realização última, transmitiu-a
a Naropa. De Naropa ela passou à Marpa, o tradutor, depois a Milarepa, em
seguida a Gampopa, que a transmitiu a Tusum Khyenpa, o primeiro Karmapa.
A tradição foi, em seguida, mantida pela sucessão dos Karmapas, sem
interrupção e na íntegra. Eu mesmo recebi a transmissão da graça do mahamudra
de meus lamas-raízes, o décimo sexto Karmapa e Kalu Rimpoche.
UM CORPO COMPLETO. A prática do Mahamudra, para ser completa, deve
reunir três elementos, que comparamos às partes de um corpo, a ausência de uma
ou de outra impedem o conjunto de ser funcional. Dizemos que:
·
O não apego são as pernas do Mahamudra;
·
A devoção é sua cabeça;
·
A meditação é seu tronco ou seu corpo.
Um corpo só é funcional se estiver
completo. Um corpo sem cabeça de nada serviria, assim como um corpo sem tronco.
Um corpo que teria cabeça e tronco, mas desprovido de pernas também não poderia
realizar as atividades de um corpo completo. Um corpo, para preencher
plenamente sua função, deve possuir a integridade de seus membros. Da mesma
maneira, para que a prática do Mahamudra seja efetiva, ela deve ser
completa: cabeça, pernas e tronco. Na falta disso, não seria um Mahamudra
autêntico. AS PERNAS: O NÃO APEGO. Quando somos apanhados por um
fortíssimo apego por esta vida, somos como que impedidos de avançar na via do Mahamudra.
Eis por que ser livre desse apego constitui as pernas da prática. Semelhante
não-apego procede de uma compreensão da natureza dos fenômenos. No estado de
não-realização, todos os fenômenos, os objetos exteriores que são as formas, os
sons, os odores, etc., assim como nosso corpo ou as aparências interiores
produzidas em nossa mente, tudo é apreendido como dotado de uma existência real
e permanente, o que é uma apreensão errônea. É preciso, ao contrário, tomar
consciência do fato segundo o qual os fenômenos exteriores que nossos sentidos
percebem, longe de serem dotados dessa permanência que nós lhes atribuímos, são
transitórios: modificam-se a cada instante. Nosso corpo e nossa mente são
submetidos ao mesmo processo de modificação constante. Tomemos como exemplo a
casa na qual nos encontramos. Aparentemente, é a mesma de ontem, a mesma do ano
passado. Parece que nada mudou. É apenas uma falsa aparência. No nível
imperceptível das moléculas constitutivas do edifício produz-se uma mudança
contínua, de modo que ele nunca permanece semelhante a ele mesmo. Uma casa nova
não continua a ser nova em razão dessa constante modificação. Esta mudança rege
seu envelhecimento e assegura que surja inelutavelmente um dia em que ela não
será mais do que uma ruína e, por fim, desapareça completamente. Isso vale para
todas as coisas, inclusive aquelas que nos parecem as mais duradouras, como as
montanhas ou os rochedos. Tudo é impermanente. Nosso corpo e nossa mente não
escapam a essa regra. Considero, por exemplo, que hoje sou Bokar Tulku,
que ontem fui Bokar Tulku, que no ano passado também fui Bokar Tulku.
Eu teria, então, tendência a pensar que sou sempre o mesmo Bokar Tulku.
Todavia, meu corpo modifica-se a cada instante, assim como minha mente, que já
não é agora o que foi outrora. A essa compreensão da impermanência deve
acrescentar-se a tomada de consciência do sofrimento próprio ao ciclo das
existências. Ainda que levemos em consideração tão somente os seres que povoam
a terra, podemos constatar o número de sofrimentos contínuos que os afligem,
tanto físicos quanto interiores. Acontece, as vezes, que parecemos felizes e
que nenhum sofrimento é visível; porém, não é uma verdadeira felicidade, pois
não é definitiva e se transformará em sofrimento mais cedo ou mais tarde. Mesmo
um estado neutro, sem sofrimento nem felicidade, pela opaciclade mental que ele
implica, também provocará um sofrimento. Diz-se que existem três tipos de
sofrimentos: o sofrimento doloroso, o sofrimento da mudança e o
sofrimento inerente a tudo o que é composto. Desse modo, nenhum ser do samsara
conhece um estado de felicidade autêntica. A partir do momento em que
compreendemos que todos os fenômenos exteriores e interiores são impermanentes,
que são todos maculados pelo sofrimento e que o Samsara é desprovido de
interesse, nosso apego as aparências desta vida diminui. Então, voltamo-nos
para os métodos de libertação que permitem atingir o estado de Buddha. A
CABEÇA: A DEVOÇÃOA devoção é considerada como a cabeça da prática do Mahamudra.
Essa devoção tem por objeto todos os lamas da linhagem de transmissão e,
mais particularmente, aquele denominado "lama-raiz", quer
dizer, o mestre que nos introduz diretamente à natureza de nossa própria mente.
A devoção é essencial, pois, sem ela, não podemos abrirmos à graça e, sem esta,
a realização do Mahamudra permaneceria impossível. Comparamos amiúde a
graça do mestre a uma montanha nevada e a devoção do discípulo ao sol cujos
raios incidem sobre as encostas da montanha. O calor do sol faz a neve fundir,
podemos coletar a água e bebê-la. Mas se o sol da devoção não brilha, a neve
não fundirá. Não receberemos, assim, a indispensável graça. O CORPO: A
MEDITAÇÃO. O não apego ao ciclo das existências e o desejo de libertar-se
dele, por um lado, e, por outro, a devoção, formam as pernas e a cabeça da
prática. Não poderíamos nos abster de abordar o terceiro ponto: a meditação que
observa a natureza da mente. Essa meditação requer saber "posicionar"
o corpo e saber "posicionar" a mente. Uma grande importância é
concedida à postura do corpo, pois há interdependência entre o nosso corpo e a
mente. Uma postura correta do corpo favorecerá a estabilidade da mente,
enquanto uma postura incorreta será nociva a essa estabilidade. Tomamos,
portanto, de modo ideal, a postura dita de "Vairochana de sete
pontos":
1
- as pernas cruzadas na postura do vajra;
2
- as mãos no Mudra da meditação;
3
- a coluna vertebral reta como uma flecha;
4
- os ombros afastados como as asas de um abutre;
5
- o queixo recuado;
6
- a língua pousada contra o palato de maneira relaxada e os lábios soltos;
7
- o olhar pousado no vago, (+- 1,5m) obliquamente para baixo.
Para aqueles que encontram dificuldades
para manter essa postura, podemos resumi-la a dois pontos essenciais: a coluna
vertebral perfeitamente reta e as mãos no mudra da meditação. Uma vez o
corpo bem estabelecido dessa maneira, é preciso, em seguida, aprender a
posicionar a mente. Como fazê-lo? Em primeiro lugar, constatamos que surge em
nossa mente uma infinidade de pensamentos concernentes ao passado ou ao futuro.
Os pensamentos do passado podem referir-se ao que ocorreu há vários anos,
alguns meses, algumas horas, ou nos minutos precedentes. Do mesmo modo, os
pensamentos do futuro podem referir-se a eventos que ocorrerão daqui a vários
anos, em alguns dias, algumas horas, ou nos minutos a seguir. Esses pensamentos
do passado ou do futuro, não os seguimos. Permanecemos unicamente na mente tal
como ela é no presente, sem distração. Permanecer sem distração na mente do
presente é o que denominamos meditação do Mahamudra. Certas pessoas
pensarão que meditar dessa maneira, sem ser tomado pelos pensamentos do passado
e do futuro, deve ser extremamente difícil, e mesmo penoso. No entanto, se a
mente cessa de projetar-se no que foi ou no que será e permanece tal como é no
presente, aberta e relaxada, ela conhece uma sensação de repouso que torna a
meditação fácil e agradável. MENTE IMÓVEL, MENTE EM MOVIMENTO. Nesse
estado de relaxamento do corpo e de não distração interior, a mente vai, por
momentos, permanecer imóvel, sem nenhum pensamento. Por momentos pensamentos
vão surgir, e a mente estará assim em movimento. Quando a mente está imóvel,
reconhece-se isso e permanece-se nesse estado. Quando surgem pensamentos, da
mesma maneira, reconhece-se isso. A maneira justa de proceder é então evitar
duas atitudes:
1
- considerar que os pensamentos são uma coisa ruim e que é preciso deter sua
produção;
2
- segui-los sem se dar conta disso.
Ao contrário, sem deter, nem seguir,
permanece-se relaxado no estado de simples reconhecimento. A mente que
permanece no presente é a meditação do Mahamudra. Os principiantes,
quando sua mente permanece calma e estável, têm tendência a regozijar-se
dizendo-se que sua meditação é boa. Quando, ao contrário, muitos pensamentos
apresentam-se, sentem-se decepcionados e desencorajados, considerando que nunca
conseguirão meditar. Estas são duas reações errôneas. Habitualmente, seguimos
os pensamentos sem estarmos sequer conscientes disso; somos enganados por eles.
Por isso, a meditação não implica temê-los, desejar seu desaparecimento e
tentar detê-los. Em relação aos pensamentos, devemos permanecer sem rejeição,
nem aceitação. Que ocorram ou não, isso não tem importância. O ponto importante
da meditação não é a ausência de pensamentos, mas a manutenção de uma
vigilância não-distraída, destituída de julgamento, livre das noções de bom ou
de ruim. Tais são, portanto, as três partes que tornam completa e autêntica a
prática do Mahamudra: as pernas do não-apego, a cabeça da devoção, e o
tronco da mente instalada no presente, tal como é, sem distração, sem nada
recusar e sem nada tomar. Conselhos para o principiante. Bokar Tulku Rinpoche
(1940-2004). Abraço. Davi.
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