O cerne
da visão do sábio Nagarjuna, nascido aproximadamente no século II (101-200) no
Prajna Paramita. A análise de todas as coisas em geral, de acordo com o Prajna
Nama Mula Madhyamaka Karika de Nagarjuna. Nesta Perícia, examinamos as
fontes (causas), os resultados (efeitos) e a Natureza Fundamental, ou qualidade
essencial, de forma conjunta, sem os dividirmos. Em primeiro lugar, podemos
constatar que todos os Dharmas (ou eventos em ocorrência, fenômenos) não
afloram (surgem) de uma natureza real inerente, mas ao contrário, devido a uma
fonte básica (ou causa) e as condições concomitantes que permitem que tal fonte
produza determinado fruto. Em nenhum lugar em nosso campo de experiência nos
deparamos com eventos ocorrendo arbitrariamente, ou com fenômenos sem causa. Os
fenômenos não possuem nenhuma essência, ou natureza real, que possa ser
descoberta, mas aparecem sem qualquer realidade palpável, como reflexos em um
espelho, devido as causas e as condições. Os fenômenos ocorrentes, desprovidos
de natureza real palpável, não são eternos, mas tampouco são meramente nada.
Não provem de nenhum lugar, nem vão para nenhum lugar. Não há nenhum
afloramento (surgimento) real neles, nem falecimento, nem aniquilação, nem
nulidade. Não existem independentemente, mas ocorrem inter relacionados devido
a presença de causas e de condições apropriadas. Em consequência, todas as
ocorrências fenomênicas estão além de qualquer concepção possível. É
frequentemente dado o exemplo da imagem de Vajradhara em um espelho. Se
examinarmos a imagem de Vajradhara no espelho, poderemos constatar que
não é uma coisa real, mesmo assim realmente aparece lá e, como tal, não é uma
mera substancialidade do nada, não é uma mera ausência. Não provém de lugar
nenhum em particular; se virarmos o espelho, não existe nenhum lugar para onde
a imagem tenha ido. Não podemos observar nenhum afloramento real na ocorrência
da imagem, ou qualquer falecimento genuíno no seu desaparecimento. Nenhuma
realidade palpável independente pode ser atribuída a imagem refletida no
espelho. A reflexão, como o todo da nossa experiência, não pode ser
adequadamente descrita em termos conceituais. Os fenômenos são meramente uma
interminável sequência de surgimentos momentâneos, estruturado segundo um modo
particular, não tendo nenhuma existência independente. Não são descritíveis por
meio de nenhuma das quatro proposições de (1) ser, (2) não ser, (3) tanto
quanto e (4) nem um nem outro, quer quanto as suas fontes, quer quanto aos seus
resultados. Nenhum determinado ponto real de seus afloramentos pode jamais ser
descoberto e noções parciais a respeito deles, tais como serem permanentes,
impermanentes, etc., são completamente inadequadas para descrever a Verdadeira
Natureza dos fenômenos. Esta existência aparente, irreal, na qual nos
encontramos é a conjunção de meras aparências ocorrendo devido a causas e
condições. E tais aparências condicionadas não são de modo algum diferentes da
Vacuidade Fundamental que já descrevemos. Em decorrência, segundo a perspectiva
da Madhyamaka, a verdade do sofrimento, a verdade da fonte do
sofrimento, bem como dos atos de comer, de dormir e de praticar quaisquer
atividades corriqueiras mundanas, são todos igualmente desprovidos de qualquer
realidade intrínseca. Ocorrem através de surgimentos condicionados sem
possuírem qualquer Realidade Fundamental, seja lá qual for. Somente em assim
sendo o caso, pode o mundo tal qual o experimentamos aflorar, já que se existisse
alguma Realidade Fundamental relativa a este mundo, ou, se a Vacuidade fosse
algo completamente diferente da nossa experiência usual, não haveria nenhuma
maneira pela qual qualquer experiência pudesse ter ocorrido inicialmente. A
Vacuidade Fundamental não é isolada de nossa experiência corriqueira, nem é em
hipótese alguma divorciada das Quatro Nobres Verdades e do Caminho da
Libertação do Sofrimento. Agora, todas estas formas de surgimento condicionado,
conforme demonstramos por meio das Quatro Perícias da Madhyamaka, O
Pequeno Diamante, etc, não possuem nenhuma Realidade Fundamental. Não obstante,
surgem como se verdadeiramente lá estivessem, exatamente como o elefante, em
nosso sonho, parece realmente lá estar. Mas, se examinarmos as condições do
mundo, se examinarmos de que forma afloram, se examinarmos como produzem
fruição, e procurarmos pela Qualidade Essencial, constataremos que, de qualquer
um destes pontos de vista, as coisas não possuem nenhuma realidade intrínseca,
tudo ocorre devido a determinadas condições. Este ponto de vista é desenvolvido
em maiores detalhes por Nagarjuna no Prajna Nama Mula Madhyamaka
Karika. Da mesma forma como uma pessoa trancada em uma prisão não tem
nenhum jeito de escapar exceto se abrir a porta, também nós, que caímos sob os
domínios do sofrimento, não temos como nos livrar exceto através da
compreensão, através do reconhecimento da Natureza Fundamental da Realidade: a
Vacuidade. O reconhecimento da Natureza Fundamental da Realidade é por vezes
chamado de "Os Três Fatores Libertadores", quais sejam: 1. Que
nenhuma fonte real pode jamais ser descoberta. 2. Que as condições resultantes
não tem nenhuma natureza verdadeiramente intrínseca. 3. O reconhecimento da
qualidade essencial vazia de todas é as aparências. Pela apreensão da verdade
destes três fatores, podemos alcançar a compreensão e podemos nos libertar do Samsara.
Francesca Frematle (1939-1987) diz: “O Budha descreveu todos os fenômenos
mundanos como tendo três características: impermanência, sofrimento e ausência
de identidade. Sofremos porque imaginamos aquilo que não tem identidade (por si
só) como tendo, aquilo que é impermanente como sendo permanente, e aquilo que
de um ponto de vista final é dor como sendo prazer. A existência com essas três
características é chamada de Samsara, que significa fluir continuamente, seguir
em frente, de um momento para o próximo momento e de uma vida para a outra
vida. Samsara não é o mundo externo real ou a própria vida, mas a maneira como
os interpretamos. Samsara é a vida como a vivemos sob a influência da
ignorância, o mundo subjetivo que cada um de nós cria para si próprio. Este
mundo contém bem e mal, alegria e dor, mas eles são relativos, não absolutos;
podem ser definidos somente em relação uns aos outros, estão continuamente
mudando para seus opostos. Embora Samsara pareça algo todo poderoso e
abrangente, isso é criado pelo nosso próprio estado mental como um mundo de
sonho, e pode ser dissolvido no nada, como o despertar de um sonho. Quando
alguém desperta para a realidade, mesmo por um momento, o mundo não desaparece,
mas é experimentado em sua verdadeira natureza: puro, brilhante, sagrado e
indestrutível”. Esta visão suprema da Vacuidade une,
invisivelmente, a Verdade Convencional e a Verdade Última. Quer dizer, a
Vacuidade apontada pela Escola Madhyamaka não é uma nulidade em branco,
não é uma mera ausência de qualidades, muito embora, em uma análise final, ela
seja indescritível. A Vacuidade é uma potencialidade total a medida em que dá
vazão a todos os surgimentos e a todas as aparências que ocorrem aos seres
sensoriais. É tal visão integrada dos níveis convencional e último que precisa
ser obtida a fim de se alcançar a Realização. Este campo supremo de Visão
Interior, o Dharmadhatu, ou Espaço Básico de todos os Dharmas, é
frequentemente apontado como sendo a Mãe de Todos os Budhas e Bodhisattvas,
pois exatamente como uma mãe dá nascimento as crianças, igualmente a Visão
Interior da Natureza Fundamental produz todos os seres iluminados do passado,
do presente e do futuro. A Natureza Fundamental da Vacuidade e Aparência
Integrais é similar, muito parecida, com o meio de um espaço vazio e, embora
tenhamos tentado descreve-la nos ensinamentos precedentes, é basicamente
indescritível no que toca a impossibilidade de predicados (ou de construções
conceituais) serem a ela aplicados: transcende a todas as afirmações lógicas.
Se permanecermos em consciência meditativa com respeito a esta Sabedoria Não
Discriminativa, além de qualquer possível concepção e, saindo de nossa meditação,
reconhecermos todos os Dharmas como sendo ilusões, sonhos, ou reflexões,
os quais aparecem, mas não possuem nenhuma realidade fundamental.
Desenvolveremos confiança na Visão Reta, a Natureza Integral das Duas Verdades.
Tal é a grande ferramenta do conhecimento transcendente, a Perfeição da
Sabedoria, a Prajna Paramita. O uso deste conhecimento transcendente
pode ser ilustrado dizendo-se que, se desejarmos ir daqui até Kathmandu,
capital do Nepal, deveremos primeiro tentar descobrir em que direção fica Kathmandu
em relação a nossa presente posição. Estando isto determinado, deveremos
conhecer que caminho seguir a fim de lá chegar e podermos, igualmente, dar a
outras pessoas as indicações apropriadas. Se alcançarmos visão interior
verdadeira da Natureza Fundamental, em si mesma expressa em todas as
aparências, então estaremos capacitados a demonstrar a Natureza Fundamental da
Vacuidade a todos os seres. Se a Visão Interior da Vacuidade não tivesse
nenhuma relação direta com todas as aparências, então qualquer um que
alcançasse tal visão interior não teria nenhuma percepção dos demais seres
sensoriais e, portanto, jamais transmitiria os ensinamentos: O ensino da
Vacuidade nunca se disseminaria. Uma compreensão meramente intelectual da
aparência e da Vacuidade integrais não nos dá o poder de demonstrar tal
Vacuidade as demais pessoas. Somente com a Visão Interior Direta da Natureza
Fundamental é que podemos começar a demonstrar aos seres esta Vacuidade
Fundamental, a qual é brilhantemente expressiva por si mesma. Compreensão da
Vacuidade é a fonte e a realidade da Senda Mahayana para a realização as
qualidades do Budha. Acabamos de debater sobre a ausência de qualquer realidade
essencial na individualidade mundana, do ponto de vista do surgimento condicionado.
Por meio dos exemplos (como o da carroça), examinamos a ausência de qualquer
verdade, de qualquer realidade inerente em todos os Dharmas, em toda
aparência fenomênica, através da investigação dos seus pontos de afloramento.
Fizemos isto buscando uma natureza essencial e examinando tudo em geral, de
conformidade com quatro diferentes enfoques encontrados nas escrituras
clássicas sânscritas e reunidos em uma única lição por Jamgon Ju Mipham
Rimpoche (1949- ). Em geral, nos
ocorre conhecer as coisas de três modos: pela percepção direta, pela dedução
lógica e pela palavra autorizada. Com relação ao Dharma, o que é
realmente necessário para a Realização é a Percepção Direta da Realidade
Fundamental da Natureza Fundamental. Mas, com o fim de alcançarmos tal estágio
de Direta Visão Interior, necessitamos, primeiro, atingir alguma apreciação do
que isto seja e ouvir algo a respeito. Ao ouvirmos sobre a Natureza da
Realidade, só acreditaremos em uma pessoa digna de toda a confiança, que
soubesse muito bem sobre o que está falando e, ainda, se tudo for aprovado no
teste da razão. Não acreditaríamos em algo dito por alguém não confiável, que
não conhecesse bem o tema, ou que não fizesse sentido. Munidos da informação,
por meio de alguma forma de dedução lógica, tentamos examinar e descobrir como
se parece a Natureza Fundamental. Em seguida, tanto no sentido mundano como no
âmbito do Dharma, a compreensão por meio da informação conduz,
inevitavelmente, a uma visão não decorrente da dedução lógica. Assim poderemos
nos iniciar na prática do Mahamudra apropriadamente e, eventualmente,
alcançar a Visão Interior Direta da Natureza da Realidade, a Verdadeira
Percepção da Natureza da Realidade que conduz a Libertação. Uma compreensão
adequada da Visão do Caminho do Meio, a Madhyamaka, é, consequentemente,
muito importante como suporte para a prática do Mahamudra, que produzirá
a Visão Interior Direta. Ensinei um pouco da Visão Reta da Escola Madhyamaka
e incito a todos a que orem para que qualquer mérito decorrente da tentativa de
compreende-la não se dirija para o benefício individual exclusivo, mas que seja
distribuído entre todos os seres, de tal forma que todos possam alcançar a
Completa e Perfeita Realização. A Porta aberta para a vacuidade. Kenchen
Thrangu Rinpoche (1933- ). Abraço.
Davi.
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