Editor do Mosaico. Minha reflexão sobre o Filme Fernão Capelo
Gaivota, que estreou mundialmente em 1973, baseado no livro de Richard Bach - publicado em 1970 - do
mesmo nome, tem um caráter personalíssimo. Após a estreia da projeção, o livro
vendeu mais de 40 milhões de exemplares em aproximadamente 70 países.
Escrevi esse texto, mais com o coração que com a razão. Isso talvez prejudique
a crítica; entretanto a ideia não é enfatizar pontos positivos ou negativos da
produção, ao contrário, tirar lições práticas que nos ajude a desenvolver nosso
ser interior. Evoluindo nossa espiritualidade pela diversidade, confrontamos
nossa crença com outros valores culturais. Assim olhamos a verdade pelo prisma
da multiplicidade, tendo uma visão do todo, não apenas de pequena parte dela.
Percebemos que ela espalha seu “fragmento” por todos os lados. Além do que,
reconhecemos que não temos condições de juntar esses excertos num só fundamento
ou alicerce. Marcou-me muito o enredo e o cenário exuberante da natureza. Um
filme que por sua beleza plástica e artística congela-se em nossa memória. O
cinema pra mim é deslumbrante. O tenho como uma sessão de análise. Ajo como um
paciente e a projeção é meu (analista) terapeuta. A magia do cinema é
encantadora, proporcionando uma viagem para dentro do consciente, e saindo pela
imaginação das fantasias e sonhos do inconsciente adormecido. Por isso alguns o chamam de A Sétima Arte. O início da
projeção proporciona um estranhamento. Muita música e imagem, pouca fala, e uma
extraordinária natureza enchem nossos olhos e sentimentos duma profunda paz e
alegria indescritível. O mar com seus mistérios e lembranças perpassa toda a
narrativa. Ele com sua imensidão, representa nosso desejo por conhecer o
ignorado, buscando por encontrar a nós mesmos. As rochas e penhascos simbolizam
as dificuldades que teremos, escolhendo um caminho para individualização pelo
processo da transformação. Muito bem pensado o uso das aves como personagens do
enredo. Elas segundo nosso senso comum estão abaixo na escala de consciência da
natureza, realizando seus atos impelidos pela sensação, apetite e instinto
natural. Para um fim, que imaginamos elas mesmo ignoram e cujas consequências
não conseguem prever. Assim tendemos a dominar os seres que julgamos não ter
uma evolução comparada à humana, pois esta tem racionalidade, inteligência
capacidade para analisar seu atos, suas tarefas, planejar suas atividades e
coloca-las em prática. Tudo começou nas primeiras páginas da Bíblia Sagrada,
com o versículo 26 de Gênesis 1 que diz: “E disse Deus; Façamos o homem a nossa
imagem conforme a nossa semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as
aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a Terra, e sobre todo o réptil que
se move sobre a Terra”. Esse trecho sagrado é hoje questionado por muitos
especialistas da exegese teológica. Segundo estudos recentes, o tradutor do
texto original da septuaginta – os 70 rabinos judeus de Alexandria, no Egito,
que na famosa biblioteca dessa cidade, copiaram o texto canônico do Antigo
Testamento – São Jerônimo (347-420) usou o verbo “dominar” que não estava
incluído nesses originais dos antigos 70 rabinos. No lugar de dominar, havia
supostamente a expressão – “vivei em harmonia com”, que foi descartada pelo
sábio. O então papa Damásio (305-384) deu todo apoio a tradução da Vulgata –
tradução da Bíblia Sagrada, Antigo e Novo Testamento, feita por Jerônimo, sendo
declarada a versão oficial da Igreja Católica Romana – realizada por Jerônimo;
consumindo mais de 10 anos de estudos e pesquisas do sábio, que dedicou
exclusividade ao projeto. A tradução da palavra equivocada provocou um
desequilíbrio na natureza, onde o homem ocidental usando de sua prerrogativa "cristã" da questionável dominação, assume uma posição de predador e não
companheiro dos outros seres. Trabalha infelizmente, em grande parte,
destruindo e usurpando daquilo que o Criador lhe concedeu para que ele
preserva-se, mante-se e cuida-se conscientemente; retirando da natureza seu
sustento de forma equilibrada e responsável. Recompondo aquilo que foi
danificado no solo, águas e vegetação. Percebemos na projeção a colonização
pela consciência coletiva, um artifício das ideologias extremistas que usam a
população como massa de manobra para seus interesses particulares. Uma
uniformização por regras e preconceitos fechados, não podendo ser minimamente
discutidos, sob comando de repressão ou prisão coercitiva. As milhares de
gaivotas vivendo em colônia se submetiam sem questionamento a um controle –
conselho de anciãos – único e supremo. Nenhuma decisão ou escolha poderia ser
feita sem a permissão destes legisladores. Fernão – nosso protagonista – queria
superar seus limites ao voar, contudo um "decreto" impedia as gaivotas
de fazê-lo até certo limite, e caso alguma ousasse infringir a lei, seria
expulsa do bando. Fernão contrariando as expectativas, criou coragem e
escolhendo correr o risco, alçou voo nunca antes realizado pelos de sua
espécie. Enfrentando perigos superou seu próprio limite. Foi recompensado com a
descoberta de um mundo novo, acessível à conquista de todos. Por seu
atrevimento e desobediência aos preceitos vigentes; um tribunal – de anciãos –
foi destacado para investigar e dar parecer sobre o caso. O veredito concluiu
que por atravessar fronteiras proibidas, ofendendo a cultura tradicional
reinante e por procurar "subverter" alguns do bando. Fernão deveria
ser expulso daquela comunidade e impedido de ter contato com qualquer um de
seus antigos párias. As comunidades fechadas e exclusivistas tem esta atitude
quando são confrontadas em seus dogmas e crenças considerados verdade absoluta.
O controversista geralmente é penalizado em público, dando exemplo de correção
à todos aqueles que fazerem o mesmo; como intimidação para que o fato não venha
a si repetir. Em lugares como esse não há liberdade de expressão nem ambiente a
crescimento de nossa individualidade como seres totais, que interagem com a
multiplicidade da natureza e das várias formas conceituais e paradigmas
humanos. Esses foram os motivos pelos quais Fernão começou seu percurso para
encontrar sua própria identidade. A princípio uma solidão toma conta dele.
Enriquecendo nosso texto “solidão e isolamento não são a mesma coisa. Em termos
psicológicos podemos conceituar a solidão em pelo menos em cinco aspectos. 1.
Falta de significado e objetivo da vida. Entretanto, na prática a solidão pode
produzir um sentimento de alheamento do indivíduo em relação aos demais seres
humanos, levando-o a um questionamento sobre as origens e o sentimento da
existência. De onde vim? Para onde vou? São perguntas que podem surgir nestas
circunstâncias. 2. Reação emocional. Geralmente, o sentimento psicológico de
isolamento é que caracteriza a solidão. 3. Sentimento indesejado e
desagradável. A solidão, as vezes, pode ser acompanhada pelo sentimento de
angústia, produzindo um sofrimento a mais naquele que está privado de
relacionamentos íntimos mais duradouros. 4. Sentimento de isolamento e
separação. É a constatação do estado psicológica do estado de solidão. 5.
Deficiência nos relacionamentos. Esta é uma característica de grande parte dos
solitários, que culmina por produzir uma espécie de feedback em todo o processo
de solidão, realimentando-o. Nesse sentido, a solidão seria uma resposta a
carência de relacionamentos sociais e afetivos. Pelos elementos apontados por
Tamayo (1984) o que caracteriza a solidão é o aspecto puramente psicológico. É
o sentimento de estar só, acompanhado da constatação da separação emocional do
outro. É a falta da interação e comunicação emocional entre um indivíduo e
outro ser humano. O outro pode, inclusive, estar próximo geograficamente, no
entanto; a solidão impede qualquer aproximação, afetiva. Como ocorre com o
solitário em meio a multidão: todos estão presente, e ao mesmo tempo tão
distantes, próximos, e todavia separados. A solidão é a mesma coisa que estar
só”. Precisamos da "solidão" em momentos de desencontros como o
ocorrido na narrativa envolvendo Fernão. É a oportunidade de refletir em cada
fato – analisando os pros e contra; nos percebemos no contexto em que estávamos
e tomando nossa própria decisão seguimos nosso percurso existência. Neste âmbito podemos pensar por nós mesmos e
construir a nossa história com o outro sem a interferência de ideologia ou
qualquer suposta verdade. As várias viagens que Fernão fez por terras
longínquas são cenários que enchem de comoção os olhos e o coração. A interação
cultural é reconhecidamente um fator de abrangência na visão de mundo. Cria no
viajante um sentimento de pluralidade cósmica, onde o todo é maior que a parte,
e a parte é uma complementariedade do todo. Uma unidade em que as pequenas e
grandes coisas têm significados divergentes e convergentes para a integralidade
total do Universo. O Buda disse sobre a verdade. “A verdade não está lá fora, a
verdade esta dentro de você. Não acredite em algo simplesmente porque ouviu.
Não acredite em algo simplesmente porque todos falam a respeito. Não acredite
em algo simplesmente porque está escrito em seus livros religiosos. Não
acredite em algo só porque seus professores e mestres dizem que é a verdade.
Não acreditem em tradições só porque foram passadas de geração em geração. Mas
depois de muita análise e observação, se você vê que algo concorda com a razão,
e que o conduz ao bem, e benefício de todos, aceite-o e viva-o. Feliz aqueles
cujo conhecimento é livre de ilusões e superstições”. Jiddu Krishnamurti
(1895-1986) também disse: "Eu afirmo que a verdade é uma terra sem
caminhos, e vocês não podem alcançá-la por nenhum caminho, qualquer que seja,
por nenhuma religião, por nenhuma seita. Este é o meu ponto de vista, e eu
o confirmo absoluta e incondicionalmente. A verdade sendo ilimitada,
incondicionada, inacessível por qualquer caminho que seja, não pode ser
organizada; nem pode qualquer organização ser constituída para conduzir ou
coagir pessoas para qualquer senda particular. Se vocês logo compreenderem
isso, verão o quanto é impossível organizar uma crença. Uma crença é algo
puramente individual, e vocês não podem e não devem organizá-la. Se o fizerem,
ela se torna morta, cristalizada, ela se torna um credo, uma seita, uma
religião a ser imposta aos outros. Isto é o que todos estão tentando fazer
mundo afora. A verdade é restringida e usada como joguete por aqueles que são
fracos, por aqueles que estão momentaneamente desgostosos. A verdade não pode
ser rebaixada, mas em vez disso, deve o indivíduo fazer esforça por ascender
até ela. Vocês não podem trazer o topo da montanha para o vale. Se querem
atingir o topo da montanha, vocês devem atravessar o vale e escalar as escarpas
sem medo dos perigos precipícios". Andando no deserto Fernão percebe seu rasto marcado na areia.
Sente a beleza pela surpresa dessa descoberta. Seu espanto e admiração na
região fria mostra como demoramos por assimilar condicionamentos que não
estamos acostumados a vivenciar. Fora da cobertura cultural, passamos por um
processo de difícil transição, adaptando-nos a nova realidade que se apresenta.
Quando saímos de estruturas rígidas (dogmáticas e extremistas) temos a sensação
de estarmos sozinhos. Com o tempo reconhecemos que a experiência exibe o
contrário. Outros passaram a mesma situação, encontrando convivências em
ajuntamentos de mútuos relacionamentos. Fernão passou por um processo de aprendizado
nas várias circunstâncias que enfrentou. Tinha um forte desejo, contar as boas
novas para seus amigos do antigo bando. Há um fascinante mundo lá fora para ser
explorado por nossa percepção, imaginação e vontade. Em suas investigações
pessoais "ele" encontra um pequeno grupo de gaivotas despegadas de
sistemas inflexíveis e severos. Tem com esse novo bando relacionamento de
convivência. Não mais uma estrutura exclusivista e estreitante, fechada em suas
crendices e estereótipos. Neste recente ambiente Fernão percebe que sua voz é
acolhida e respeitada. Valorizar a vida - fraternidade universal - e
a existência pela convivências humanas são agora seus princípios
norteadores. Sua amizade com uma gaivota fêmea pode ter-lhe trazido recordações
de sua velha cultura, onde os machos tinham preeminência e superioridade
- voz ativa - nos encontros normais e nos conselhos. A fêmea tinha
atividades primárias e subalternas a função de procriação. Sua opinião era
castrada e velada pela austeridade do dogmatismo do antigo grupo. A cena de
Fernão colidindo no penhasco e salvando o filhote de gaivota mostra sua
maturidade existencial. Não tem uma vontade massificada. Agora um
"indivíduo" apenas é alvo de sua compaixão. Quase morre neste
incidente, mas recupera-se ao entrar em contato com o "outro". A
liberdade faz sentido quando assumimos uma fraternidade e irmandade, baseada no
compromisso com o outro. Um isolamento nos despersonifica como indivíduos e não
existimos como construção histórica. O outro é o caminho que mantem a vida em
equilíbrio. Fernão ao retornar a sua antiga comunidade, tentou a seu modo
convencer seus companheiros com argumentos lógicos, todavia não teve sucesso. A
cena daquele filhote de gaivota revirando o lixo a procura de alimento
impressiona. Este filhote com uma das asas quebradas ainda encenava alçar voo.
Precisamos no cotidiano discernir o lixo do alimento nutritivo. Parece fácil,
contudo pondere e veja que não é tão simples. A comida - física ou
espiritual - saudável é crucial e determina nossa saúde ou doença. Se temos um
anelo, uma aspiração na alma e uma disposição pra realizar um sonho, acredite
você tem condições de "voar" acima das nuvens. No final Fernão
aprendeu que o amor é a única instância que abre o dialogo, e tem condições de
vincular os iguais e aproximar os desiguais. Não mais uma colonização
dominadora, entretanto uma diversidade de tons, imagens, sons, acordes e
harmonias. Como a natureza em sua multiplicidade e pluralidade. Assistam a
projeção conferindo os argumentos que usei na explanação. Está disponível no
YouTube em vários idiomas. Fraternal abraço. Davi.
De longe o melhor artigo publicado. Lindo o seu desenvolvimento. Estou fazendo um trabalho sobre o filme e, tenho certeza que irá me ajudar muitooio. Parabéns e muito obrigada!
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