ESPIRITISMO. www.institutoandreluiz.org. Texto
de Allan Kardec (1804-1869). II. ANJOS E DEMÔNIOS SEGUNDO O ESPIRITISMO. OS
ANJOS SEGUNDO A IGREJA. REFUTAÇÃO. OS ANJOS SEGUNDO O ESPIRITISMO. ORIGEM DA Espiritismo
CRENÇA NOS DEMÔNIOS. OS DEMÔNIOS SEGUNDO A IGREJA. OBJEÇÕES. OS DEMÔNIOS
SEGUNDO O ESPIRITISMO. Os demônios segundo a Igreja. 7. Satanás, o chefe ou o rei dos demônios, não é,
segundo a Igreja, uma personificação alegórica do mal, mas uma entidade real,
praticando exclusivamente o mal, enquanto que Deus pratica exclusivamente o
bem. Tomemos, pois, tal qual o representam. Satanás existe de toda a
eternidade, como Deus, ou ser-lhe-á posterior? Existindo de toda a eternidade é
incriado, e, por consequência, igual a Deus. Este Deus, por sua vez, deixará de
ser único, pois haverá um deus do mal. Mas se lhe for posterior? Neste caso
passa a ser uma criatura de Deus. Como tal, só praticando o mal por incapaz de
fazer o bem e tampouco de arrepender-se, Deus teria criado um ser votado
exclusiva e eternamente ao mal. Não sendo o mal obra de Deus, seria contudo, de
uma das suas criaturas, e nem por isso, deixava, Deus de ser o autor, deixando
igualmente de ser profundamente bom. O mesmo se dá, exatamente, em relação aos
seres maus chamados demônios. 8. Tal foi, por muito tempo, a crença neste
sentido. Hoje dizem (1): "Deus, que é a bondade e santidade por
excelência, não os havia criado perversos e maus. A mão paternal que se apraz
imprimir em todas as suas obras o cunho de infinitas perfeições, cumulara-os de
magníficos predicados. As qualidades eminentíssimas de sua natureza, juntara as
liberalidades da sua graça; em tudo os fizera iguais aos Espíritos sublimes de
glória e felicidade; subdivididos por todas as suas ordens e adstritos a todas
as classes, eles tinham o mesmo fim e idênticos destinos. Foi seu chefe o mais
belo dos arcanjos. Eles poderiam até ter alcançado a confirmação de justos para
todo o sempre, e serem admitidos ao gozo da bem-aventurança dos céus. Este
último favor, que deverá ser o complemento de todos os outros, constituía o
prêmio da sua docilidade, mas dele desmereceram por insensata e audaciosa
revolta." As citações seguintes são extraídas da pastoral de Monsenhor
Gousset, cardeal-arcebispo de Reims, para a quaresma de 1865: "Qual foi o
escolho da sua perseverança? Que verdade desconheceram? Que ato de adoração, de
fé, recusaram a Deus? A Igreja e os anais das Santas Escrituras, não o dizem
positivamente, mas certo parece que não aquiesceram à mediação do Filho de
Deus, nem à exaltação da natureza humana em Jesus-Cristo." "O
Verbo Divino, criador de todas as coisas, é também o mediador e salvador único,
na Terra como no Céu. O fim sobrenatural não foi dado aos anjos e aos homens
senão na previsão de sua encarnação e méritos, pois não há proporção alguma
entre a obra dos Espíritos eminentes e a recompensa, que é o próprio Deus.
Nenhuma criatura poderia alcançar tal fim, sem esta maravilhosa e sublime
intervenção da caridade. Ora, para preencher a distância infinita que separa a
sua essência das suas obras, preciso fora reunisse à sua pessoa os dois
extremos, associando à divindade as naturezas ou do anjo, ou do homem: e
preferiu então a natureza humana. Esse plano, concebido de toda eternidade, foi
manifestado aos anjos muito antes da sua execução: o Homem- Deus foi-lhes
mostrado como Aquele que deveria confirmá-los na graça e guiá-los à glória, sob
a condição de o adorarem durante a missão terrestre, e para todo o sempre no
céu. Revelação inesperada, arrebatadora visão para corações generosos e gratos,
mas - mistério profundo - humilhante para espíritos soberbos! Esse fim
sobrenatural, essa glória imensa que lhes propunham não seria unicamente a
recompensa de seus méritos pessoais. Nunca poderiam atribuir a si próprios os
títulos dessa glória! Uni mediador entre Deus e eles! Que injúria à sua
dignidade! E a preferência espontânea pela natureza humana? Que injustiça! que
afronta aos seus direitos!" "E chegarão eles a ver esta
Humanidade, que lhes é tão inferior, deificada pela união com o Verbo, sentada
à mão direita de Deus em trono resplandecente? Consentirão enfim que ela
ofereça a Deus, eternamente, a homenagem da sua
adoração?" "Lúcifer e a terça parte dos anjos sucumbiram a tais
pensamentos de inveja e de orgulho. São Miguel e com ele muitos exclamaram:
"Quem é semelhante a Deus? Ele é o dono de seus dons, o soberano Senhor de
todas as coisas. Glória a Deus e ao Cordeiro, que tem de ser imolado à salvação
do mundo." O chefe dos rebeldes, porém, esquecido de que a Deus devia a
sua nobreza e prerrogativas, raiando pela temeridade, disse: "Sou eu quem
ao céu subirá; fixarei residência acima dos astros; sentar-me-ei sobre o monte
da aliança, nos flancos do Aquilão, dominarei as nuvens mais elevadas e serei
semelhante ao Altíssimo." Os que de tais sentimentos partilharam,
acolheram essas palavras com murmúrios de aprovação, e partidários houve em
todas as hierarquias. A sua multidão, contudo, não os preserva do
castigo."9. Está doutrina suscita várias
objeções: 1ª - Se Satã e os demônios eram anjos, eles eram
perfeitos; como, sendo perfeitos, puderam falir a ponto de desconhecer a
autoridade desse Deus, em cuja presença se encontravam? Ainda se tivessem
logrado uma tal eminência gradualmente, depois de haver percorrido a escala da
perfeição, poderíamos conceber um triste retrocesso; não, porém, do modo por
que os apresentam, isto é, perfeitos de origem. A conclusão é esta: - Deus
quis criar seres perfeitos, porquanto os favorecera com todos os dons, mas
enganou-se: logo, segundo a Igreja, Deus não é infalível! (1) 2ª - Pois que nem
a Igreja e nem os sagrados anais explicam a causa da rebelião dos anjos para
com Deus e apenas dão como problemática (quase certa) a relutância no
reconhecimento da futura missão do Cristo, que valor - perguntamos - que valor
pode ter o quadro tão preciso e detalhado da cena então ocorrente? A que fonte
recorreram, para inferir se de fato foram pronunciadas palavras tão claras e
até simples colóquios? De duas uma: ou a cena é verdadeira ou não é. No
primeiro caso, não havendo dúvida alguma, por que a Igreja não resolve a
questão? Mas se a Igreja e a História se calam se a coisa apenas parece certa,
claro, não passa de hipótese, e a cena descritiva é mero fruto da imaginação.
(2). 3ª As palavras atribuídas a Lúcifer revelam uma ignorância admirável num
arcanjo que, por sua natureza e grau atingido, não deve participar, quanto à
organização do Universo, dos erros e dos prejuízos que os homens têm
professado, até serem pela Ciência esclarecidos. (1) Esta doutrina
monstruosa é corroborada por Moisés, quando diz (Gênese, cap. VI, vv. 6 e 7): "Ele
se arrependeu de haver criado o homem na Terra e, penetrado da mais intima dor,
disse: Exterminarei a criação da face da Terra; exterminarei tudo, desde o
homem aos animais, desde os que rastejam sobre a terra até os pássaros do céu,
porque me arrependo de os ter criado." Ora, um Deus que se arrepende do
que fez não é perfeito nem infalível; portanto, não é Deus. E são estas as
palavras que a Igreja proclama! Tampouco se percebe o que poderia haver de
comum entre os animais e a perversidade dos homens, para que merecessem tal
extermínio. (2) Encontra-se em Isaías, cap. XIV, Vv. 11 e seguintes:
"Teu orgulho foi precipitado nos infernos; teu corpo morto baqueou par
terra; tua cama verterá podridão, e vermes tua vestimenta. Como caíste do Céu,
Lúcifer, tu que parecias tão brilhante ao romper do dia? Como foste arrojado
sobre a Terra, tu que ferias as nações com teus golpes; que dizias de coração:
Subirei aos céus, estabelecerei meu trono acima dos astros de Deus,
sentar-me-ei acima das nuvens mais altas e serei igual ao Altíssimo! Todavia
foste precipitado dessa glória no inferno, até o mais fundo dos abismos. Os que
te virem, aproximando-se, encarar-te-ão, dizendo: "Será este o homem que
turbou a Terra, que aterrou seus remos, que fez do mundo um deserto, que destruiu
cidades e reteve acorrentados os que se lhe entregaram prisioneiros?"
Estas palavras do profeta não se relerem à revolta dos anjos,' são, sim, uma
alusão ao orgulho e à queda do rei de Babilônia, que retinha os judeus em
cativeiro, como atestam os últimos versículos. O rei de Babilônia é
alegoricamente designado por Lúcifer, mas não se faz aí qualquer menção da cena
supra descrita. Essas palavras são do rei que as tinha no coração e se
colocava por orgulho acima de Deus, cujo povo escravizara. A profecia da
libertação do povo judeu, da rainha de Babilônia e do destroço dos assírios é,
ao demais, o assunto exclusivo desse capítulo. Como poderia, então, dizer que
fixaria residência acima dos astros, dominando as mais elevadas nuvens?É sempre
a velha crença da Terra como centro do Universo, do céu como que formado de
nuvens estendendo-se às estrelas, e da limitada região destas, que a Astronomia
nos mostra disseminadas ao infinito no infinito espaço! Sabendo-se, como hoje
se sabe, que as nuvens não se elevam a mais de duas léguas da superfície
terráquea, e falando-se em dominá-las por mais alto, referindo-se a montanhas,
preciso fora que a observação partisse da Terra, sendo ela, de fato, a morada
dos anjos. Dado, porém, ser esta em região superior, inútil fora alçar-se acima
das nuvens. Emprestar aos anjos uma linguagem tisnada de ignorância, é
confessar que os homens contemporâneos são mais sábios que os anjos. A Igreja
tem caminhado sempre erradamente, não levando em conta os progressos da
Ciência. 10. A resposta à primeira objeção acha-se na seguinte passagem:
"A escritura e a tradição denominam céu o lugar no qual se haviam colocado
os anjos, no momento da sua criação. Mas esse não era o céu dos céus, o céu da
visão beatifica, onde Deus se mostra de face aos seus eleitos, que o contemplam
claramente e sem esforço, porque aí não há mais possibilidade nem perigo de
pecado; a tentação e a dúvida são aí desconhecidas; a justiça, a paz e a
alegria reinam imutáveis, a santidade e a glória imperecíveis. Era, portanto,
outra região celeste, uma esfera luminosa e afortunada, essa em que permaneciam
tão nobres criaturas favorecidas pelas divinas comunicações, que deveriam
receber com fé e humildade até serem admitidas no conhecimento da sua realidade
essência do próprio Deus." Do que precede se infere que os anjos
decaídos pertenciam a uma categoria menos elevada e perfeita, não tendo
atingido ainda o lugar supremo em que o erro é impossível. Pois seja: mas,
então, há manifesta contradição nesta afirmativa: Deus em tudo os tinha criado
semelhantes aos espíritos sublimes que, subdivididos em todas as ordens e
adstritos a todas as classes, tinham o mesmo fim e idênticos destinos, e que
seu chefe era o mais belo dos arcanjos. Ora, em tudo semelhantes aos outros,
não lhes seriam inferiores em natureza; idênticos em categorias, não podiam
permanecer em um lugar especial. Intacta subsiste, portanto, a objeção. 11. E
ainda há uma outra que é, certamente, a mais séria e a mais grave. Dizem:
"Este plano (a intervenção do Cristo), concebido desde toda a eternidade,
foi manifestado aos anjos muito antes da sua execução." Deus sabia,
portanto, e de toda a eternidade, que os anjos, tanto quanto os homens, teriam
necessidade dessa intervenção. Ainda mais: o Deus onisciente sabia que alguns
dentre esses anjos viriam a falir, arcando com a eterna condenação e arrastando
a igual sorte uma parte da Humanidade. E assim, de caso pensado, previamente
condenava o gênero humano, a sua própria criação. Deste raciocínio não há
fugir, porquanto de outro modo teríamos que admitir a inconsciência divina,
apregoando a não presciência de Deus. Para nós é impossível identificar uma tal
criação com a soberana bondade. Em ambos os casos vemos a negação de atributos,
sem a plenitude absoluta dos quais Deus não seria Deus. 12. Admitindo a
falibilidade dos anjos como a dos homens, a punição é consequência, aliás justa
e natural, da falta; mas se admitirmos concomitantemente a possibilidade do
resgate, a regeneração, a graça, após o arrependimento e a expiação, tudo se
esclarece e se conforma com a bondade de Deus. Ele sabia que errariam, que
seriam punidos, mas sabia igualmente que tal castigo temporário seria um meio
de lhes fazer compreender o erro, revertendo ao fim em benefício deles. Eis
como se explicam as palavras do profeta Ezequiel: "Deus não quer a morte,
porém a salvação do pecador." (1). A inutilidade do arrependimento e a
impossibilidade de regeneração, isso sim, importaria a negação da divina
bondade. Admitida tal hipótese, poder-se-ia mesmo dizer, rigorosa e exatamente,
que estes anjos desde a sua criação, visto Deus não poder ignorá-lo, foram
votados perpetuidade do mal, e predestinados a demônios para arrastarem os
homens ao mal. 13. Vejamos agora qual a sorte desses tais anjos e o que
fazem: "Mal apenas se manifestou a revolta na linguagem dos Espíritos,
isto é, no arrojo dos seus pensamentos, foram eles banidos da celestial mansão
e precipitados no abismo. Por estas palavras entendemos que foram arremessados
a um lugar de suplícios no qual sofrem a pena de fogo, conforme o texto do
Evangelho, que é a palavra mesma do Salvador. Ide, malditos, ao fogo eterno
preparado pelo demônio e seus anjos. S. Pedro expressamente diz: que Deus os
prendeu às cadeias e torturas infernais, sem que lá estejam, contudo,
perpetuamente, visto como só no fim do mundo serão para sempre enclausurados
com os réprobos. Presentemente, Deus ainda permite que ocupem lugar nesta
criação, à qual pertencem, na ordem de coisas idênticas à sua existência, nas
relações enfim que deviam ter com os homens, e das quais fazem o mais
pernicioso abuso. Enquanto uns ficam na tenebrosa morada, servindo de
instrumento da justiça divina contra as almas infelizes que seduziram, outros,
em número infinito, formam legiões e residem nas camadas inferiores da
atmosfera, percorrendo todo o globo. Envolvem-se em tudo que aqui se passa,
tomando mesmo parte muito ativa nos acontecimentos terrenos." Quanto ao
que diz respeito às palavras do Cristo sobre o suplício do fogo eterno, já nos
explanamos no cap. IV, "O Inferno". (1) Vede 1ª' Parte, cap. VI, nº
25, citação de Ezequiel. 14. Por esta doutrina, apenas uma parte
dos demônios está no inferno; a outra vaga em liberdade, envolvendo-se em tudo
que aqui se passa, dando-se ao prazer de praticar o mal e isso até o fim do
mundo, cuja época indeterminada não chegará tão cedo, provavelmente. Mas, por
que uma tal distinção? Serão estes menos culpados? Certo que não, a menos que
se não revezem, como se pode inferir destas palavras: "Enquanto uns
ficam na tenebrosa morada, servindo de instrumento da justiça divina contra as
almas infelizes que seduziram." Suas ocupações consistem, pois, em
martirizar as almas que seduziram. Assim, não se encarregam de punir faltas
livre e voluntariamente cometidas, porém as que eles próprios provocaram. São
ao mesmo tempo a causa do erro e o instrumento do castigo; e, coisa singular,
que a justiça humana por imperfeita não admitiria - a vítima que sucumbe por
fraqueza, em contingências alheias e porventura superiores à sua vontade, é
tanto ou mais severamente punida do que o agente provocador que emprega astúcia
e artifício, visto como essa vítima, deixando a Terra, vai para o inferno
sofrer sem tréguas, nem favor, eternamente, enquanto que o causador da sua
primeira falta, o agente provocador, goza de uma tal ou qual dilação e
liberdade até o fim do mundo. Como pode a justiça de Deus ser menos perfeita
que a dos homens? 15. Mas, ainda não é tudo: "Deus permite que ocupem
lugar nesta criação, nas relações que com o homem deviam ter e das quais abusam
perniciosamente." Deus podia ignorar, no entanto, o abuso que fariam de
uma liberdade por ele mesmo concedida? Então, por que a concedeu? Mas nesse
caso é com conhecimento de causa que Deus abandona suas criaturas à mercê delas
mesmas, sabendo, pela sua onisciência, que vão sucumbir, tendo a sorte dos
demônios. Não serão elas de si mesmas bastante fracas para falirem, sem a
provocação de um inimigo tanto mais perigoso quanto invisível? Ainda se o
castigo fora temporário e o culpado pudesse remir-se pela reparação! (...). Mas
não: a condenação é irrevogável, eterna! Arrependimento, regeneração,
lamentos, tudo supérfluo! Os demônios não passam, portanto, de agentes
provocadores e de antemão destinados a recrutar almas para o inferno, isto com
a permissão de Deus, que antevia, ao criar estas almas, a sorte que as aguardava.
Que se diria na Terra de um juiz que recorresse a tal expediente para abarrotar
prisões? Estranha ideia que nos dão da Divindade, de um Deus cujos atributos
essenciais são: justiça e bondade soberanas! E dizer-se que é em nome de
Jesus, daquele que só pregou amor, perdão e caridade, que tais doutrinas são
ensinadas! Houve um tempo em que tais anomalias passavam despercebidas, porque
não eram compreendidas nem sentidas; o homem, curvado ao jugo do despotismo,
submetia-se à fé cega, abdicava da razão. Hoje, porém, que a hora da
emancipação soou, esse homem compreende a justiça, e, desejando-a tanto na vida
quanto na morte, exclama: Não é, não pode ser tal, ou Deus não fora
Deus. 16. "O castigo segue por toda a parte os seres decaídos: o
inferno está neles e com eles: nem paz nem repouso, transformadas em amargores
as doçuras da esperança, que se lhes torna odiosa. A mão de Deus, desferiu o
castigo no ato mesmo de pecarem, e sua vontade galvanizou-se no mal.
"Tornados perversos, obstinam-se em o ser e sê-lo-ão para
sempre. "São, depois do pecado, o que é o homem depois da morte. A
reabilitação dos que caíram torna-se também impossível; a sua perda é, desde
então, irreparável, mantendo-se eles no seu orgulho perante Deus, no seu ódio
contra o Cristo, na sua inveja contra a Humanidade. "Não tendo podido
apropriar-se da glória celeste pelo desmesurado da sua ambição, esforçam-se por
implantar seu império na Terra, banindo dela o reino de Deus. O Verbo encarnado
cumpriu, apesar disso, os seus desígnios para salvação e glória da Humanidade.
Também por isso procuram por todos os meios promover a perda das almas pelo
Cristo resgatadas: o artifício e a importunação, a mentira e a sedução, tudo
põem em jogo para arrastá-las ao mal e consumar a perda. "E como são infatigáveis
e poderosos, a vida do homem com inimigos tais não pode deixar de ser uma luta
sem tréguas, do berço ao túmulo. "Efetivamente esses inimigos são os
mesmos que, depois de terem introduzido o mal no mundo, chegaram a cobri-lo com
as espessas trevas do erro e do vício; os mesmos que, por longos séculos, se
fizeram adorar como deuses e que reinaram em absoluto sobre os povos da
antiguidade; os mesmos, enfim, que ainda hoje exercem tirânica influência nas
regiões idólatras, fomentando a desordem e o escândalo até no seio das
sociedades cristãs. Para compreender todos os recursos de que dispõem ao
serviço da malvadez, basta notar que nada perderam das prodigiosas faculdades
que são o apanágio da natureza angélica. Certo, o futuro e sobretudo a ordem
natural têm mistérios que Deus se reservou e que eles não podem penetrar; mas a
sua inteligência é bem superior à nossa, porque percebem de um jacto os efeitos
nas causas e vice versa. Esta percepção permite-lhes predizer
acontecimentos futuros que escapam às nossas conjeturas. A distância e
variedade dos lugares desaparecem ante a sua agilidade. Mais prontos que o
raio, mais rápidos que o pensamento, acham-se quase instantaneamente sobre
diversos pontos do globo e podem descrever, a distância, os acontecimentos na
mesma hora em que ocorrem. "As leis pelas quais Deus rege o Universo
não lhes são acessíveis, razão por que não podem derrogá-las, e, por
conseguinte, predizer ou operar verdadeiros milagres; possuem no entanto a arte
de imitar e falsificar, dentro de certos limites, as divinas obras; sabem quais
os fenômenos resultantes da combinação dos elementos, predizem com maior ou
menor êxito os que sobrevêm naturalmente, assim como os que por si mesmos podem
produzir. Daí os numerosos oráculos, os extraordinários vaticínios que sagrados
e profanos livros recolheram, baseando e acoroçoando tantas e tantas
superstições. "A sua substância simples e imaterial subtrai-os às
nossas vistas; permanecem ao nosso lado sem que os vejamos, interessam-nos a
alma sem que nos firam o ouvido. Acreditando obedecer aos nossos pensamentos,
estamos no entanto, e muitas vezes, debaixo da sua funesta influência. As
nossas disposições, ao contrário, são deles conhecidas pelas impressões que
delas transparecem em nós, e atacam-nos ordinariamente pelo lado mais fraco.
Para nos seduzirem com mais segurança, costumam servir-se de sugestões e
engodos conformes com as nossas inclinações. Modificam a ação segundo as
circunstâncias e os traços característicos de cada temperamento. Contudo, suas
armas favoritas são a hipocrisia e a mentira." 17. Afirmam que o
castigo os segue por toda parte; que não sabem o que seja paz nem repouso. Esta
asserção de modo algum destrói a observação que fizemos quanto ao privilégio
dos que estão fora do inferno, e que reputamos tanto menos justificado por isso
que podem fazer, e fazem, maior mal. É de crer que esses demônios extra
infernais não sejam tão felizes como os bons anjos, mas não se deverá ter em
conta a sua relativa liberdade? Eles não possuirão a felicidade moral que a
virtude defere, mas são incontestavelmente mais felizes que os seus comparsas
do inferno flamífero. Depois, para o mau, sempre há um certo gozo na prática do
mal, de mais a mais livremente. Perguntai ao criminoso o que prefere: se ficar
na prisão, ou percorrer livremente os campos, agindo à vontade? Pois o caso é
exatamente o mesmo. Afirmam, outrossim, que o remorso os persegue sem
tréguas nem misericórdia, esquecidos de que o remorso é o precursor imediato do
arrependimento, quando não é o próprio arrependimento. "Tornados
perversos, obstinam-se em o ser, e sê-lo-ão para sempre." Mas desde que se
obstinam em ser perversos, é que não têm remorsos; do contrário, ao menor
sentimento de pesar, renunciariam ao mal e pediriam perdão. Logo, o
remorso não é para eles um castigo. 18. "São, depois do pecado, o que
é o homem depois da morte. A reabilitação dos que caíram torna-se, portanto,
impossível." Donde provém essa impossibilidade? Não se compreende que
ela seja a consequência de sua similitude com o homem depois da morte,
proposição que, ao demais, é muito ambígua. Acaso provirá da própria
vontade dos demônios? Porventura da vontade divina? No primeiro caso a
pertinácia denota uma extrema perversidade, um endurecimento absoluto no mal, e
nem mesmo se compreende que seres tão profundamente perversos pudessem jamais
ter sido anjos de virtude, conservando por tempo indefinido, na convivência
destes, todos os traços da sua péssima índole e natureza. No segundo caso,
ainda menos se compreende que Deus inflija como castigo a impossibilidade da
reparação, após uma primeira falta. O Evangelho nada diz que com isso se
pareça. 19. "A sua perda é desde então irreparável, mantendo-se eles
no seu orgulho perante Deus." E de que lhes serviria não manterem tal
orgulho, uma vez que é inútil todo o arrependimento? O bem só poderia
interessá-los se eles tivessem uma esperança de reabilitação, fosse qual fosse
o seu preço. Assim não acontece, no entanto, e pois se perseveram no mal é
porque lhes trancaram a porta da esperança. Mas por que lhes trancaria Deus
essa porta? Para se vingar da ofensa decorrente da sua insubmissão. E, assim,
para saciar o seu ressentimento contra alguns culpados, Deus prefere não
somente vê-los sofrer, mas agravar o mal com mal maior; impelir à perdição
eterna toda a Humanidade, quando por um simples ato de demência podia evitar
tão grande desastre, aliás previsto de toda a eternidade! Trata-se, no
caso vertente, de um ato de demência, de uma graça pura e simples que pudesse
transformar-se em estimulo do mal? Não, trata-se de um perdão condicional,
subordinado a uma regeneração sincera e completa. Mas, ao invés de uma palavra
de esperança e misericórdia, é como se Deus dissera: "Pereça toda a raça
humana antes que minha vingança." E com semelhante doutrina ainda muita
gente se admira de que haja incrédulos e ateus! E é assim que Jesus nos
representa seu Pai? Ele que nos deu a lei expressa do esquecimento e do
perdão das ofensas, que nos manda pagar o mal com o bem, que prescreve o amor
dos nossos inimigos como a primeira das virtudes que nos conduzem ao céu,
quereria desse modo que os homens fossem melhores, mais justos, mais
indulgentes que o próprio Deus? Os
demônios segundo o Espiritismo. 20. Segundo o Espiritismo, nem anjos
nem demônios são entidades distintas, por isso que a criação de seres
inteligentes é uma só. Unidos a corpos materiais, esses seres constituem a
Humanidade que povoa a Terra e as outras esferas habitadas; uma vez libertos do
corpo material, constituem o mundo espiritual ou dos Espíritos, que povoam os
Espaços. Deus criou-os perfectíveis e deu-lhes por escopo a perfeição, com a
felicidade que dela decorre. Não lhes deu, contudo, a perfeição, pois quis que
a obtivessem por seu próprio esforço, a fim de que também e realmente lhes
pertencesse o mérito. Desde o momento da sua criação que os seres progridem,
quer encarnados, quer no estado espiritual. Atingido o apogeu, tornam-se puros
espíritos ou anjos segundo a expressão vulgar, de sorte que, a partir do
embrião do ser inteligente até ao anjo, há uma cadeia na qual cada um dos elos
assinala um grau de progresso. Do expresso resulta que há Espíritos em todos os
graus de adiantamento, moral e intelectual, conforme a posição em que se acham,
na imensa escala do progresso. Em todos os graus existe, portanto, ignorância e
saber, bondade e maldade. Nas classes inferiores destacam-se Espíritos ainda
profundamente propensos ao mal e comprazendo-se com o mal. A estes pode-se
denominar demônios, pois são capazes de todos os malefícios aos ditos
atribuídos. O Espiritismo não lhes dá tal nome por se prender ele à ideia de
uma criação distinta do gênero humano, como seres de natureza essencialmente
perversa, votados ao mal eternamente e incapazes de qualquer progresso para o
bem. 21. Segundo a doutrina da Igreja os demônios foram criados bons e
tornaram-se maus por sua desobediência: são anjos colocados primitivamente por
Deus no ápice da escala, tendo dela decaído. Segundo o Espiritismo os demônios
são Espíritos imperfeitos, suscetíveis de regeneração e que, colocados na base
da escala, hão de nela graduar-se. Os que por apatia, negligência, obstinação
ou má vontade persistem em ficar, por mais tempo, nas classes inferiores,
sofrem as consequências dessa atitude, e o hábito do mal dificulta-lhes a
regeneração. Chega-lhes, porém, um dia a fadiga dessa vida penosa e das suas
respectivas consequências; eles comparam a sua situação à dos bons Espíritos e
compreendem que o seu interesse está no bem, procurando então melhorarem-se,
mas por ato de espontânea vontade, sem que haja nisso o mínimo constrangimento.
"Submetidos à lei geral do progresso, em virtude da sua aptidão para o
mesmo, não progridem, ainda assim, contra a vontade." Deus fornece-lhes
constantemente os meios, porém, com a faculdade de aceitá-los ou recusá-los. Se
o progresso fosse obrigatório não haveria mérito, e Deus quer que todos
tenhamos o mérito de nossas obras. Ninguém é colocado em primeiro lugar por
privilégio; mas o primeiro lugar a todos é franqueado à custa do esforço
próprio. Os anjos mais elevados conquistaram a sua graduação, passando,
como os demais, pela rota comum. 22. Chegados a certo grau de pureza, os
Espíritos têm missões adequadas ao seu progresso; preenchem assim todas as
funções atribuídas aos anjos de diferentes categorias. E como Deus criou de
toda a eternidade, segue-se que de toda a eternidade houve número suficiente
para satisfazer às necessidades do governo universal. Deste modo uma só espécie
de seres inteligentes, submetida à lei de progresso, satisfaz todos os fins da
Criação. Por fim, a unidade da Criação, aliada à idéia de uma origem
comum, tendo o mesmo ponto de partida e trajetória, elevando-se pelo próprio
mérito, corresponde melhor à justiça de Deus do que a criação de espécies
diferentes, mais ou menos favorecidas de dotes naturais, que seriam outros
tantos privilégios. 23. A doutrina vulgar sobre a natureza dos anjos, dos
demônios e das almas, não admitindo a lei do progresso, mas vendo todavia seres
de diversos graus, concluiu que seriam produto de outras tantas criações
especiais. E assim foi que chegou a fazer de Deus um pai parcial, tudo
concedendo a alguns de seus filhos, e a outros impondo o mais rude trabalho.
Não admira que por muito tempo os homens achassem justificação para tais
preferências, quando eles próprios delas usavam em relação aos filhos,
estabelecendo direitos de primogenitura e outros privilégios de nascimento.
Podiam tais homens acreditar que andavam mais errados que Deus? Hoje, porém,
alargou-se o círculo das ideias: o homem vê mais claro e tem noções mais
precisas de justiça; desejando-a para si e nem sempre encontrando-a na Terra,
ele quer pelo menos encontrá-la mais perfeita no Céu. E aqui está por que lhe
repugna à razão toda e qualquer doutrina, na qual não resplenda a Justiça Divina
na plenitude integral da su a pureza. (Allan Kardec, Livro O Céu e o
Inferno", edição LAKE).www.institutoandreluiz.org. Abraço. Davi
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