Budismo. www.imagick.org.br. Instituto de Pesquisa
Psíquica Imagick. O SERMÃO DE BENARES. O Sermão de Benares - Índia constitui
inquestionavelmente o principal ponto de referência doutrinal do Budismo e das
suas diferentes escolas. As condições da sua preleção, assim como todos os
aspectos fundamentais da vida do seu orador, estão envoltos num manto de
mistério onde se cruza o mito e a história. Segundo a tradição budista, o
Sermão de Benares representa o primeiro sermão pronunciado por aquele que é
designado na cultura ocidental como sendo o Buda. No entanto, em termos
estritos, o termo «Buda» não é propriamente um nome, mas antes a designação de
um estado de libertação e de iluminação. Na verdade, a palavra «Buda» significa
literalmente "o desperto", entendendo-se este «despertar» como sendo
a apreensão da realidade que nos constitui assim como a libertação das
condições que geram o sofrimento em todos os seres sensíveis. Em termos
históricos, aquele que ensinou a via (dharma) do Budismo nasceu provavelmente
em meados do século VI AC, na região de Lumbini – região do Oeste do
Nepal. [1] - situada atualmente no Nepal
junto à fronteira com a Índia - onde vivia o povo dos Shakya, razão que explica
o facto de múltiplas vezes o Buda histórico ser frequentemente nomeado como
«Shakyamuni», isto é, o sábio dos Shakyas [2]. O seu verdadeiro nome era
Siddartha Gautama - Siddhatta Gotama, em Páli, a língua sagrada budista - e era
filho do Rajá daquele clã. Reza a lenda [3] que, sete dias após o seu
nascimento, a mãe de Siddharta (Mayadevi) faleceu e o jovem príncipe foi
educado pelo pai (Suddhodana) num ambiente de luxos e prazeres. "O
rei seu pai, receando que ele se sentisse atraído pelo caminho da libertação,
fê-lo rodear pelos prazeres dos cinco sentidos. "[4]. Aos dezesseis anos,
Siddartha casa com uma bela princesa (Yashodhara), da qual irá terá, treze anos
mais tarde, um filho (Rahula). Nessa altura, nos diz o mito, Siddartha
confronta-se, pela primeira vez, com a visão da velhice, da doença e da morte.
"Pensando que não estava ainda liberto da velhice, da doença e da morte,
ficou mais triste ainda. Imediatamente fez o carro dar meia volta para
regressar." [5]. Tal visão que lhe tinha sido ocultada pelo pai levá-lo-á,
num primeiro momento, a abandonar o seu palácio e assumir uma vida de grande
ascese, como forma de descobrir as raízes do sofrimento. Só que estas práticas
ascéticas não lhe trouxeram qualquer libertação, antes o conduziram
praticamente às portas da morte. O mito diz nos que Siddhartha decidiu
então abandonar a ascese e sentar se no sopé de uma figueira - na região
conhecida como Uruvela, hoje Bodh Gaya - com a firme deliberação de nunca mais
se levantar até encontrar a iluminação. "Então sentou se de pernas
cruzadas numa mesma postura durante sete dias aos pés da árvore do despertar"
[6]. Conta-se que foi tentado por demônios, mas que a sua determinação se
manteve sempre firme. Ao atingir o estado de Buda, é nos dito que não só intuiu
a causa e a raiz do sofrimento, como apreendeu a unidade fundamental de todos
os seres vivos, de como todos eles eram arrastados na eterna roda de
nascimento, do sofrimento e da morte (Samsara). Manteve-se em silêncio durante
algum tempo, pois achou que a sua doutrina, o seu «dharma», era difícil de
perceber, dado que ia contra todos os nossos hábitos mentais mais enraizados.
"Este dharma que eu realizei é, na verdade, [...] difícil de apreender,
difícil de compreender [...] Só com dificuldade eu próprio o compreendi.
"[7]. Mas movido pela compaixão decidiu ensiná-lo, sendo o primeiro acto
público, o sermão que pronunciou aos seus cinco primeiros discípulos em
Sarnath, perto da cidade de Benares (Varanasi). Esta preleção que, segundo os
budistas, põe em movimento a roda da Lei (dharma), constituindo o ponto de
partida da sua predicação, é conhecido usualmente como o Sermão de Benares.
Neste sermão, Siddharta Gautama estabelece os quatro princípios essenciais da
sua doutrina, também conhecidos na terminologia budista como as quatro «Nobres
Verdades» (Arya satya). São estas, a nosso ver, as passagens centrais deste
texto tradicional que procura reconstituir o ensinamento oral do Buda
Shakyamuni, pois Siddharta nunca escreveu nada na sua vida: “Existem
dois extremos, ó monges, que aqueles que renunciaram ao mundo, não devem
perseguir: o apego indulgente aos prazeres sensuais; isto é vil, comum, vulgar,
sem santidade, votado à infelicidade; e, por outro lado, o apego ao auto
tormento; isto é penoso, sem santidade e votado à infelicidade. Ó monges,
igualmente distante destes dois extremos encontra se o caminho do meio,
perfeitamente compreendido pelo Tathagata [8], que leva a que se
possa ver e saber e que conduz à paz, à sabedoria, à iluminação e à extinção
(nirvana). [...]. Eis aqui, ó monges, a nobre verdade do sofrimento (duhkha): o
nascimento é sofrimento, a velhice é sofrimento, a doença é sofrimento, a morte
é sofrimento; a dor, o lamento, a angústia, o desespero são sofrimento; a união
com aqueles de quem não se gosta é sofrimento, a separação daqueles de quem se
gosta é sofrimento; não obter o que se deseja é sofrimento; por fim, os cinco
agregados de apego [9] são sofrimento. Eis aqui ainda, na verdade, ó
monges, a nobre verdade da origem do sofrimento: é a sede (trishna) que conduz
ao renascer, acompanhada do apego aos prazeres que se gozam aqui e ali, quer dizer,
a sede do desejo, a sede da existência, a sede da inexistência. Eis aqui ainda,
ó monges, a nobre verdade da extinção do sofrimento: é a cessação e o desapego
completo desta mesma sede, o seu abandono, a sua rejeição, o facto de dela se
libertar, de não mais a ela se apegar. Eis ainda aqui, na verdade, ó monges, a
nobre verdade do caminho que conduz à extinção do sofrimento: é a nobre via de
oito braços, a saber, a visão perfeita, a resolução perfeita, a linguagem
perfeita, a acção perfeita, a vivência perfeita, o esforço perfeito, o
recolhimento perfeito, a concentração perfeita. ”[10]. O
primeiro princípio da doutrina do Buda Shakyamuni consiste na afirmação do
sofrimento como traço incontornável da nossa experiência do mundo. Que sentido
tem esta afirmação sabendo nós que a vida oscila permanentemente entre, por um
lado, estados de prazer e de alegria e, por outro, situações de pesar e de
aflição? Como reconhece o Buda, se não existissem momentos de prazer
dificilmente se compreenderia o valor que os seres humanos em geral atribuem ao
ego e à experiência física sensorial. "Se o corpo fosse exclusivamente
doloroso, apenas relacionado com o sofrimento e não também com o prazer, então
os seres não ansiariam tanto pela sua existência física. "[11] É evidente
que o termo português "sofrimento" cobre mal o significado presente
na palavra escolhida pelo fundador do Budismo, a saber, "dukhka". Em
sentido estrito, deveríamos traduzir este termo por "insatisfação difusa
"[12], na medida em que mais do que uma dor permanente o que está em causa
é a insatisfação que percorre todos os atos da nossa vida, mesmo aqueles que
consideramos habitualmente bem sucedidos e fonte de prazer. Não só esses
momentos são escassos como, acima de tudo, estão condenados a desaparecer com a
lei do tempo. A percepção da sua efemeridade produz normalmente sentimentos de
angústia e de ansiedade que suscitam um maior apego desesperado em relação
àquilo que nós próprios sabemos estar condenado. O Sermão de Benares mostra nos
com clareza quais os diferentes níveis da nossa vida nos quais é possível
surpreender uma "insatisfação" insustentável e permanente. São cinco
os níveis considerados: 1. Os momentos cruciais da história de uma vida,
pois tanto o nascimento como a velhice implicam não só a presença da dor e do
sofrimento como a percepção de que o seu último momento será sempre a
morte; 2. O segundo nível prende-se com os sentimentos associados com a
perda de algo que estimamos, desde a lamentação ao desespero em face do que já
não se é, do que já não se tem; 3. O terceiro nível refere se à nossa
dificuldade em estarmos junto de quem não gostamos e de estarmos separados de
quem amamos, uma forma de traduzir a tensão constante com o outro; 4. O
quarto nível diz respeito à insatisfação permanente derivada da "espiral
do desejo "[13] que comanda as nossas vidas; 5. Finalmente, o Buda
refere o "sofrimento" associado ao que designa, numa terminologia
obscura, como os "agregados do apego", mas que, não são mais do que
os diferentes elementos corporais e mentais associados à constituição sempre
dolorosa e precária da nossa identidade pessoal. Ora, como é evidente, em
todos estes elementos surpreende se a nossa incapacidade visceral em saber
viver com a impermanência constitutiva de tudo o que é, em si, condicionado e
sujeito à lei do tempo. Numa visão mais contemporânea do problema da "insatisfação
difusa", poderíamos descrever a intuição de Buda como sendo
a percepção de que a vida implica uma constante humilhação do nosso
narcisismo mais recôndito, do nosso amor próprio mais oculto, pois mesmo tudo o
que hipostasiamos (coisificar determinada substância) como perfeito se encontra
condenado à precariedade e ao desvanecimento integral [14]. É, pois, neste
contexto que devemos compreender a afirmação de Buda Shakyamuni segundo a qual
a sua doutrina deve ser sobretudo pensada como uma terapia libertadora da
insatisfação difusa que percorre as nossas ações. “Assim como o vasto mar está
impregnado de um único sabor, o do sal, ó monges, também está doutrina e está
disciplina estão impregnadas de um único sabor: o da Libertação" [15]. A
caracterização da vida como sofrimento, enquanto humilhação do nosso
narcisismo, representa, a par da impermanência (anitya) e da inexistência do
ego (anatman), um dos três "sinais da existência "[16]. São noções
articuladas entre si, na medida em que a percepção de que nada no mundo é
permanente tem como corolário lógico não só a visão dos nossos estados
corporais e mentais como finitos e precários, como suscita a nossa angústia em
face da inexistência de um ego a que nós poderíamos apegar eternamente. A ideia
de que uma entidade condicionada -, como são todos os objetos deste mundo -
seja dotada de uma identidade substancial, revelada num núcleo residual e a
temporal, mostra se, para Shakyamuni, como sendo uma ideia profundamente
errada. Quando aprofundamos a natureza de cada ser, qualquer que ele seja, os
contornos e os limites que estabelecemos entre ele e os outros desvanecem se
progressivamente. Não só nada é absolutamente autónomo como as diferenças entre os
diversos seres esvaem se à medida que aprofundamos a sua natureza. Se existe
visão especulativa da existência por parte do Buda, ela consiste na reiteração
da interdependência infinita entre tudo o que existe. A ideia de limite e de
identidade absoluta é apenas o resultado do desejo ansioso da nossa mente de
encontrar pontos de segurança e de estabilidade, de não querermos ser
arrastados pelo fluxo da vida. “Tal como a abelha colhe a essência de uma flor
e voa sem destruir a sua beleza e perfume, assim passa o sábio por esta vida.
”[17]. O mesmo se pode dizer da visão usual que temos do nosso ego. A ideia de
que a atividade mental, de que a mente, no seu fluxo, tem um «eu substancial»
que a possui é igualmente, segundo o Budismo, uma ideia a afastar. Da mesma
forma quando olhamos o voo dos pássaros podemos projetar uma linha imaginária
do seu percurso, do mesmo modo a atividade do nosso corpo, do nosso sentir, das
nossas percepções, dos nossos hábitos mentais, da nossa consciência – os cinco
elementos condicionados da nossa existência, os cinco agregados da identidade pessoal
referidos – parecem ter um núcleo substancial a que chamamos «eu» [18].
Tal núcleo é apenas uma projeção imaginária resultante de não aceitarmos
impermanência do nosso próprio ser. Esta questão, habitualmente designada como
o princípio budista da "inexistência do ego" deve ser vista com muito
cuidado, pois estamos em face de uma das noções mais subtis da doutrina do
Buda. Este último não nega pura e simplesmente a existência condicionada da
entidade a que convencionalmente chamamos "eu" e que, não só nos é
útil na nossa vida diária, como a sua pura e simples extinção poderia conduzir
nos à beira da loucura e da psicose [19]. O que nega é a existência neste mundo
de uma substância eterna que se subtraísse à lei global da impermanência. A
nosso ver, o mesmo princípio se aplica a qualquer entidade deste mundo [20]. Se
aprofundarmos a natureza de qualquer ser, por exemplo, a mesa onde escrevo,
veremos que ela não difere essencialmente de todos os outros objetos
circundantes. A mesa tem uma existência condicionada e relativa que nunca
existe para lá do tempo e do fluxo contínuo da existência. O mesmo acontece
àquilo que chamamos eu ou ego. Este último não é mais do que a conjugação
provisória de um conjunto de fenómenos psíquicos entre os quais sobressai a
memória e a capacidade de contrair hábitos. São eles que determinam a nossa
identidade pessoal, mas não são eles que determinam a nossa natureza mais
própria. O Budismo faz nos compreender que em torno do problema da identidade
pessoal se conjugam duas questões que, no limite, são dissociáveis: uma que se
prende com a nossa personalidade e carácter, com o modo como as experiências
que tivemos foram sedimentadas e cristalizadas, a que poderemos chamar «memória
residual» derivada da ação física ou mental (Karma). A enigmática noção
oriental de Karma - literalmente «ação» - traduz, a nosso ver, o fato
unanimemente reconhecido de que todo o nosso agir não só marca as nossas
memórias como determina as nossas expectativas e ansiedades, moldando, deste
modo, a nossa personalidade. “Da mente provêm todas as coisas. Tudo nasce da
mente, é formado pela mente. Se um homem fala ou age com uma mente impura, o
sofrimento acompanha o, tal como a roda de um carro segue o animal que o puxa ”[21]
A segunda questão em torno da pessoa prende se com a nossa natureza essencial,
natureza só apreendida no momento em que realizamos em nós a interdependência
infinita que nos constitui visceralmente. Em geral, confundimos as duas
questões da nossa identidade pessoal, nomeadamente na redução da natureza
essencial que nos constitui à nossa personalidade, redução que acarreta a
hipostasiação (considerar como substância ou coisa real) do ego como presumível
substância infinita e eterna. Mas o Sermão de Benares não é a
apenas a caracterização da experiência do mundo como sofrimento e
"insatisfação difusa". O Buda Shakyamuni debruça-se, em seguida,
sobre a origem deste sentimento e a resposta encontrada é caracterizada através
de uma metáfora: "a sede". Em termos psicológicos, esta
"sede" traduz um estado de ânsia que nunca encontra sossego e que se
reflete, segundo o Buda, em três dimensões: no desejo puro e simples e, em
particular, na «espiral do desejo» atrás referida; na sede de existência e na
sede da inexistência. A caracterização do desejo como sendo uma das raízes do
nosso sofrimento deve ser observada com muita atenção pois essa palavra
subsume, nas línguas ocidentais, um vasto campo de significações nem sempre
concordantes. Alexandra David Néel, na sua célebre apresentação da doutrina
budista [22], mostra os diferentes sentidos positivos e negativos do desejo na
visão budista do mundo. "O desejo e a procura da sua satisfação são
legítimos como manifestações normais e naturais da individualidade. Lançar o
anátema, como se fez na maioria das religiões, é inútil e ilógico [...]. O Buda
foi um inimigo irreconciliável do ascetismo, num país onde este dominava a
consciência religiosa com uma força da qual, as mais violentas manifestações da
fé cristã, aquelas que povoaram de anacoretas a areia de Tebaída, não podem dar
senão uma pálida ideia. Não é, pois, um preceito de sacrifício que nós ouvimos
sair dos seus lábios. O que o Buda critica são] os desejos que nos amarram, que
nos arrastam numa corrida eterna de decepções dolorosas" [23]. O desejo
como origem do sofrimento deriva tanto da avidez como do apego em face do
mundo, mostrando a situação trágica de uma mente hipnotizada, não desperta, que
pensa tudo suster e controlar. Mas não é só a "sede da existência"
que é visada pelo Buda Shakyamuni, na medida em que a "sede da
inexistência", enquanto desejo de auto anulação, cuja forma mais perversa
consiste na aversão a si mesmo e na negação do direito à felicidade, é
igualmente apontada como estando na raiz do sofrimento. No terceiro
princípio do Sermão de Benares, o Buda diz nos que é possível, aqui e agora,
anular essa ânsia, esse desejo envolto em frustração. Esta cessação (Nirodha) e
libertação da ânsia desiderativa é designada como Nirvana. A palavra significa,
à letra, «extinção» ou «expiração», sendo um termo apropriado para designar a
simples ação de extinção da luz de uma vela. Mais do que vermos nesta
«extinção» um símbolo negativo, um sinal de pessimismo, o Nirvana traduz o
estado incondicionado que resulta da cessação de toda a ânsia, de toda a nossa
sede de permanência [24]. Infelizmente Shakyamuni nunca foi muito específico em
caracterizar positivamente o Nirvana. Quando lhe perguntavam o que era, ele
gostava de comparar essa atitude questionante àquela que resultaria se alguém
ferido com uma seta envenenada, em vez de procurar arrancá-la imediatamente se
interessasse em saber qual o nome do archeiro e quando é que ele a atirou [25].
Provavelmente a visão niilista que temos habitualmente do Nirvana deriva da
interpretação e do uso que Freud fez desta noção. Na sua obra Para Além do
Princípio de Prazer, sob a influência de Schopenhauer (1788-1860), utiliza, em
sentido técnico, a noção de «princípio de nirvana» [26]. Com este conceito,
Freud procurava caracterizar uma das duas tendências globais da atividade da
vida pulsional marcada pela busca de redução e anulação de todos os fatores de
excitação psíquica. Mas o desenvolvimento da obra mostra nos que não se trata
apenas de uma «lei de constância», de uma busca homo estática de equilíbrios,
mas, sim, de ver o «princípio de nirvana» como a própria expressão da «pulsão
de morte». Nesta obra, Freud parece indicar que uma das duas raízes mais funda
de todo o psiquismo, do inconsciente e da vida pulsional, senão mesmo da
própria vida, se encontraria neste desejo de morte, um desejo de se auto
aniquilar e de fazer extinguir todo o estado de desequilíbrio que cada ser
vivo, em si mesmo, representa. Ora, como vimos, a forma como Freud caracteriza
o «princípio de nirvana» fá-lo-ia inscrever numa das raízes essenciais do
sofrimento, a saber, a "sede de inexistência" e, como tal, seria,
para o Buda, um princípio que se situaria nos antípodas do Nirvana. Ora,
mais do que representar o simples aniquilamento, o Nirvana é entendido pelos budistas
como passagem a um outro estado, a um outro nível de existência mais puro e
mais perfeito em que se abole os «fogos da ignorância, da inveja e da
violência». Que estado é esse? Talvez possamos estabelecer um paralelismo com
um dos sentidos etimológicos da palavra «nirvana», a saber, «expiração». A
nossa atitude habitual em face da vida é procurar sustê-la, retê-la, não
deixa-la ser. Se sustivéssemos a respiração para sempre, a vida aniquilar se
ia. Ascender ao estado de Nirvana consiste em deixar a respiração - sempre
identificada no pensamento oriental com a vida - fluir. Deixar a vida fluir sem
querer retê-la neste ou naquele momento, neste ou naquele acontecimento por
mais central que nos pareça. O quarto princípio consiste na indicação do
caminho necessário para se poder atingir esse estado de espírito, designado
como Nirvana. Este caminho é habitualmente conhecido na gíria budista como o
«óctuplo caminho». Mais do que analisar caminho por caminho (visão, resolução,
linguagem, ação, vivência, esforço, recolhimento e concentração), importa
referir duas ideias: a primeira é a noção de perfeição que se identifica com a
«Via do Meio» e que tem um paralelismo notável com a noção aristotélica de
virtude como justo meio. Como vimos, e nos é dito logo no começo do Sermão
de Benares, o Buda busca uma via do meio que transcenda tanto a vida
luxuriante, mas falsa, da sua primeira existência, como o caminho da ascese
dolorosa da segunda fase. A segunda ideia é que apesar de Shakyamuni nos
apresentar analiticamente oito caminhos, o que está em questão neles são
essencialmente três dimensões da nossa existência: o conhecimento sapiencial
(Prajna), a acção moral (Shila) e a concentração do sentir (Samadhi). Trata se,
assim, de atingir graus de perfeição a nível da sabedoria, da acção e da
meditação. O que significa uma aposta total e integrada nas três capacidades
essenciais do ser humano: o conhecer, o agir e o sentir. Desenvolver com
perfeição o nosso conhecimento do mundo, agir tendo sempre em conta o carácter
efémero da existência de todos os seres sencientes e sentir sem apego o nosso
corpo, os outros e o mundo é o ideal do Budismo. Em qualquer destes campos, a
lassitude como a austeridade correspondem a atitudes extremas que só levam à
"insatisfação difusa". Que visão do mundo podemos
surpreender no Sermão de Benares? A nosso ver, a forma mais feliz de a
caracterizar foi enunciada por um mestre budista japonês do século XIII, Eihei
Dogen Zenji (1200-1253) que nos dizia numa célebre sentença: "Conhecer a
via do Buda é conhecer se a si próprio. Conhecer se a si próprio é esquecer se
de si mesmo. Esquecer se de si mesmo é ser iluminado pelas dez mil vias. Ser
iluminado pelas dez mil vias é libertar o seu corpo e a sua mente assim como os
dos outros. "[27]. www.imagick.org.br.
Abraço. Davi.
NOTAS DO AUTOR. [1]. Ainda hoje são objeto de controvérsia os
dados cronológicos sobre a época em que viveu o Buda. Enquanto as escolas
tradicionais do Budismo, em particular o Theravada, apontam usualmente as datas
de (623 AC 543), a grande maioria dos estudiosos situa a vida do fundador do
Budismo entre os anos de (563 AC 483). Cf. H. W. Schummann, Der historische Buddha, Munique,
Eugen Diederichs Verlag, 1982. [2] Já
Marco Polo (The Travels of Marco Polo, tradução do inglês, Londres – Reino
Unido. The Folio Society, 1968, p.241), no seu percurso pelo Ceilão, o
identifica como o "Sakyamuni o Santo". [3] As
características míticas da biografia de Siddharta Gautama são, por demais,
evidentes, de tal modo que Joseph Campbell formula o seu conceito de «monomito»
- arquétipo narrativo exemplar que funciona como paradigma de todas as
histórias míticas - tendo como ponto de referência a vida do Buda. Cf. Joseph Campbell, The Hero with a Thousand Faces,
Londres, Fontana Press, 1993 [Princeton University Press, 1949], pp.30 e sgs. [4] Vinaya pitaka [O Cesto da Disciplina]
(Mahishasaka, ed.Issaikyo) nº1.421, 101b, citado na excelente antologia de
textos organizada por André Bareau, En Suivant Bouddha, Paris, Lebeaud, 1985
[Buda, trad.port., Lisboa, Presença,19752, p.77]. [5] A.
Bareau, Buda, tradução em portugês, Lisboa, Presença,19752, p.79. [6]
Vinaya Pitaka (Mahavagga) 1,1,1. [7] Texto citado por Narada Maha Thera (The Buddha and
his Teachings, Colombo [Sri Lanka], Vajiramana, 1973, p.62) e por Mark Epstein
(Thoughts without a Thinker. Psychotherapy from a Buddhist Perspective,
Londres, Duckworth, 1996, p.43). [8] Tathagata é um dos
títulos tradicionais do Buda Shakyamuni e significa literalmente "aquele
que se tornou um", isto é, aquele que atingiu a plena realização de si. [9] São
os cinco factores de apego (Upadana skhanda) que constituem, pela sua
agregação, a personalidade individual sempre precária e sem natureza própria:
1. A "forma material" (rupa) corporal; 2. A sensação (vedana)
que nos leva a classificar uma experiência como agradável, desagradável ou
neutra; 3. A percepção (samjna) que permite identificar e reconhecer algo como
tal; 4. As actividades mentais (samskara) que traduzem estados psicológicos de
alegria, de ódio, de atenção, de vontade, entre outros; 5. A consciência
(vijnana) enquanto apercepção sensorial e mental do mundo. [10] Vinaya Pitaka [iv, 17 23]; Samyutta Nikaya (The
Book of the Kindred Sayings, Pali Text Soceity Translation Series, Londres,
Luzac & Company Ltd, 1954) 56.II.5 8; Bareau, Buda, trad.port., Lisboa,
Presença,19752, p.86 87. [11]
Samyutta Nikaya (22.60.6). [12] É esta a tradução proposta - "pervasive
unsatisfactoriness" - por Mark Epstein (Thoughts without a Thinker, p.46)
como sendo a mais rigorosa para englobar os diferentes cambiantes presentes no
termo que o Buda utiliza no Sermão de Benares (dukhka). [13] A
expressão é utilizada pelo biólogo Jacques Testart num contexto diferente, a
propósito da eugenia positiva, mas traduz bem a impossibilidade do desejo se
contentar com a sua própria satisfação imediata: "[...] la spirale du
désir ne s'arrêtera certainement pas là." (Le Temps de la responsabilité,
ed. Frédéric Lenoir, Paris, Fayard, 1991, p.71). [14] "The Buddha sees us all as Narcissus, gazing
at and captivated by our own reflections, languishing in our attempted self
sufficiency, desperately struggling against all that that would remind us of
our own fleeting and relative natures. [...] Birth, old age, sickness, and death
are distasteful not just because they are painful but also because they are
humiliating." (Mark Epstein, Thoughts without a Thinker, p.48). [15]
Kullavagga. [16]. Numa linguagem mais técnica falar se ia nas "três
marcas de tudo o que existe" (Trilakshana). [17]
Dhamapada 49 (Les Fleurs de Bouddha. Anthologie du bouddhisme, Paris,
Albin Michel, 1991, p.64) [18] A tese da inexistência do ego deve ser entendida, a nosso
ver, como o reconhecimento do absurdo de transformar a experiência que nos
percorre numa dimensão que nos pertence e que podemos possuir. Sugeriria,
assim, a tese segundo a qual o Buda visaria, com a sua noção de anatman,
denunciar o sentimento de posse como uma ilusão geradora de sofrimento. Cf.
Vinaya pitaka [iv, 24 28]; citado por André Bareau, Buda, pp.107 109. [19]
"Être sans ego est impossible! Il s'agit seulement de laisser l'ego à sa
place, de ne pas y être attaché. [...]
L'expression utilisée habituellement, «être sans ego», signifie en realité «ne
pas être attaché à l'ego» car sa realité est sans substance fixe. Ce qui reste
nécessaire, c'est la perception de l'ego dans le sens «je suis moi» et vous
êtes «vous». Être au delà de l'ego ne signifie pas
être dans un état fusionnel, de dissolution dasn le quel on ne fait plus la
différence entre soi et les autres, sinon on devient fou." (Roland Rech,
Moine Zen en Occident. Entretiens avec Romana et Bruno Solt, Paris, Albin
Michel, 1994, p.107). [20]
Segundo o mestre chinês Nan Huai chin, o sentido do «despertar» do Buda deve
ser entendido como a realização em si de que toda a existência condicionada e
dependente é vazia em si própria. "Le Bouddha a été éveillé au fait que la
production dépendante est fondamentalement vide." (Nan Huai chin,
L'expérience de l'éveil, trad.franc., Paris, Seuil, 1998, p.18). [21]
Dhammapada 1 (Les Fleurs de Bouddha. Anthologie du bouddhisme, p.56). [22]
Alexandra David Néel, Le Bouddhisme du Bouddha. Ses doctrines, ses méthodes et
ses dévelopements mahayanistes et tantriques au Tibet, Paris, Editions du
Rocher, 19892. [23] O texto citado foi recolhido da primeira edição (1977) da
obra de Alexandra David Néel nas edições Rocher, traduzido em português com o
título: O Budismo do Buda, São Paulo, Edições Ibrasa, 1985, pp.53 54. [24] Sem
a crença num estado positivo de Nirvana dificilmente se poderia apresentar o
Budismo como uma doutrina da libertação, da mesma forma que não se
compreenderia a crítica ao apego em relação à existência condicionada.
"Existe um não nascido, não feito, não formado, não composto, e se não
existisse, não haveria evasão possível do que é nascido, feito, formado e
composto." (Itivuttaka II 6). Um dos aspectos mais interessantes da
especulação filosófica budista consiste na mostração de como irrompe em nós a
dependência condicionada (Pratitya samutpada). [25] Les Fleurs de Bouddha. Anthologie du bouddhisme,
Paris, Albin Michel, 1991, p.52.[26] "das Nirwanaprinzip" (Freud,
Jenseits, Standard Edition, Ed. de J.Strachey, The Hogarth Press/Institute of
Psycho-Analysis, Londres, XVIII 55). [27]
Dogen, Genjokoan [O Caminho comum] (1233). www.imagick.org.br. Abraço.
Davi
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