Cristianismo
Ortodoxo. RELATO DE UM PEREGRINO RUSSO. Quarto Relato. A CAMINHO DE JERUSALÉM
III. Já faz quinze anos que não vês teu pai, mas na sua obscuridade, ele
recebia às vezes notícias tuas e alimentava por ti um amor paternal. É esse
amor que leva agora teu pai a te enviar estas últimas palavras para que te
sirvam de lição na vida. Sabe o quanto sofri para resgatar minha vida culposa e
leviana. Mas não sabes a felicidade que me proporcionaram, durante minha vida
obscura e errante, os frutos do meu arrependimento. Eu morro me paz na casa de
meu bem feitor, que é teu benfeitor também. Pois os benefícios concedidos ao
pai devem atingir o filho carinhoso. Queira exprimir a ele minha gratidão por
todos os meios ao teu alcance. Ao te deixar a minha bênção paterna, eu te peço
que te lembres de Deus e de obedecer a tua consciência: sê bom, prudente e
sensato. Trata com benevolência todos os teus subalternos e não desprezes os
mendigos e os peregrinos, recordando-te que somente o despojamento e a vida errante permitiram
que teu pai encontrasse o repouso para sua alma. Pedindo a Deus que te conceda
a sua graça, eu fecho os olhos tranquilamente, na esperança da vida eterna pela
misericórdia do Redentor dos homens, Jesus Cristo. Foi assim que conversamos,
aquele senhor tão bom e eu. Subitamente, eu lhe disse: Meu querido amigo, fico
pensando que o senhor deve ter muitas vezes aborrecimento com o asilo. Há tantos
irmãos nossos que se fazem peregrinos só por indolência ou por preguiça: fazem
malandragens pelas estradas, como eu mesmo vi com frequência. Não, respondeu
ele, esses aí têm sido bastante raros. Em geral, só encontramos autênticos
peregrinos. Mas, quando eles não parecem ser gente séria, somos ainda mais
atenciosos e os conservamos mais tempo no asilo. Em contato com os pobres,
irmãos de Jesus, eles muitas vezes se corrigem e vão embora com um coração
humilde e bom. Há pouco tempo ainda, tive disso um exemplo. Um comerciante de
nossa cidade tinha caído tão baixo que o expulsavam com pauladas e ninguém lhe
queria dar um pedaço de pão. Ele bêbado, violento, briguento e, ainda por cima,
roubava. Foi assim que, um belo dia, esse homem chegou aqui em casa, impelido
pela fome. Pediu pão e aguardente, pois gostava muito de beber. Nós o recebemos
amavelmente e lhe dissemos: Fica conosco, tu terás quanta aguardente quiseres,
mas sob uma condição: depois de beber, tu irás deitar-te e, se fizeres o menor
escândalo, te expulsaremos para sempre e eu ainda pedirei ao juiz para te meter
atrás das grades por vagabundagem. Ele aceitou e ficou conosco. Durante uma
semana ou mais, ele bebeu realmente o quanto quis. Mas, cada vez, conforme
tinha prometido e porque tinha medo de ser privado do álcool, ia deitar-se em
sua cama ou esticar-se silenciosamente no fundo do jardim. Quando passava a
bebedeira, nossos irmãos do asilo lhe falavam e o aconselhavam a controlar-se,
pelo menos um pouco mais. Daí ele foi bebendo cada vez menos e em três meses já
era um homem totalmente sóbrio. Ele agora trabalha por aí e não vive mais do
pão alheio. Que sabedoria nessa disciplina guiada pela caridade, pensei, e
exclamei: Bendito seja Deus, cuja misericórdia age dentro das paredes desta
casa! Depois de todas essas conversas, cochilamos um pouco e, ao ouvir o sino
tocar para o ofício da manhã, fomos à igreja onde já se achava a senhora com as
crianças. Assistimos ao ofício e, em seguida, à divina liturgia. Estávamos no
coro com o senhor e seu filhinho. A senhora e a menina estavam na abertura da
iconostase (1) para ver a elevação dos Santos Dons. Meu Deus! Como todos
rezavam e derramavam lágrimas de alegria! Seus semblantes estavam a tal ponto
iluminados que, de tanto olhar para eles, comecei a chorar. Ao terminar o
ofício, os mestres, o padre, os servidores e todos os mendigos vieram para casa
conosco e se sentaram à mesa. Estavam ali certamente uns quarenta mendigos,
doentes, inválidos, crianças. Que silêncio e que paz ao redor da mesa! Criando
coragem, eu disse baixinho ao dono da casa: Nos mosteiros costuma-se ler a vida
dos santos durante as refeições. Aqui
poderíamos fazer a mesma coisa, já que o senhor tem o livro dos santos,
o Menólogo, completo. Ele virou-se para sua mulher e disse: É verdade, Maria, é
preciso instituir esse costume. Vai ser ótimo para todos nós. Eu vou ler na
primeira refeição, depois serás tu, em seguida nosso vigário e nossos irmãos,
cada qual por sua vez e de acordo com o que sabe. O padre parou de comer e
disse: Escutar, isso é um prazer, mas para ler – meu amigo! Eu não tenho um só
instante livre. Mal ponho os pés na minha casa, não sei mais por onde me virar.
Só trabalhos e preocupações: falta isso, falta aquilo, e um monte de crianças!
O gado espalhado pelo campo. O dia todo se passa em bobagens e não tenho um
minuto para ler e para me instruir. Tudo o que aprendi no seminário, há muito
tempo esqueci. Ao ouvir tais palavras, eu estremeci, mas a senhora me tomou
pelo braço e me disse: O padre fala assim por humildade. Ele se rebaixa a si
mesmo, mas é um homem excelente e piedoso. É viúvo há vinte anos e cria todos
os seus netos. Além disso, está sempre celebrando os ofícios na igreja. Essas
palavras me lembraram uma sentença de Nicetas Stethatos (2) na Filocalia: E de acordo com a disposição interior da alma
que se aprecia a natureza dos objetos, que dizer: cada qual se faz uma ideia
dos outros conforme aquilo que ele mesmo é. E mais adiante diz ainda: Aquele
que chegou a oração e ao verdadeiro amor, não distingue mais os objetos, não
distingue mais o justo do pecador, mas ama igualmente a todos os homens e não os condena, do mesmo modo que Deus faz
nascer o sol igualmente sobre maus e bons e cair a chuva sobre justos e
injustos em Mateus 5,45. De novo se fez silêncio. Diante de mim estava sentado
um mendigo do asilo, completamente cego. O dono da casa o fazia comer, dividia
com ele o seu peixe, lhe estendia a colher e enchia se copo. Eu o observava
atentamente e notei que, em sua boca sempre entreaberta, a língua se movia continuamente.
Perguntei-me se ele não estaria recitando a oração e olhei para ele com mais
atenção ainda. Quando a refeição acabou, uma mulher idosa começou a sentir-se
mal. Faltava-lhe o ar e ela gemia Os donos da casa a levaram para seu quarto de
dormir e a deitaram sobre a cama. A senhora ficou para cuidar dela, o padre foi
buscar os Santos Dons e o senhor mandou atrelar uma parelha de cavalos para ir
a galope buscar o doutor na aldeia. Todo mundo se dispersou. Eu sentia em mim
como que uma fome de oração: sentia uma vontade louca de deixar que ela
brotasse. Já fazia dois dias que eu não tinha tranquilidade nem silêncio.
Sentia como que uma onda prestes a transbordar em meu coração e a espalhar-se
em todos os membros do meu corpo. Como eu tentasse contê-la, senti uma dor
violenta no coração – porém, uma dor benfazeja que me impelia somente a oração
e ao silêncio. Compreendi então porque os verdadeiros adeptos da oração
perpétua fugiam do mundo e se escondiam longe de todos. Compreendi também
porque o bem-aventurado Hesíquio diz que a mais elevada conversa é apenas
tagarelice se ela se prolonga demais. Lembrei-me das palavras de Santo Efrém, o
Sírio (3). Um bom discurso é de prata, mas o silêncio é de ouro puro. Pensando
em tudo isso, eu cheguei ao asilo. Aí todos dormiam depois do almoço. Subi ao
sótão, me acalmei, descansei e rezei um pouco. Quando os pobres acordaram, eu
fui procurar o cego e o levei para o jardim. Nós nos sentamos a um canto
isolado e começamos a conversar. Diz-me, em nome de Deus e para o bem de minha
alma: tu recitas a oração de Jesus? Já faz muito tempo que eu a repito sem
parar. Que efeitos sentes? Somente um efeito: nem de dia nem de noite, não
passo sem essa oração. De que maneira Deus te revelou essa atividade? Conta-me
tudo com detalhes, meu querido irmão. Pois bem: eu sou um artesão daqui.
Ganhava meu pão como alfaiate. Eu ia para outras comarcas, pelas cidades, e
fazia o traje camponês. Em certa cidade, aconteceu que fiquei muito tempo na
casa de um camponês a fim de vestir toda a sua família. Um dia de festa, em que
não havia nada para fazer, prosseguiu o cego, eu descobri três livros velhos em
cima da prancheta que se coloca sob os ícones. Pergunte às pessoas da casa:
Existe alguém nesta casa que saiba ler? Eles me responderam: Ninguém. Esses
livros aí vêm do tio. Ele sabia ler e escrever. Peguei um dos livros e o abri
ao acaso. Li então as palavras seguintes de que me recordo ainda: “A oração
perpétua consiste em invocar incessantemente o nome do Senhor. Sentado ou em
pé, à mesa ou no trabalho, em toda e qualquer oportunidade, em todo lugar e
tempo, é preciso invocar o nome do Senhor Jesus”. Refleti naquilo que eu tinha
lido e achei que isso tudo me convinha muito bem. Assim, enquanto costurava, me
pus a repetir baixinho a oração e fiquei muito feliz. As pessoas que viviam
comigo na isbá (casa caracterizada dos camponeses russos) perceberam o que
acontecia e caçoaram de mim. És feiticeiro, tu que falas entre os dentes, sem
parar? Ou então fazes truques de magia? Para esconder-me, deixei de mexer com
os lábios e comecei a recitar a oração mexendo apenas a língua. Em resumo, me
habituei de tal forma a isso que a minha língua recita a oração de Jesus dia e
noite e isso me faz bem. Continue a trabalhar ainda por muito tempo; depois, de
repente, fiquei completamente cego. Na minha casa, em minha família, quase
todos nós temos a água escura no fundo dos olhos. Como sou muito pobre a
municipalidade me arranjou um lugar no asilo de Tobolsk. É para lá que eu vou.
Mas os donos desta casa me retiveram aqui porque querem me dar uma carruagem
para eu ir até lá. Como se chamava o livro que leste? Não foi a Filocalia?
Palavra que não sei. Não reparei no título. Fui buscar a minha Filocalia.
Encontrei, na quarta parte do livro, as palavras do patriarca Calisto que o
cego tinha repetido de cor para mim. E comecei a ler para ele. É isso mesmo,
gritou. Lê, meu irmão, lê, pois isso é mesmo muito bom. Quando cheguei à
passagem onde se diz: É preciso rezar com o coração – ele me perguntou o que
queria dizer isso e como se podia praticar. Disse-lhe que todos os ensinamentos
sobre a oração do coração estavam expostos com detalhes nesse livro, a
Filocalia. Ele me pediu então insistentemente que lesse para ele tudo o que se
referia ao assunto. Veja o que vamos fazer, lhe disse. Quando pensas partir
para Tobolsk? Até imediatamente, se queres, respondeu ele. Então, olha! Eu
queria ir embora amanhã: é só partirmos juntos que, no caminho, eu vou ler para
ti tudo o que se refere à oração do coração e vou te ensinar como descobrir teu
coração e nele penetrar. E a carruagem? Perguntou. Ora! Deixa para lá essa
carruagem! Daqui a Tobolsk são apenas cento e cinquenta quilômetros; nós vamos
bem devagar; é gostoso caminhar ambos em silêncio. E enquanto caminhamos,
estamos mais à vontade para ler e falar sobre a oração. Assim entramos em
acordo. A noite, o senhor veio pessoalmente nos chamar para o jantar e, depois
de termos comido, nós lhe comunicamos que estávamos pensando em partir e não
precisávamos de carruagem. Queríamos caminhar lendo a Filocalia. A essa altura,
o senhor disse: A Filocalia me agradou muito. Eu já escrevi a carta e preparei
o dinheiro. Amanhã, quando eu for ao tribunal, vou mandar tudo para São
Petersburgo a fim de receber a Filocalia pelo primeiro correio. No dia
seguinte, pois, de manhã, pusemos a caminho, depois de ter agradecido muito a
essas pessoas tão boas a sua caridade e sua mansidão exemplares. Eles dois – o
marido e a mulher – nos acompanharam por um quilômetro e então nos despedimos.
O CAMPONÊS CEGO. Caminhamos bem devagarzinho, o cego e eu; não fazíamos mais
que dez a quinze quilômetros por dia. Todo o resto do tempo, ficávamos sentados
em lugares solitários e líamos a Filocalia. Li para ele tudo o que se
relacionava com a oração do coração, seguindo a ordem que meu amigo monge me
tinha ensinado, isto é, começando pelos livros de Nicéforo (758-828), o Monge,
de Gregório, o Sinaíta, e assim por diante. Com que atenção e entusiasmo o cego
escutava tudo! Com ficava feliz e emocionado! Em seguida começou a me fazer
tais perguntas sobre a oração que meu espírito não conseguia resolvê-las.
Depois de ouvir a minha leitura, pediu-me para ensinar-lhe um meio prático de
localizar seu coração pelo espírito, de nele introduzir o nome divino de Jesus
Cristo e assim rezar interiormente com o coração. Eu lhe disse: É certo que tu
nada vês, mas com a inteligência podes representar para ti mesmo o que viste
outrora: um homem, um objeto ou um de teus membros: teu braço ou tua perna.
Podes tu imaginá-lo com tanta precisão como se o estivesses vendo? Podes tu,
apesar de cego, dirigir teu olhar para esse homem, esse objeto ou para teu
braço ou tua perna? Posso sim, respondeu o cego. Então representa assim, para
ti mesmo, o teu coração. Volta teus olhos como se estivesses olhando através do
peito e escuta atenciosamente como teu coração bate uma batida depois da outra.
Quando conseguires fazer isso, esforça-te para ajustar cada batida de teu
coração, sem perde-lo de vista, às palavras da oração. Com a primeira batida dize
ou pensa: Senhor, com a segunda: Jesus, com a terceira: Cristo, com a quarta:
tende piedade, com a quinta: de mim. E repete muitas vezes esse exercício. Isso
vai ser fácil para ti, pois já estás preparado para a oração do coração. Mais
tarde, quando já estiveres habituado a essa atividade, começa a introduzir no
teu coração a oração de Jesus e a fazê-la sair ao mesmo tempo que a respiração.
Isto é, ao inspirar o ar, dize ou pensa: Senhor Jesus Cristo, e, ao expirar o
ar: tende piedade de mim! Se fizeres assim com bastante frequência e durante
muito tempo, sentirás logo uma leva dor no coração. Em seguida, pouco a pouco,
nascerá nele um calor benfazejo. Com a ajuda de Deus, chegarás dessa maneira à
ação constante da oração no interior do coração. Mas, principalmente, guarda-te
de toda e qualquer representação ou imagem que possa nascer em teu espírito
enquanto rezas. Afasta todas as imaginações, pois os Padres da Igreja nos
ordenam de conservar o espírito vazio de todas as formas durante a oração, a
fim de não cair na ilusão. O cego, que me tinha escutado com atenção, se
exercitou com zelo conforme eu lhe dissera e, à noite, na parada de descanso,
se dedicava à oração por muito tempo. Ao cabo de cinco dias, ele sentiu no
coração um forte calor e uma felicidade indizível. Além disso, tinha muita
vontade de dedicar-se incessantemente à oração que lhe revelava o amor que
tinha por Jesus Cristo. Às vezes, via uma luz, mas sem que aparecesse objeto
algum; quando penetrava no próprio coração, lhe parecia ver surgir a chama
brilhante de uma vela bem grande que, brilhando ao redor, o iluminava
inteirinho. E essa chama lhe permitia ainda ver os objetos distantes, como lhe
aconteceu certa vez. Nós atravessávamos uma floresta; ele estava silenciosos,
imerso na oração. De repente, me disse: Que desgraça! A igreja está ardendo e o
campanário acaba de desabar! Para de evocar essas imagens vás, lhe disse, é uma
tentação. É preciso afastar o mais depressa possível toda espécie de fantasias.
De que maneira vês o que está acontecendo na cidade? Dista ainda doze
quilômetros daqui. Ele me obedeceu e, recomeçando a rezar, calou-se. À
tardinha, chegamos à cidade e, de fato, vi muitas casas incendiadas e um
campanário em escombros. Tinha sido construído sobre suportes de madeira. Ao redor,
as pessoas discutiam e se admiravam de que, ao tombar, o campanário não tivesse
esmagado ninguém. Pelo que pude entender, a desgraça tinha acontecido no
momento exato em que o cego me falara disso na floresta. Nisso ouço que ele
diz: Na tua opinião, minha visão era vã: entretanto, foi o que aconteceu. Como
não agradecer ao Senhor Jesus Cristo e não amá-lo: Ele revela sua graça aos
pecadores, aos cegos e aos insensatos! Obrigado a ti também, que me ensinaste a
oração do coração! Respondi-lhe: Se queres amar a Jesus Cristo, ama-o; se
queres agradecer a Ele, agradece-lhe; mas guarda-te de tomar quaisquer visões
como revelações diretas da graça, pois isso acontece muitas vezes naturalmente,
dentro da ordem das coisas. A alma humana não está inteiramente ligada a
matéria. Pode ver na obscuridade tanto os objetos distantes como os que estão
mais próximos. Nós não cultivamos, porém, essa faculdade da alma: nós a
sobrecarregamos com o peso de nosso corpo ou a confusão de nossos pensamentos
distraídos e levianos. Quando nos concentramos em nós mesmos, nós abstraímos de
tudo o que nos envolve e aguçamos nosso espírito; então a alma volta-se
completamente para si mesma, age com toda a sua potencialidade, e isso é uma
ação natural. O monge, meu mestre, já falecido, me disse que, não apenas os
homens de oração, mas também as pessoas doentes ou especialmente dotadas,
quando se acham em um quarto escuro, vêm a luz que emana de cada objeto, sentem
a presença das coisas e penetram nos pensamentos das outras pessoas. Os efeitos
diretos da graça de Deus durante a oração do coração são tão deliciosos que não
há língua que possa descrevê-los. É impossível comparar esses efeitos a algo
material. O mundo sensível é baixo em comparação às sensações que a graça
desperta no coração. Meu companheiro cego escutou com atenção essas palavras e
se tornou ainda mais humilde. Em seu coração, a oração se intensificava cada
vez mais e isso o alegrava de maneira indizível. Minha alma estava feliz com
isso e eu agradecia ao Senhor que me fez conhecer uma tal piedade de um de seus
servidores. Até que enfim chegamos a Tobolsk. Levei o cego ao asilo e, depois
de me despedir afetuosamente dele, retomei meu caminho solitário. O mês inteiro
caminhei bem devagar e sentia o quanto são úteis e benfazejos os exemplos
autênticos. Lia frequentemente a Filocalia e nela verificava tudo o que dissera
ao camponês cego. O seu exemplo inflamava meu zelo, minha dedicação e meu amor
ao Senhor. A oração do coração me deixava tão feliz como jamais pensara que
alguém pudesse ser feliz aqui na Terra, e me perguntava como as delícias do
Reino dos Céus poderiam ser maiores do que essas. Essa felicidade não iluminava
apenas o interior de minha alma. Também o mundo exterior me aparecia sob um
aspecto deslumbrante – tudo me convidava a amar e louvar a Deus: os homens, as
árvores, as plantas, os animais, tudo se tornava familiar para mim e em toda
parte eu encontrava a imagem do nome de Jesus Cristo. Às vezes me sentia tão
leve que acreditava não ter mais um corpo e flutuar suavemente no ar. Outras
vezes, mergulhava fundo em mim mesmo. Via claramente o meu interior e apreciava
o admirável edifício do corpo humano. Por vezes, sentia uma alegria tão grande
como se eu me tivesse tornado rei. Em meio a todas essas consolações, desejava
que Deus me deixasse morrer logo para eu fazer transbordar minha gratidão a
seus pés, no mundo dos espíritos. Decerto, gozei de tais sensações além da
conta, ou então, talvez Deus assim tenha decidido, passado algum tempo, senti
em meu coração um certo medo e tremor. Será que vai acontecer comigo mais uma
desgraça ou atribulação, me perguntei, como aquela que sofri por causa da moça
a quem ensinei a oração de Jesus lá na capela? Os pensamentos me oprimiam como
nuvens sombrias e me recordei das palavras do bem-aventurado João de Cárpatos;
ele diz que muitas vezes o mestre é entregue à desonra, suporta tentações e
atribulações por aqueles que ajudou espiritualmente. Depois de lutar contra
esses pensamentos sombrios, mergulhei na oração e eles desapareceram completamente.
Eu me senti mais forte e disse a mim mesmo: Seja feita a vontade de Deus! Estou
pronto a suportar tudo o que Jesus Cristo me enviar, a fim de expiar meu
endurecimento e meu orgulho. Aliás, aqueles a quem recentemente revelei o mistério da oração interior, já tinham sido
preparados pela própria ação misteriosa de Deus, antes mesmo de me encontrarem.
Esse pensamento me acalmou de vez e eu caminhava na oração e na alegria, mais
feliz do que antes. Choveu durante dois dias e a estrada era uma lama só: não
se podia sair daquele atoleiro. Atravessei pela estepe e, ao longo de quinze
quilômetros, não encontrei lugar alguns habitado. Finalmente, à tardinha,
enxerguei um albergue na beira da estrada. Fiquei contente pensando que, ao
menos lá, eu poderia descansar e pernoitar. E quanto ao dia seguinte, seja o
que Deus quiser. Quem sabe o tempo vai melhorar!. Livro Relato de Um Peregrino
Russo – Jean Gauvain. Abraço. Davi.
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