quinta-feira, 22 de junho de 2017

X. RELATO DE UM PEREGRINO RUSSO - A CAMINHO DE JERUSALÉM III.

Cristianismo Ortodoxo. RELATO DE UM PEREGRINO RUSSO. Quarto Relato. A CAMINHO DE JERUSALÉM III. Já faz quinze anos que não vês teu pai, mas na sua obscuridade, ele recebia às vezes notícias tuas e alimentava por ti um amor paternal. É esse amor que leva agora teu pai a te enviar estas últimas palavras para que te sirvam de lição na vida. Sabe o quanto sofri para resgatar minha vida culposa e leviana. Mas não sabes a felicidade que me proporcionaram, durante minha vida obscura e errante, os frutos do meu arrependimento. Eu morro me paz na casa de meu bem feitor, que é teu benfeitor também. Pois os benefícios concedidos ao pai devem atingir o filho carinhoso. Queira exprimir a ele minha gratidão por todos os meios ao teu alcance. Ao te deixar a minha bênção paterna, eu te peço que te lembres de Deus e de obedecer a tua consciência: sê bom, prudente e sensato. Trata com benevolência todos os teus subalternos e não desprezes os mendigos e os peregrinos, recordando-te que somente  o despojamento e a vida errante permitiram que teu pai encontrasse o repouso para sua alma. Pedindo a Deus que te conceda a sua graça, eu fecho os olhos tranquilamente, na esperança da vida eterna pela misericórdia do Redentor dos homens, Jesus Cristo. Foi assim que conversamos, aquele senhor tão bom e eu. Subitamente, eu lhe disse: Meu querido amigo, fico pensando que o senhor deve ter muitas vezes aborrecimento com o asilo. Há tantos irmãos nossos que se fazem peregrinos só por indolência ou por preguiça: fazem malandragens pelas estradas, como eu mesmo vi com frequência. Não, respondeu ele, esses aí têm sido bastante raros. Em geral, só encontramos autênticos peregrinos. Mas, quando eles não parecem ser gente séria, somos ainda mais atenciosos e os conservamos mais tempo no asilo. Em contato com os pobres, irmãos de Jesus, eles muitas vezes se corrigem e vão embora com um coração humilde e bom. Há pouco tempo ainda, tive disso um exemplo. Um comerciante de nossa cidade tinha caído tão baixo que o expulsavam com pauladas e ninguém lhe queria dar um pedaço de pão. Ele bêbado, violento, briguento e, ainda por cima, roubava. Foi assim que, um belo dia, esse homem chegou aqui em casa, impelido pela fome. Pediu pão e aguardente, pois gostava muito de beber. Nós o recebemos amavelmente e lhe dissemos: Fica conosco, tu terás quanta aguardente quiseres, mas sob uma condição: depois de beber, tu irás deitar-te e, se fizeres o menor escândalo, te expulsaremos para sempre e eu ainda pedirei ao juiz para te meter atrás das grades por vagabundagem. Ele aceitou e ficou conosco. Durante uma semana ou mais, ele bebeu realmente o quanto quis. Mas, cada vez, conforme tinha prometido e porque tinha medo de ser privado do álcool, ia deitar-se em sua cama ou esticar-se silenciosamente no fundo do jardim. Quando passava a bebedeira, nossos irmãos do asilo lhe falavam e o aconselhavam a controlar-se, pelo menos um pouco mais. Daí ele foi bebendo cada vez menos e em três meses já era um homem totalmente sóbrio. Ele agora trabalha por aí e não vive mais do pão alheio. Que sabedoria nessa disciplina guiada pela caridade, pensei, e exclamei: Bendito seja Deus, cuja misericórdia age dentro das paredes desta casa! Depois de todas essas conversas, cochilamos um pouco e, ao ouvir o sino tocar para o ofício da manhã, fomos à igreja onde já se achava a senhora com as crianças. Assistimos ao ofício e, em seguida, à divina liturgia. Estávamos no coro com o senhor e seu filhinho. A senhora e a menina estavam na abertura da iconostase (1) para ver a elevação dos Santos Dons. Meu Deus! Como todos rezavam e derramavam lágrimas de alegria! Seus semblantes estavam a tal ponto iluminados que, de tanto olhar para eles, comecei a chorar. Ao terminar o ofício, os mestres, o padre, os servidores e todos os mendigos vieram para casa conosco e se sentaram à mesa. Estavam ali certamente uns quarenta mendigos, doentes, inválidos, crianças. Que silêncio e que paz ao redor da mesa! Criando coragem, eu disse baixinho ao dono da casa: Nos mosteiros costuma-se ler a vida dos santos durante as refeições. Aqui  poderíamos fazer a mesma coisa, já que o senhor tem o livro dos santos, o Menólogo, completo. Ele virou-se para sua mulher e disse: É verdade, Maria, é preciso instituir esse costume. Vai ser ótimo para todos nós. Eu vou ler na primeira refeição, depois serás tu, em seguida nosso vigário e nossos irmãos, cada qual por sua vez e de acordo com o que sabe. O padre parou de comer e disse: Escutar, isso é um prazer, mas para ler – meu amigo! Eu não tenho um só instante livre. Mal ponho os pés na minha casa, não sei mais por onde me virar. Só trabalhos e preocupações: falta isso, falta aquilo, e um monte de crianças! O gado espalhado pelo campo. O dia todo se passa em bobagens e não tenho um minuto para ler e para me instruir. Tudo o que aprendi no seminário, há muito tempo esqueci. Ao ouvir tais palavras, eu estremeci, mas a senhora me tomou pelo braço e me disse: O padre fala assim por humildade. Ele se rebaixa a si mesmo, mas é um homem excelente e piedoso. É viúvo há vinte anos e cria todos os seus netos. Além disso, está sempre celebrando os ofícios na igreja. Essas palavras me lembraram uma sentença de Nicetas Stethatos (2) na Filocalia:  E de acordo com a disposição interior da alma que se aprecia a natureza dos objetos, que dizer: cada qual se faz uma ideia dos outros conforme aquilo que ele mesmo é. E mais adiante diz ainda: Aquele que chegou a oração e ao verdadeiro amor, não distingue mais os objetos, não distingue mais o justo do pecador, mas ama igualmente a todos os homens  e não os condena, do mesmo modo que Deus faz nascer o sol igualmente sobre maus e bons e cair a chuva sobre justos e injustos em Mateus 5,45. De novo se fez silêncio. Diante de mim estava sentado um mendigo do asilo, completamente cego. O dono da casa o fazia comer, dividia com ele o seu peixe, lhe estendia a colher e enchia se copo. Eu o observava atentamente e notei que, em sua boca sempre entreaberta, a língua se movia continuamente. Perguntei-me se ele não estaria recitando a oração e olhei para ele com mais atenção ainda. Quando a refeição acabou, uma mulher idosa começou a sentir-se mal. Faltava-lhe o ar e ela gemia Os donos da casa a levaram para seu quarto de dormir e a deitaram sobre a cama. A senhora ficou para cuidar dela, o padre foi buscar os Santos Dons e o senhor mandou atrelar uma parelha de cavalos para ir a galope buscar o doutor na aldeia. Todo mundo se dispersou. Eu sentia em mim como que uma fome de oração: sentia uma vontade louca de deixar que ela brotasse. Já fazia dois dias que eu não tinha tranquilidade nem silêncio. Sentia como que uma onda prestes a transbordar em meu coração e a espalhar-se em todos os membros do meu corpo. Como eu tentasse contê-la, senti uma dor violenta no coração – porém, uma dor benfazeja que me impelia somente a oração e ao silêncio. Compreendi então porque os verdadeiros adeptos da oração perpétua fugiam do mundo e se escondiam longe de todos. Compreendi também porque o bem-aventurado Hesíquio diz que a mais elevada conversa é apenas tagarelice se ela se prolonga demais. Lembrei-me das palavras de Santo Efrém, o Sírio (3). Um bom discurso é de prata, mas o silêncio é de ouro puro. Pensando em tudo isso, eu cheguei ao asilo. Aí todos dormiam depois do almoço. Subi ao sótão, me acalmei, descansei e rezei um pouco. Quando os pobres acordaram, eu fui procurar o cego e o levei para o jardim. Nós nos sentamos a um canto isolado e começamos a conversar. Diz-me, em nome de Deus e para o bem de minha alma: tu recitas a oração de Jesus? Já faz muito tempo que eu a repito sem parar. Que efeitos sentes? Somente um efeito: nem de dia nem de noite, não passo sem essa oração. De que maneira Deus te revelou essa atividade? Conta-me tudo com detalhes, meu querido irmão. Pois bem: eu sou um artesão daqui. Ganhava meu pão como alfaiate. Eu ia para outras comarcas, pelas cidades, e fazia o traje camponês. Em certa cidade, aconteceu que fiquei muito tempo na casa de um camponês a fim de vestir toda a sua família. Um dia de festa, em que não havia nada para fazer, prosseguiu o cego, eu descobri três livros velhos em cima da prancheta que se coloca sob os ícones. Pergunte às pessoas da casa: Existe alguém nesta casa que saiba ler? Eles me responderam: Ninguém. Esses livros aí vêm do tio. Ele sabia ler e escrever. Peguei um dos livros e o abri ao acaso. Li então as palavras seguintes de que me recordo ainda: “A oração perpétua consiste em invocar incessantemente o nome do Senhor. Sentado ou em pé, à mesa ou no trabalho, em toda e qualquer oportunidade, em todo lugar e tempo, é preciso invocar o nome do Senhor Jesus”. Refleti naquilo que eu tinha lido e achei que isso tudo me convinha muito bem. Assim, enquanto costurava, me pus a repetir baixinho a oração e fiquei muito feliz. As pessoas que viviam comigo na isbá (casa caracterizada dos camponeses russos) perceberam o que acontecia e caçoaram de mim. És feiticeiro, tu que falas entre os dentes, sem parar? Ou então fazes truques de magia? Para esconder-me, deixei de mexer com os lábios e comecei a recitar a oração mexendo apenas a língua. Em resumo, me habituei de tal forma a isso que a minha língua recita a oração de Jesus dia e noite e isso me faz bem. Continue a trabalhar ainda por muito tempo; depois, de repente, fiquei completamente cego. Na minha casa, em minha família, quase todos nós temos a água escura no fundo dos olhos. Como sou muito pobre a municipalidade me arranjou um lugar no asilo de Tobolsk. É para lá que eu vou. Mas os donos desta casa me retiveram aqui porque querem me dar uma carruagem para eu ir até lá. Como se chamava o livro que leste? Não foi a Filocalia? Palavra que não sei. Não reparei no título. Fui buscar a minha Filocalia. Encontrei, na quarta parte do livro, as palavras do patriarca Calisto que o cego tinha repetido de cor para mim. E comecei a ler para ele. É isso mesmo, gritou. Lê, meu irmão, lê, pois isso é mesmo muito bom. Quando cheguei à passagem onde se diz: É preciso rezar com o coração – ele me perguntou o que queria dizer isso e como se podia praticar. Disse-lhe que todos os ensinamentos sobre a oração do coração estavam expostos com detalhes nesse livro, a Filocalia. Ele me pediu então insistentemente que lesse para ele tudo o que se referia ao assunto. Veja o que vamos fazer, lhe disse. Quando pensas partir para Tobolsk? Até imediatamente, se queres, respondeu ele. Então, olha! Eu queria ir embora amanhã: é só partirmos juntos que, no caminho, eu vou ler para ti tudo o que se refere à oração do coração e vou te ensinar como descobrir teu coração e nele penetrar. E a carruagem? Perguntou. Ora! Deixa para lá essa carruagem! Daqui a Tobolsk são apenas cento e cinquenta quilômetros; nós vamos bem devagar; é gostoso caminhar ambos em silêncio. E enquanto caminhamos, estamos mais à vontade para ler e falar sobre a oração. Assim entramos em acordo. A noite, o senhor veio pessoalmente nos chamar para o jantar e, depois de termos comido, nós lhe comunicamos que estávamos pensando em partir e não precisávamos de carruagem. Queríamos caminhar lendo a Filocalia. A essa altura, o senhor disse: A Filocalia me agradou muito. Eu já escrevi a carta e preparei o dinheiro. Amanhã, quando eu for ao tribunal, vou mandar tudo para São Petersburgo a fim de receber a Filocalia pelo primeiro correio. No dia seguinte, pois, de manhã, pusemos a caminho, depois de ter agradecido muito a essas pessoas tão boas a sua caridade e sua mansidão exemplares. Eles dois – o marido e a mulher – nos acompanharam por um quilômetro e então nos despedimos. O CAMPONÊS CEGO. Caminhamos bem devagarzinho, o cego e eu; não fazíamos mais que dez a quinze quilômetros por dia. Todo o resto do tempo, ficávamos sentados em lugares solitários e líamos a Filocalia. Li para ele tudo o que se relacionava com a oração do coração, seguindo a ordem que meu amigo monge me tinha ensinado, isto é, começando pelos livros de Nicéforo (758-828), o Monge, de Gregório, o Sinaíta, e assim por diante. Com que atenção e entusiasmo o cego escutava tudo! Com ficava feliz e emocionado! Em seguida começou a me fazer tais perguntas sobre a oração que meu espírito não conseguia resolvê-las. Depois de ouvir a minha leitura, pediu-me para ensinar-lhe um meio prático de localizar seu coração pelo espírito, de nele introduzir o nome divino de Jesus Cristo e assim rezar interiormente com o coração. Eu lhe disse: É certo que tu nada vês, mas com a inteligência podes representar para ti mesmo o que viste outrora: um homem, um objeto ou um de teus membros: teu braço ou tua perna. Podes tu imaginá-lo com tanta precisão como se o estivesses vendo? Podes tu, apesar de cego, dirigir teu olhar para esse homem, esse objeto ou para teu braço ou tua perna? Posso sim, respondeu o cego. Então representa assim, para ti mesmo, o teu coração. Volta teus olhos como se estivesses olhando através do peito e escuta atenciosamente como teu coração bate uma batida depois da outra. Quando conseguires fazer isso, esforça-te para ajustar cada batida de teu coração, sem perde-lo de vista, às palavras da oração. Com a primeira batida dize ou pensa: Senhor, com a segunda: Jesus, com a terceira: Cristo, com a quarta: tende piedade, com a quinta: de mim. E repete muitas vezes esse exercício. Isso vai ser fácil para ti, pois já estás preparado para a oração do coração. Mais tarde, quando já estiveres habituado a essa atividade, começa a introduzir no teu coração a oração de Jesus e a fazê-la sair ao mesmo tempo que a respiração. Isto é, ao inspirar o ar, dize ou pensa: Senhor Jesus Cristo, e, ao expirar o ar: tende piedade de mim! Se fizeres assim com bastante frequência e durante muito tempo, sentirás logo uma leva dor no coração. Em seguida, pouco a pouco, nascerá nele um calor benfazejo. Com a ajuda de Deus, chegarás dessa maneira à ação constante da oração no interior do coração. Mas, principalmente, guarda-te de toda e qualquer representação ou imagem que possa nascer em teu espírito enquanto rezas. Afasta todas as imaginações, pois os Padres da Igreja nos ordenam de conservar o espírito vazio de todas as formas durante a oração, a fim de não cair na ilusão. O cego, que me tinha escutado com atenção, se exercitou com zelo conforme eu lhe dissera e, à noite, na parada de descanso, se dedicava à oração por muito tempo. Ao cabo de cinco dias, ele sentiu no coração um forte calor e uma felicidade indizível. Além disso, tinha muita vontade de dedicar-se incessantemente à oração que lhe revelava o amor que tinha por Jesus Cristo. Às vezes, via uma luz, mas sem que aparecesse objeto algum; quando penetrava no próprio coração, lhe parecia ver surgir a chama brilhante de uma vela bem grande que, brilhando ao redor, o iluminava inteirinho. E essa chama lhe permitia ainda ver os objetos distantes, como lhe aconteceu certa vez. Nós atravessávamos uma floresta; ele estava silenciosos, imerso na oração. De repente, me disse: Que desgraça! A igreja está ardendo e o campanário acaba de desabar! Para de evocar essas imagens vás, lhe disse, é uma tentação. É preciso afastar o mais depressa possível toda espécie de fantasias. De que maneira vês o que está acontecendo na cidade? Dista ainda doze quilômetros daqui. Ele me obedeceu e, recomeçando a rezar, calou-se. À tardinha, chegamos à cidade e, de fato, vi muitas casas incendiadas e um campanário em escombros. Tinha sido construído sobre suportes de madeira. Ao redor, as pessoas discutiam e se admiravam de que, ao tombar, o campanário não tivesse esmagado ninguém. Pelo que pude entender, a desgraça tinha acontecido no momento exato em que o cego me falara disso na floresta. Nisso ouço que ele diz: Na tua opinião, minha visão era vã: entretanto, foi o que aconteceu. Como não agradecer ao Senhor Jesus Cristo e não amá-lo: Ele revela sua graça aos pecadores, aos cegos e aos insensatos! Obrigado a ti também, que me ensinaste a oração do coração! Respondi-lhe: Se queres amar a Jesus Cristo, ama-o; se queres agradecer a Ele, agradece-lhe; mas guarda-te de tomar quaisquer visões como revelações diretas da graça, pois isso acontece muitas vezes naturalmente, dentro da ordem das coisas. A alma humana não está inteiramente ligada a matéria. Pode ver na obscuridade tanto os objetos distantes como os que estão mais próximos. Nós não cultivamos, porém, essa faculdade da alma: nós a sobrecarregamos com o peso de nosso corpo ou a confusão de nossos pensamentos distraídos e levianos. Quando nos concentramos em nós mesmos, nós abstraímos de tudo o que nos envolve e aguçamos nosso espírito; então a alma volta-se completamente para si mesma, age com toda a sua potencialidade, e isso é uma ação natural. O monge, meu mestre, já falecido, me disse que, não apenas os homens de oração, mas também as pessoas doentes ou especialmente dotadas, quando se acham em um quarto escuro, vêm a luz que emana de cada objeto, sentem a presença das coisas e penetram nos pensamentos das outras pessoas. Os efeitos diretos da graça de Deus durante a oração do coração são tão deliciosos que não há língua que possa descrevê-los. É impossível comparar esses efeitos a algo material. O mundo sensível é baixo em comparação às sensações que a graça desperta no coração. Meu companheiro cego escutou com atenção essas palavras e se tornou ainda mais humilde. Em seu coração, a oração se intensificava cada vez mais e isso o alegrava de maneira indizível. Minha alma estava feliz com isso e eu agradecia ao Senhor que me fez conhecer uma tal piedade de um de seus servidores. Até que enfim chegamos a Tobolsk. Levei o cego ao asilo e, depois de me despedir afetuosamente dele, retomei meu caminho solitário. O mês inteiro caminhei bem devagar e sentia o quanto são úteis e benfazejos os exemplos autênticos. Lia frequentemente a Filocalia e nela verificava tudo o que dissera ao camponês cego. O seu exemplo inflamava meu zelo, minha dedicação e meu amor ao Senhor. A oração do coração me deixava tão feliz como jamais pensara que alguém pudesse ser feliz aqui na Terra, e me perguntava como as delícias do Reino dos Céus poderiam ser maiores do que essas. Essa felicidade não iluminava apenas o interior de minha alma. Também o mundo exterior me aparecia sob um aspecto deslumbrante – tudo me convidava a amar e louvar a Deus: os homens, as árvores, as plantas, os animais, tudo se tornava familiar para mim e em toda parte eu encontrava a imagem do nome de Jesus Cristo. Às vezes me sentia tão leve que acreditava não ter mais um corpo e flutuar suavemente no ar. Outras vezes, mergulhava fundo em mim mesmo. Via claramente o meu interior e apreciava o admirável edifício do corpo humano. Por vezes, sentia uma alegria tão grande como se eu me tivesse tornado rei. Em meio a todas essas consolações, desejava que Deus me deixasse morrer logo para eu fazer transbordar minha gratidão a seus pés, no mundo dos espíritos. Decerto, gozei de tais sensações além da conta, ou então, talvez Deus assim tenha decidido, passado algum tempo, senti em meu coração um certo medo e tremor. Será que vai acontecer comigo mais uma desgraça ou atribulação, me perguntei, como aquela que sofri por causa da moça a quem ensinei a oração de Jesus lá na capela? Os pensamentos me oprimiam como nuvens sombrias e me recordei das palavras do bem-aventurado João de Cárpatos; ele diz que muitas vezes o mestre é entregue à desonra, suporta tentações e atribulações por aqueles que ajudou espiritualmente. Depois de lutar contra esses pensamentos sombrios, mergulhei na oração e eles desapareceram completamente. Eu me senti mais forte e disse a mim mesmo: Seja feita a vontade de Deus! Estou pronto a suportar tudo o que Jesus Cristo me enviar, a fim de expiar meu endurecimento e meu orgulho. Aliás, aqueles a quem recentemente revelei o  mistério da oração interior, já tinham sido preparados pela própria ação misteriosa de Deus, antes mesmo de me encontrarem. Esse pensamento me acalmou de vez e eu caminhava na oração e na alegria, mais feliz do que antes. Choveu durante dois dias e a estrada era uma lama só: não se podia sair daquele atoleiro. Atravessei pela estepe e, ao longo de quinze quilômetros, não encontrei lugar alguns habitado. Finalmente, à tardinha, enxerguei um albergue na beira da estrada. Fiquei contente pensando que, ao menos lá, eu poderia descansar e pernoitar. E quanto ao dia seguinte, seja o que Deus quiser. Quem sabe o tempo vai melhorar!. Livro Relato de Um Peregrino Russo – Jean Gauvain. Abraço. Davi.

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