Confucionismo.
Texto de Jacques Gernet. I OS PRINCÍPIOS CONFUCIONISTAS DA IDEOLOGIA CHINESA
ATUAL. "Não há quase nenhum pormenor no comportamento de um bom comunista
que não faça lembrar exatamente aquele de um bom neo confucionista”. Jacques
Gernet (1921-2018). INTRODUÇÃO. A seguir
à Implantação da República Popular da China, em 1949, o Japão, um país que
havia invadido recentemente o território chinês, foi o primeiro país a
levantar-se para defender, mesmo contra a maior potência mundial não comunista
- os Estados Unidos - que a ideologia adotada por esta era um comunismo de
raízes chinesas, não se tratando de comunismo soviético puro. Tal como tem a
História da China testemunhado, poucas são as culturas e estilos de vida que ao
entrarem em território chinês mantêm as suas características originais
inalteráveis. Este povo de civilização milenária tende a absorver os valores e
formas de vida, adaptando-se imediatamente à realidade local, sinalizando-os.
Como não podia deixar de ser, também a ideologia comunista, adotada pela
liderança chinesa pós 1949, sofreu algumas alterações e adaptações à particular
situação do país. É exemplo explícito desta adaptação a adoção de uma “economia
socialista com características chinesas” (中国特色社会主义的经济), medida
tomada pelo governo chinês desde o Congresso de 1987. Inserida na política de
reformas e abertura levada a cabo pela liderança. E porque esta ideologia teve
uma adaptação tão rápida e eficiente ao povo chinês? A verdade é que muitos dos
princípios base da ideologia comunista estão em conformidade com os valores
tradicionais chineses, nomeadamente os valores confucionistas, e poder-se-ia
mesmo dizer que algumas medidas tomadas pelo governo chinês são confucionistas
em gênese. Como tal, apesar de em tempos, o confucionismo ter sido um dos
principais alvos das críticas dos ideólogos comunistas, a verdade é que estas
duas formas de encarar a vida se separaram e antagonizam para encontrar
finalmente um ponto de encontro comum, dinâmico e mesmo muito útil na
atualidade caracterizada pela globalização económica e o espírito de
modernização. Trata-se afinal da filosofia chinesa da unidade dos contrários,
do yin e do yang, em que estes polos nunca estão em completa oposição, mas sim
se entrecruzam e se interpenetram, sucedendo-se um ao outro. AS RAÍZES DO
CONFUCIONISMO. CONFÚCIO. "Mais que um homem ou que um pensador, e mesmo
mais que uma escola de pensamento, Confúcio representa um verdadeiro fenómeno
cultural que se confunde com o destino de toda a civilização chinesa."
Anne Cheng (1955 - ) A VIDA Embora o seu nascimento esteja envolto em algumas
histórias fantásticas, como de resto é comum encontrar-se associado a
personagens importantes da História da China, Confúcio (Kongzi, 孔子)
teria vivido entre (551 AC 479) numa época conturbada, dominada pela desordem
do fim da Dinastia Zhou (1100 AC 476). Então, os diversos reinos em que se
encontrava dividido o território chinês rivalizavam pelo domínio, desencadeando
conflitos violentos, daí que este período seja conhecido como os Reinos
Combatentes (475 AC 221). Mais tarde, o lugar de domínio dentre estes seria
alcançado pelo Reino Qin, que acabou por unificar todos os reinos sob a
liderança do cruel Qin Shi Huangdi, fundando a conhecida Dinastia Qin (221 AC 206).
Interessa aqui sublinhar que este foi um período de convulsões internas
originadas pelas degradantes condições de vida e pelo poderio crescente que os
príncipes vinham conquistando no interior dos seus reinos. Estas condições
dinamizaram o pensamento da época, surgindo diversos pensadores que procuravam
propor a melhor forma de governar. A abundância de escolas de pensamento
durante este período fez com que lhe fosse atribuída a designação de “Período
de Ouro da Filosofia Chinesa”, ou período das “Cem Escolas de Pensamento”.
Surgiram nesta época as sementes do que haveria de se tornar nas importantes
filosofias do Confucionismo, Tauísmo, Moísmo e Legismo. Com exceção desta
última, nenhuma das outras ideias foi imediatamente adotada pelos imperadores.
Somente sob a Dinastia Han (206 AC 220 DC), viriam o Confucionismo e o Tauísmo
a atingir estádios mais adiantados de desenvolvimento teórico. Confúcio nasceu
na pequena cidade de Qufu (曲阜), no Reino de Lu (鲁国), na atual Província de Shandong (山东), em agosto de
551 AC., mas pouco se sabe da sua vida. Uma das fontes a que se pode recorrer
para traçar a sua biografia é o livro "Memórias Históricas" (史 记) do grande historiador que viveu no século II AC,
Sima Qian (司马迁), mas ainda assim esta é uma fonte pouco segura
devido à dificuldade em provar os factos descritos. Aparentemente a sua família
era pobre e modesta, ainda que os seus ascendentes pertencessem à família dos
Duques do Estado dos Song, a qual descendia da família real da Dinastia Zhou.
Como o pai de Confúcio, que era chefe do exército, tinha já uma certa idade
quando se casou pela segunda vez com a que viria a ser a sua mãe, conta a lenda
que ela se dirigiu a um monte para orar, para pedir que tivesse um filho. Aí
ela viu um licorne e atou-lhe uma fita bordada à volta do corno para que o seu
desejo se concretizasse. Quando deu à luz à sombra de uma amoreira teria sido
velada por dois dragões. Por esse motivo ou talvez porque quando Confúcio
nasceu tinha uma protuberância na fronte, foi-lhe dado o nome de Qiu (丘),
que significa colina. Apenas com três anos de idade, Confúcio perdeu o pai e,
como a sua mãe tinha somente 18 anos, teve que se dedicar ao trabalho agrícola
nas terras que tinha recebido como qualidade de viúva de funcionário público
para poder dar ao filho a educação que pretendia. E parece que Confúcio
correspondeu às suas expectativas pois com 15 anos já frequentava a escola dos
letrados e, dois anos mais tarde, recebia lições particulares, ao mesmo tempo
que se iniciava na vida militar e no cerimonial da Corte. E é o próprio
Confúcio que, nos "Analectos", nos descreve com determinação a sua
vida: "Aos quinze anos, resolvi aprender. Aos trinta anos, firmei-me no
Caminho. Aos quarenta anos, já não tinha nenhuma dúvida. Aos cinquenta anos,
conhecia os decretos do Céu. Aos sessenta anos, tinha um discernimento
perfeito. Aos setenta anos, agia em toda a liberdade, sem por isso transgredir
nenhuma regra." (Analectos de Confúcio II-4) 4 Aos 19 anos casou-se, do
qual resultaram dois rebentos: um menino e uma menina. Continuou a conciliar o
trabalho com os estudos, sendo que aos 22 anos servia como intendente dos
celeiros e, mais tarde, como inspetor da distribuição das mercadorias, ao mesmo
tempo que abria a sua própria escola. Quando tinha 24 anos, a sua mãe faleceu,
pelo que, segundo a prescrição dos ritos, não exerceu nenhuma atividade durante
os devidos três anos de luto. Contudo, a história antiga e a literatura
continuaram a ocupar o seu espírito, seguindo estudando os Clássicos com afinco.
Posteriormente e devido ao prestígio que começou a alcançar, o Mestre Kong Zi (孔子)
foi convidado para ocupar alguns cargos de destaque na Corte. Assim, aos 30
anos, foi para a Corte de Lu, e, mais tarde, com o apoio do Duque King de Qi,
entrou na Corte do Imperador Zhou, em Luoyang. Foi nesta altura que se deu o
célebre encontro entre Kongzi e Laozi (604 AC.). "Conta-se que Laozi
recebeu Confúcio com severidade e frieza, incentivando-o a procurar o Tao.
Confúcio, por seu turno, teria ficado bem impressionado com o Velho Sábio, pois
segundo o relato, referiu a seus discípulos que havia visto Laozi e lhe havia
parecido um dragão, que se eleva sobre as nuvens mas que não pode ser
perseguido." Devido ao período de convulsões e de conflitos entre os reinos
vizinhos que caracterizaram a região entre 520 e 510 AC. Confúcio teve que
mudar-se por diversas vezes, acompanhando o Duque de Lu, o qual lhe chegou a
confiar o governo da cidade de Tchung-tu que se tornou modelo de prosperidade.
Devido a este feito, foram-lhe atribuídos locais de destaque na administração
do território, primeiro como intendente dos trabalhos públicos e, depois, como
ministro da Justiça. Foi durante este período que desenvolveu máximas relativas
à arte de governar, que vêm descritas no capítulo XII dos
"Analectos". Com 56 anos, teve a oportunidade de pôr em prática a sua
doutrina de governo, quando exerceu o cargo de primeiro-ministro de Lu. Devido
a uma certa independência econômica adquirida por Confúcio e também porque a
sua doutrina não correspondia às exigências do seu tempo, em 495, Confúcio
resolveu ausentar-se, passando a levar uma vida errante acompanhado pelos seus
discípulos. Iniciou, assim, uma série de longas viagens pelos reinos de Qi,
Song e Wei, ensinando a sua doutrina pela palavra e pelo seu próprio exemplo.
Ao mesmo tempo que se dedicava ao ensino, o Mestre Kong oferecia também os seus
serviços aos príncipes feudais que disputavam um lugar de destaque entre os
restantes reinos, em plena época de decadência da Dinastia Zhou. Durante estas
viagens ocorreram diversos episódios, alguns dos quais vêm descritos nos
Analectos. Após todas estas aventuras, Confúcio regressou finalmente a Lu cerca
de 515 AC. Tinha alcançado um tal prestígio que, segundo alguns autores, teria
conseguido reunir cerca de 3000 discípulos, entre jovens letrados vindos das
melhores famílias, filhos de homens de destaque do Reino, com uma grande
influência na Nação, assim como de famílias mais pobres. Contudo, unia-os o
respeito ao mestre e ao seu ensinamento, sendo de destacar que Confúcio
tratava-os individualmente, aconselhando-os de acordo com as suas
características específicas. Confúcio ensinava-lhes poesia, história, o
cerimonial da Corte e música, 70 dos quais conheciam a fundo os Cinco Clássicos.
Com 72 anos faleceu no Reino de Lu, em abril de 479 AC. mas parece que a
"morte do Sábio não ocorreu sem grandiosidade, e a lembrança que nos
transmitiu a tradição autoriza as seguintes reflexões: a) O seu apelo ao
respeito filial não foi em vão no que a si lhe calhava. Se o filho, que
provavelmente morreu antes dele, parece não ter sido tocado pela graça do pai,
o neto [Zi Si] esteve presente para recolher as suas últimas palavras. b) O seu
pensamento tinha o vigor bastante para levá-lo a esperar com serenidade os
derradeiros momentos. Nenhuma revolta diante da morte, nenhum apelo a
intermediários entre o Céu e ele. Capaz de afrontar sozinho a vida, também foi
capaz de afrontar sozinho a morte. c) Tendo atingido uma idade respeitável e,
ao que parece, gozando sempre de boa saúde, Confúcio morreu em plena posse das
suas faculdade. Pronunciando as palavras: «A minha doutrina chegou ao seu
termo», dá desde logo razão àqueles seus comentadores que porão em evidência a
íntima conformidade entre a vida e o ensino do Sábio, a tal ponto que é
impossível interpretar a sua doutrina sem ser em função da sua vida. OS ESCRITOS A doutrina proposta por Confúcio pode ser encontrada de
forma fragmentária nos que ficaram conhecidos como os "Quatro Livros"
(四书), nenhum dos quais teria sido escrito por si na sua
totalidade. Os "Quatro Livros" incluem: "O Grande
Aprendizado" (大学), em parte escrito por Confúcio; a "Doutrina do
Meio" (中庸), escrito pelo neto de Confúcio, Zi Si; "Os
Analectos" (论语), que teriam
sido escritos por alguns dos seus discípulos; e o "Livro de Mêncio" (孟子),
escrito pelo seu seguidor Mêncio (372 AC 289). À semelhança do filósofo grego
Sócrates (470 AC 399), Confúcio pouco ou nada escreveu sobre a sua filosofia e
o seu método baseava-se no diálogo, a partir do qual os seus discípulos puderam
retirar ensinamentos para elaborar "Os Analectos". A relação que
Confúcio estabelecia com os seus alunos era exemplar, um modelo a ser seguido.
Dirigia-se com afetividade e, ao mesmo tempo, cordialidade, simplicidade e, ao
mesmo tempo, a dignidade necessária ao respeito existente numa relação entre
professor e alunos, tal como ele mesmo ensinava. O seu método de ensino
permitia o diálogo com os alunos, em que estes podiam colocar questões ao seu
Mestre e, mesmo, dar opiniões e fazer críticas. Esta abertura e o tratamento
personalizado que Confúcio dava aos seus discípulos suscitava a sua admiração,
que não chegaria contudo aos extremos da deificação, que se deu muito mais
tarde quando o confucionismo se tornou numa religião do povo. Este
relacionamento cordial que tinha com os seus alunos era também o modelo que
estes deviam adotar entre si e com as outras pessoas. Trata-se do ren (仁),
o não fazer aos outros o que não gostamos que nos façam a nós mesmos. Para além
destas considerações sobre o relacionamento entre as pessoas, os discípulos de
Confúcio consagraram nos "Analectos" alguns capítulos sobre os Sábios
da Antiguidade e sobre a Missão Celeste, em que apresenta a forma de governação
dos Imperadores antigos como o modelo a ser seguido pelos governadores
contemporâneos. Quanto ao "Grande Aprendizado" (大学), trata-se de um tratado
moral elaborado em parte pelo próprio Confúcio e que sublinha a capacidade do
homem de ser responsável pela sua própria salvação. Assim, Confúcio preocupa-se
com a formação de uma elite, assim como com a educação dos príncipes, com o fim
último de promoção do bem das massas. E a verdade é que se o soberano for
justo, conforme a ordem cósmica, logo os seus súbditos o seguirão de bom grado
e isso promoverá a prosperidade do reino. Por isso, conhecer a ordem natural
dos fenômenos é a base da grande sabedoria, este é o ensino supremo - Da Xue.
Segundo Confúcio, cabe-lhe transmitir este conhecimento pois ele é o porta-voz
da sabedoria antiga, é esta a sua vocação ética. Da autoria do neto de Confúcio
Zi Si, a "Doutrina do Meio" (中庸)procura sublinhar o equilíbrio que deve existir na
personalidade dos homens. Mas este equilíbrio deve ser atingido sem esforço, o
que não significa que seja alcançado sem ação, como ensinam os tauístas. Na
realidade, este equilíbrio deve ser procurado intensivamente, através de uma
reflexão profunda e deve ser colocado em prática de uma forma séria. Zi Si, na
senda de seu Mestre, não fecha as portas de entrada deste equilíbrio a nenhuma
classe de pessoas, pois todos podem chegar a esta via, mas só quem a alcança
poderá apreender o sentido da ordem do Céu e da Terra, o Dão (道). Assim aparece o junzi (君子), o homem de bem cuja vida é uma imagem da ordem moral
universal, segundo Confúcio. É esta a norma da harmonia do Universo, ou seja, a
regra central – zhong (中) - e constante – yong (庸). Finalmente, o "Livro de Mêncio" (孟子) traduz a abordagem de
Mêncio ao confucionismo, inspirado também no livro de Zi Si. Trata-se de uma
perspectiva que sublinha a bondade natural do homem e que será desenvolvida
adiante no capítulo respeitante a Mêncio. Abraço. Davi
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