Para
guiarmo-nos no caminho espiritual, precisamos de uma meta em direção à qual
trabalhar, da mesma forma que uma flecha precisa de um alvo. Através da bodhichita,
a porta seguinte de acesso à prática nas tradições Mahayana e Vajrayana,
continuamos a mirar no alvo da iluminação (Nirvana) para benefício dos outros seres a
cada momento que praticamos. Essa é a melhor meta possível. A bodhichita
constitui a base, o fundamento de tudo o que fazemos, semelhante à raiz de uma
árvore medicinal cujos galhos, folhas e flores produzem todos medicamentos que
preservam a vida. A qualidade e pureza da nossa prática depende do fato dela
permear cada um dos métodos que utilizamos. Com ela, tudo fica assegurado. Sem
ela, nada funciona. É por essa razão que, desde a primeira vez que ouvimos os
ensinamentos, dizem-nos, para estabelecer a liberação de todos os seres como o
objetivo da nossa prática. Nós nos tornamos recipientes apropriados para os
ensinamentos espirituais, e praticamos mudando nossa motivação de uma
atitude de interesse próprio para uma atitude de altruísmo. A bodhichita
possui três componentes: a geração de compaixão pelo sofrimento de todos os
seres; a aspiração de chegarmos à iluminação a fim de alcançarmos a capacidade
de beneficiar todos os seres, chamadas de bodhichita da aspiração; e o
fato de ativamente nos engajarmos no caminho da liberação a fim de realizarmos
tal meta, chamada de bodichita da ação. O termo tibetano para a
expressão bodhichita, em sânscrito, é Chang Chub Sem. Chang significa
a remoção dos obscurecimentos, Chub, a revelação de todas as qualidades
perfeitas internas, e Sem, mente. Por meio da prática da mente de bodhichita,
purificamos obscurecimentos e fortalecemos nossas qualidades positivas
intrínsecas, revelando a mente iluminada. Os obscurecimentos da mente podem ser
comparados ao barro que recobre um cristal que há muito tempo está enterrado no
chão. Se pegarmos o cristal coberto por aquelas crostas, parece uma pelota de
barro. No entanto, suas qualidades essenciais não foram de qualquer modo
reduzidas; ficaram apenas obscurecidas. Se removermos e lavarmos o barro, o
cristal aparecerá com clareza, suas qualidades se tornarão aparentes. Do mesmo
modo, ao purificarmos e removermos os obscurecimentos da mente, revelamos nossa
natureza verdadeira e cristalina. Nós sempre buscamos por essa essência do lado
de fora, embora ela se encontre em nosso interior. É como procurar por toda
parte por um cavalo perdido, seguindo incontáveis pegadas pela floresta, apenas
para descobrir, por fim, que o cavalo estava no porão da nossa casa o tempo
todo. A compaixão, o primeiro aspecto da bodhichita, também existe, de
forma intrínseca, dentro de nós. Embora tenhamos naturalmente um bom coração,
geralmente ele é bastante limitado. Através da prática, podemos expor e ativar
nossa compaixão perfeita e ilimitada. Chang Chub Sem é, assim, tanto o
método quanto o fruto da prática. Devido ao impulso da bodhichita, a
força e o poder da intenção de liberar os seres, a essência da mente, que é
como o Sol, se revela por completo, fazendo surgir, espontaneamente e sem
esforço, benefícios para os outros, como o reflexo do Sol que pode ser visto em
todos os copos de água, em todos os recipientes que contenham água. Começamos a
prática de Chang, a remoção dos obscurecimentos da mente, reduzindo
nossa auto importância e redirecionando nossa atenção para os outros. O hábito
de nos focarmos em nós mesmos vem sendo reforçado a incontáveis vidas, razão
pela qual estamos presos no Samsara. Os Budhas eliminaram os pensamentos
egoístas e ordinários, cultivaram motivação altruísta e, assim, alcançaram a
iluminação. O desenvolvimento desse tipo de motivação repousa sobre quatro
pedras fundamentais, chamadas as quatro qualidades incomensuráveis. A
primeira delas é a equanimidade, uma atitude de igualdade para com todos os
seres. Se conseguirmos viver livres de preconceitos e prevenções, sem fazer
divisão em nossa mente entre amigos e inimigos, então apreendemos a essência da
existência e plantamos as sementes da felicidade e liberdade, para nós mesmos e
para os outros. Agora, nosso amor e compaixão estendem-se apenas a certas
pessoas em certos tipos de situação, a nossos familiares, amigos e entes
queridos, mas não a alguém que percebamos como um inimigo. Pode ser que não
desejemos má sorte para pessoas desagradáveis ou perigosas; ainda assim, pode
nos ser difícil deixar de nos regozijar quando algo de ruim acontece a elas.
Nossa compaixão por uma criança doente pode vir, simplesmente, de nosso apego a
ela. Através da prática da equanimidade, cultivamos, do fundo do coração, uma
atitude nobre de compaixão por todos os seres sem distinção. A menos que
tenhamos esse tipo de pureza de coração, nossa prática permanecerá superficial não
entenderemos, de verdade, o propósito do Dharma. Desenvolvemos equanimidade, em
primeiro lugar, dando-nos conta de que todos os seres, igualmente, desejam a
felicidade. Ninguém quer sofrer. Em segundo lugar, contemplamos o fato de que
todos os seres, em uma ou outra ocasião, ao longo de incontáveis vidas, já
foram nossa própria mãe. O Budha Sakiamuni e outros Budhas e bodhisattvas,
que removeram o barro da natureza cristalina de suas mentes e se tornaram
oniscientes, ensinaram que não há um único ser que não tenha sido nossos pais,
algo que nós também poderíamos perceber, se assim purificássemos nossa mente.
Cada ser, não importa quão antagônico a nós possa ser agora, já foi tão bondoso
e importante para nós quanto nossos pais nesta vida. Uma pessoa que agora
desempenha um papel aparentemente insignificante ou mesmo ameaçador em nosso
drama pessoal, foi outrora amorosa e prestativa. A fim de adquirirmos
apreciação dessa bondade, precisamos reconhecer a enorme generosidade dos
nossos pais. Antes de mais nada, eles nos deram de presente o nosso corpo
humano. Após a morte em nossa última encarnação, quando nossa mente mergulhou
no bardo, o estado intermediário amedrontador e caótico que há entre a
morte e o próximo renascimento, fomos jogados de um lado para outro sem defesa,
como uma pluma ao vento, sem qualquer ponto de apoio ou de referência estável,
experimentando visões e sons terríveis. Por fim, encontramos segurança no
ventre de nossa mãe no momento da concepção. Daí por diante, ela nos carregou
em seu corpo por nove ou dez meses, suportando desconforto e talvez enfermidade
para nos oferecer nosso nascimento humano. Quando estávamos indefesos no berço,
nossa mãe nos dedicou cuidado e proteção, para que pudéssemos crescer fortes e
sadios. Se ela não tivesse nos alimentado, ou pedido a uma outra pessoa que
fizesse isso, seguramente teríamos morrido. Ela salvou nossa vida, quando
crianças, vez após vez, protegendo-nos de cair, de comer coisas que nos
deixariam doentes, de nos aproximar demais do fogo, da água, do trânsito. Ela
nos deu de comer e de vestir, nos lavou e manteve limpa a nossa casa. Pense
quanto teríamos que gastar agora para que alguém viesse limpar a nossa casa ou
cozinhar para nós. Hoje em dia, quando alguém nos dá uma xícara de chá ou
alguma pequena coisa, sem pedir pagamento, consideramos a pessoa imensamente
bondosa. Essa bondade, porém, esmaece em comparação à generosidade de nossa
mãe. Nossa capacidade de falar, de nos portar na sociedade, de conviver com os
outros são todas dádivas de nossos pais. Em vez de nos comprazermos com nossa
própria inteligência, deveríamos nos lembrar de que houve um tempo em que não
sabíamos dizer uma única palavra, não sabíamos como nos alimentar, nos vestir e
nos limpar. Palavra por palavra, nossa mãe e nosso pai nos ensinaram a falar.
Eles nos ajudaram a aprender como andar, como comer, como nos vestir. Eles
foram nossos primeiros professores. Nesta e em incontáveis vidas passadas, os
outros seres nos devotaram bondade por todos esses meios mundanos. Eles também
têm uma importância essencial para nosso desenvolvimento espiritual, no sentido
de que a liberação deles é a finalidade da nossa prática, o alicerce da nossa
motivação altruísta, sem a qual não poderíamos alcançar a iluminação.
Ponderando essas questões, começamos a experimentar uma profunda sensação de
gratidão e adquirir consciência de nossa dívida para com eles. Desse modo, ao
cultivarmos equanimidade, reconhecemos que todos os seres foram nossas mães, em
algum momento. Então, cultivamos apreciação pela bondade que eles nos dedicaram
e o desejo de oferecer retribuição. Dessa maneira, desenvolvemos uma motivação
mais elevada, a de beneficiarmos todos os seres, não apenas de uma perspectiva
temporária, mas com a mais perfeita forma de retribuição possível: alcançarmos
a iluminação para podermos ajudar os outros a fazer o mesmo. Um aluno ocidental
certa vez perguntou a um lama, "Eu tenho problema em pensar que os
seres uma vez foram minha mãe. A minha mãe nunca foi boa comigo. Nós tivemos um
péssimo relacionamento. Então, toda vez que eu me sento para meditar sobre bodhichita,
penso na minha mãe e fico irritado e com raiva. Será que eu posso simplesmente
esquecer de pensar na minha mãe por enquanto?" O lama disse ao
aluno que o objetivo era desenvolver compaixão por todos os seres, inclusive a
nossa mãe, mas não importava a ordem em que isso fosse feito. Ele disse que no
Tibete e na Índia as pessoas consideram sua mãe a mais bondosa, a mais
maravilhosa pessoa imaginável. Quando um principiante precisa de um acesso
fácil à prática, o professor usa os sentimentos ligados à mãe como base
para se cultivar calor humano e compaixão pelos outros. O lama
acrescentou, "Se você acha que um método melhor para você é desenvolver
compaixão por todos os outros seres primeiro, e então pela sua mãe, não há
problema. O importante é, ao final, termos compaixão por todos os seres,
inclusive nossa mãe". Por fim, reconhecemos a igualdade de todos os seres
no sentido de que a natureza intrínseca de cada um deles, do menor inseto ao
maior praticante detentor de realização, é a pureza primordial. Quando passamos
a compreender essa igualdade, no sentido de que todos querem ser felizes, todos
sofrem, todos nos dedicaram a bondade de um pai ou uma mãe, todos possuem
natureza búdica, geramos compaixão por todos eles sem exceção, ao reconhecer
sua situação trágica: embora apenas queiram ser felizes, por ignorância criam
as condições que perpetuam seu sofrimento. A própria compaixão, a aspiração de
que o sofrimento venha a cessar, é a segunda qualidade incomensurável. Um
potente antídoto para a auto importância e o interesse próprio, a compaixão, de
forma mais imediata, nos ajuda a liberar nosso foco implacável em nós mesmos e
em nossos problemas. E também é benéfica a longo prazo, pois mesmo um ou dois
minutos de compaixão, sentida em nosso coração, purifica quantidades imensas de
carma. Como é que geramos compaixão? Começamos contemplando as
dificuldades dos outros seres e, então, nos colocamos no lugar deles. Começamos
com o sofrimento no retiro, já que a princípio pode ser difícil contemplarmos a
angústia dos seres nos demais reinos. Contemplamos as dificuldades de uma ou
duas pessoas que conhecemos e, lentamente, com a prática, ampliamos nosso foco
para incluir mais e mais, até que o sofrimento de todos os seres tenha
verdadeiro significado para nós. Recordamo-nos da dor dessas pessoas de maneira
tão viva que podemos praticamente vê-la diante de nossos olhos. Imagine, por
exemplo, alguém próximo de você morrendo, talvez num hospital, cercado por
amigos e familiares. Quando o sofrimento dessa pessoa se torna real para você,
coloque-se no lugar dela. Seus amigos e familiares queridos estão chorando,
implorando-lhe que não morra. O médico diz que lhe restam apenas uns poucos
minutos de vida. A respiração vai ficando mais difícil e você está
aterrorizado. Você não sabe o que o espera. Tudo o que lhe é familiar, mesmo
seu próprio corpo, terá que ser deixado para trás. Nem um tostão do dinheiro
que você acumulou irá consigo, nem um único amigo ou parente irá atrás de você,
por mais queridos que eles possam ser a você, ou você a eles. Ou, em vez de
contemplar o infortúnio de uma pessoa que você conheça, você poderia imaginar
alguém que viva num país assolado pela seca, onde famílias, mesmo aldeias
inteiras, estejam morrendo de fome. Ponha-se no lugar daquela pessoa.
Visualize-se entre os poucos familiares queridos que ainda não morreram, cuja
vida se prolonga à beira da morte. Você sabe que você, também, logo irá morrer;
simplesmente não resta nada para comer. Você se sente fraco demais para ajudar
seus parentes que sobrevivem, e eles estão fracos demais para ajudá-lo. Vocês
estão todos impotentes diante da morte. Você poderia imaginar alguém que morre
na guerra e, então, se colocar no lugar dessa pessoa. Seu melhor amigo foi
morto, está estirado ao seu lado, e você próprio está ferido, esvaindo-se em
sangue, sem conseguir se mexer. Todos à sua volta estão morrendo ou ocupados
demais para lhe prestar atenção. Você se sente completamente só e aterrado. Ou
você poderia contemplar a situação angustiosa de uma pessoa idosa. Visualize um
tempo em que seus próprios filhos, que você criou com tamanho cuidado por
tantos anos, não queiram saber de ajudá-lo, sequer de ouvi-lo. Talvez estejam
esperando ansiosamente por sua morte. Você não consegue mais cuidar de si
próprio, nem seus filhos cuidam de você. Talvez você esteja solitário numa clínica
de repouso, onde seus filhos o visitam apenas uma ou duas vezes por ano. Seus
amigos não o respeitam mais; eles não o ouvem mais. Você gostaria de se
movimentar, agir, falar como fazia quando era mais jovem, mas falta-lhe
capacidade para isso. Ao examinar cada uma dessas situações, um medo tremendo
aparece. Nesse momento, pergunte-se, "Se eu sinto tanto medo assim
simplesmente ao contemplar este sofrimento, como é que devem se sentir aqueles
que realmente o vivenciam?" Então, pense no fato de que muitas pessoas,
por todo o mundo, estão ferindo outras. Elas estão criando carma
negativo que acabará por lhes prejudicar, e sequer se dão conta disso. Elas
pensam que estão fazendo a coisa certa, mas estão apenas se destruindo. Quando
você contempla dessa forma, brotam intensas em seu coração a compaixão e a
aspiração de ajudar tanto aqueles que estão atualmente sofrendo, quanto aqueles
que estão plantando as sementes de seu sofrimento futuro. Reconheça sua boa
sorte relativa, e então aceite o compromisso de fazer tudo o que puder para
criar benefícios. Você escutou os ensinamentos do Dharma; você conta com
alguns métodos para purificar as causas e condições do sofrimento. Estes seres,
porém, que já lhe dedicaram todos a bondade de uma mãe, não contam com nada.
Como isso é trágico. No budismo Mahayana, uma grande compaixão, uma
compaixão equânime por todos os seres, amigos e inimigos, é crucial. Com esse
alicerce sólido, mesmo se você não tentar alcançar a iluminação, ela estará na
palma da sua mão. Se, no entanto, você não cultiva compaixão e é motivado
apenas pelo desejo egoísta de escapar do sofrimento, você não atingirá a meta
última. A compaixão é realçada pela terceira qualidade incomensurável: um amor
que se estende igualmente a todos. O amor é o desejo sincero de que cada ser
vivencie tanto a causa quanto o fruto da felicidade, temporária e definitiva.
Estabelecemos o compromisso de fazer todo o esforço, físico, verbal e mental, para
que isso venha a ocorrer. Quando nos empenhamos para trazer felicidade para os
outros, precisamos fazer isso com pureza de coração. Se houver qualquer
interesse próprio mesclado com nossos esforços, um insucesso irá nos levar ao
arrependimento, e esse arrependimento anulará a virtude de nossa ações. Para
nos ajudar a desenvolver a capacidade de manifestar amor puro e altruísta por
todos os seres, há um método chamado meditação tonglen. Começamos
gerando compaixão, com a contemplação da condição dolorosa dentro da qual vivem
os demais seres. Então, quando respiramos, imaginamos que estamos inspirando o
sofrimento e o carma negativo de todos os reinos da existência, sob a
forma de uma luz preta. Quando expiramos, visualizamos que todo o nosso amor,
alegria e boa fortuna se irradiam para os outros seres como uma luz branca. A
princípio, você pode sentir relutância em praticar essa meditação, temendo que
ela possa prejudicá-lo por algum modo. Porém, se você tiver a intenção
altruísta de ajudar os outros, suas dúvidas irão desaparecer e a prática fará
crescer suas qualidades positivas. Somente seu próprio medo pode prejudicá-lo,
pois ele age como um imã à negatividades. Depois de praticar essa meditação
intensamente, com o coração puro, você começará a se ver como um veículo para a
felicidade dos outros. Não só seu amor e compaixão crescerão, como também você
verificará que passou a ter menos pensamentos negativos, a cometer menos atos
prejudiciais; o apego a si próprio eu começará a se soltar, e seu carma
será purificado. Em termos ideais, desenvolvemos a capacidade de amor que caracteriza
a mente de bodhicitta a uma medida tal que, sem temor, hesitação nem
arrependimento, daríamos ou faríamos qualquer coisa para ajudar uma outra
pessoa. Em muitas de suas vidas ao longo do caminho do bodhisattva, o
Budha Sakiamuni entregou seu próprio corpo em benefício dos outros seres.
Em uma determinada vida, ele era o filho do meio de um rei que tinha três
filhos. Certo dia em que havia se perdido na floresta com seus dois irmãos, ele
se deparou com uma tigresa e seus cinco filhotes, que estavam morrendo de fome.
A tigresa não conseguia mais se mover e não tinha leite para alimentar sua
ninhada, O príncipe pensou, "Quantas vezes em minhas vidas passadas eu
tentei salvar a mim mesmo? Eu pensei apenas na minha própria segurança, e morri
vez após vez, sem beneficiar ninguém. Meu corpo é impermanente; de qualquer
modo, não vai durar muito. Se ele pode ter uso para essa tigresa e seus
filhotes, que assim seja". Ele mandou seus irmãos para longe, à procura de
frutas, e deitou-se ao lado da tigresa. Ela, porém, estava fraca demais para
devorá-lo. Como não tinha uma faca, o príncipe quebrou um talo de bambu, abriu
seu pulso com ele e deixou o sangue pingar dentro da boca da tigresa. Então,
cortou pedaços de sua carne e deu de comer a ela. À medida que a tigresa
lentamente ia recuperando as forças, ele mais e mais perdia as suas; porém, não
abrigava nenhum ressentimento. Dedicou sua vida não apenas àquela mãe e seus
filhotes, mas a todos os demais seres, e então morreu. Naquele momento, a mãe
do menino teve um sonho no qual havia no céu três sóis, sendo que o do meio
entrava em eclipse. Ela acordou sabendo que algo havia acontecido com seu filho
do meio, e testemunhou fenômenos extraordinários, a terra tremeu, uma chuva de
flores caiu, música e hinos de louvor ecoaram. O cabelo e os ossos do príncipe
foram colocados em uma stupa, um monumento à natureza da mente, em um
local sagrado conhecido como Namo Budha, no Nepal. Muitas pessoas ainda
hoje conseguem grandes benefícios, purificando vastas quantidades de carma,
ao circundar essa stupa. A última das quatro qualidades
incomensuráveis é o regozijo: a atitude de nos comprazermos com a felicidade
dos outros. Regozijamo-nos com as bênçãos mundanas de que os outros desfrutam, sua
saúde, riqueza, relacionamentos maravilhosos, e com sua boa fortuna espiritual.
Não permitimos que a inveja tome conta de nossa pessoa, nem nos perguntamos,
"Por que é que eles conseguem isso ou aquilo, e não eu?". Em vez
disso, formulamos a aspiração de que a felicidade deles seja duradoura, e
fazemos tudo o que está a nosso alcance para que isso aconteça. Ao nos
regozijarmos com a virtude dos outros, criamos tantas virtudes quanto eles
possuem. Do mesmo modo, se nos alegramos com a desventura de alguém, criamos
tanta não virtude quanto a pessoa que provocou essa desventura. No tempo do
Budha Sakiamuni, dois meninos estavam mendigando comida diante do palácio
de um rei. O rei havia convidado o Budha e seu séquito (comitiva) para almoçar,
e uma refeição maravilhosa havia sido preparada. Um dos meninos pôs-se a pedir
comida, antes que fosse oferecida ao Budha. Ninguém deu-lhe nada para comer, e
ele ficou com muita raiva. Ele pensou, "Se eu fosse um rei, iria cortar a
cabeça do Budha, a deste rei e a de todas as pessoas que o estão ajudando".
O outro menino esperou até que o Budha e o seu séquito houvessem se servido.
Então, pediu a comida que havia sobrado e recebeu tanto quanto conseguia comer.
Ele pensou consigo, "Que rei maravilhoso. Que grande mérito ele criou ao
convidar o Budha para almoçar e ao demonstrar generosidade àqueles que são
pobres como nós. Se eu fosse rei, todas as minhas posses ofereceria ao Budha e
também aos pobres". Depois do almoço, os meninos se separaram. O menino de
bom coração pôs-se a caminhar, atravessou a fronteira e foi parar em um reino
vizinho. Ele se deitou para dormir, protegido do calor pela sombra de uma
árvore. Sem que ele soubesse, o rei daquela região havia morrido, e seus
ministros estavam à procura de alguém que tivesse as qualidades e méritos para
ser o novo rei. As pessoas da aldeia onde o menino dormia notaram que, ao longo
do dia, embora o Sol mudasse de posição no céu, a sombra nunca se movia de onde
o menino se deitara. Julgando isso extraordinário, relataram o fato aos
ministros do rei. Quando receberam a notícia, os ministros ordenaram que o
menino de bom coração fosse incluído entre os candidatos ao trono, os quais
deveriam comparecer perante uma grande reunião de todos os súditos do rei, O
novo rei seria escolhido por um elefante muito especial. No dia marcado, o
elefante aproximou-se daquele menino pobre e maltrapilho, que estava bem no
fundo do grupo de candidatos, ungiu sua cabeça com a água especial de um vaso,
levantou-o com a tromba e colocou-o sobre o trono. Enquanto isso, o menino
raivoso adormeceu no jardim do rei. Uma carroça que passava por perto se
desgovernou e tombou sobre seu corpo, cortando seu pescoço e o matando. A
princípio, a prática das quatro qualidades incomensuráveis requer esforço. Um a
um, soltamos os nós que nos amarram, os venenos, enganos e ilusões da mente. A
equanimidade reduz o orgulho, o regozijo reduz a inveja, a compaixão reduz o
desejo e o amor reduz a raiva e a aversão. A medida que a raiva diminui,
desponta a sabedoria que é como o espelho; à medida que o desejo diminui,
desponta a sabedoria que discrimina, e assim por diante. À medida que a nossa
prática amadurece e a sabedoria é revelada, as quatro qualidades
incomensuráveis brotam naturalmente, sem esforço, da mesma forma que os raios
de luz e calor emanam do Sol. Embora muitas pessoas pensem que possam
reconhecer a sabedoria diretamente, isso não é tão fácil. Até que os nós
comecem a se desatar, a consciência intrínseca e primordial não será algo
evidente. É por intermédio das quatro portas do amor, com paixão, alegria e
equanimidade que podemos entrar no mandala da natureza absoluta da
mente. Portões da Prática budista. Chagdud Tulku Rinpoche (1930-2002). Abraço. Davi.
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