Judaísmo. Texto de Rabbi Yanki Tauber e Rabbi Lazer Gurkow. LIBERDADE E
FÉ. A festa de Pessach ((a pascoa) comemora a transição do Povo Judeu da
escravidão para a liberdade. Ano após ano, contamos no Seder de Pessach a
história relatada pela Hagadá: Os egípcios escravizaram nossos antepassados,
D’us interveio golpeando o Egito com as Dez Pragas e isso forçou o Faraó a
libertar todos os judeus. Isso resume a história do nascimento do Povo Judeu,
de forma bem sucinta. Uma pergunta óbvia levantada pela história de Pessach é
por que foi necessário que D’us punisse o Egito com dez pragas se certamente
bastaria um único golpe vigoroso. Se as pragas serviram de castigo pela
escravidão, a crueldade e o genocídio perpetrado pelos egípcios, por que razão
D’us não acabou com o Egito com uma única praga, duradoura e mortal? Uma
interpretação mais fiel do relato da Torá sobre a história de Pessach revela
que as Dez Pragas serviram a uma função mais básica: desacreditar os deuses
egípcios de modo que “vocês saibam que Eu sou D’us”. Em outras palavras, o
verdadeiro propósito das Dez Pragas não foi punir o Egito e libertar os judeus
– já que uma única praga poderia dar conta disso –, mas ensinar uma lição
fundamental aos Filhos de Israel, que estavam em vias de se tornar uma nação.
Sabemos que os egípcios adoravam a Natureza, e praticamente não há dúvidas de
que os judeus também sofriam a influência dessas crenças. Uma das divindades
mais reverenciadas no Egito era o Rio Nilo, pois era a fonte de subsistência do
país. Os egípcios eram um povo culto e sofisticado e alguns deles eram
poderosos feiticeiros – mas eram todos pagãos, não transcendentalistas. E, como
pagãos, acreditavam que as coisas eram como deviam ser: no mundo apenas havia
causa e efeito, sem lugar para anomalias. Reverenciavam a Natureza. Seus
feiticeiros podiam manipulá-la, de alguma forma: a própria Torá relata que eles
conseguiam fazer as águas virarem sangue. Mas eram politeístas que atribuíam
poderes divinos aos fenômenos naturais, aos animais e aos seres humanos. O Faraó
recusava-se a aceitar o monoteísmo (doutrina religiosa que defende a existência
de uma única divindade) e o conceito de um D’us que transcende o mundo físico.
Em contraste aos pagãos, os transcendentalistas apenas cultuam D’us. O judaísmo
ensina que somente há um D’us Único, e que não há nada, absolutamente, além
d’Ele. D’us é a única Realidade; a existência de cada um de nós e de cada coisa
que existe é completamente dependente d’Ele. Assim sendo, de acordo com o
judaísmo, as leis da Natureza são simples ferramentas nas mãos de D’us. Ele
criou a Natureza e suas leis de modo a que seu funcionamento seja ordenado. Em
uma analogia simplista: D’us emprega as leis da Natureza como um escritor se
utiliza das leis da gramática. Elas são necessárias para manter a ordem, mas às
vezes podem ser quebradas, particularmente quando o autor deseja chamar a
atenção do leitor. D’us age de maneira semelhante: Ele geralmente governa o Seu
mundo segundo as leis da Natureza, mas quando deseja acordar os seres humanos,
propositalmente as quebra. Isso é o que o judaísmo define como milagre. O
judaísmo ensina que o propósito dos milagres é nos fazer lembrar que há Alguém
além do mundo físico e de seus fenômenos naturais. A Cabalá (sistema filosófico
religioso judaico de origem medieval, séculos XII-XIII, integrando elementos
que remontam o início da era cristã. Compreende preceitos práticos,
especulações de natureza mística, esotérica e taumatúrgicas. Afirma que o
Universo é uma emanação divina, tendo grande importância a interpretação e
decifração dos textos bíblicos) nos ensina que D’us tem diferentes Nomes. Cada
um deles representa uma diferente manifestação Divina no mundo. Dois de Seus
Nomes aparecem com frequência na Torá. Um deles é Elo-him. O outro
é o Tetragrama (constituído de quatro consoantes, é o teônimo hebraico
comumente transliterado das letras latinas YHWY – o nome do D”us nacional dos
Israelitas usado na Tanakh Bíblia Hebarica). Nossos Sábios comentam que o
Nome Elo-him tem o mesmo valor numérico que a palavra hebraica HaTeva –
a Natureza. Quando D’us Se manifesta por meio das leis da Natureza – pôr do
Sol, nascer do Sol, por exemplo – Ele Se manifesta como Elo-him.
Quando Ele viola as leis da Natureza – quando ocorre um milagre – Ele está
agindo como o Tetragrama. Os egípcios eram pagãos, mas não eram descrentes:
acreditavam em inúmeras divindades e também em Elo-him – um
D’us iminente, mas não transcendente. Eles não acreditavam em um D’us
transcendental, infinitamente além da Natureza. Considerando o acima exposto,
podemos entender a necessidade das Dez Pragas. Se D’us tivesse pretendido
arrebentar o Egito, Ele, o Onipotente, teria aniquilado instantaneamente todos
os egípcios. Se fosse sua intenção puni-los, Ele poderia tê-lo feito com uma
única praga terrível e duradoura. A razão para as Dez Pragas foi que, enquanto
escravos, os judeus tinham sido muito influenciados pelo Egito e seu povo; e,
portanto, precisavam aprender que a Natureza é um mero pincel nas mãos do
Artista Supremo. D’us virou as leis da Natureza de cabeça para baixo para
mostrar aos judeus – e para ensinar à humanidade – que Ele não está limitado
pelas próprias leis por Ele criadas. O judaísmo admite que D’us geralmente age
segundo as leis da Natureza. De outra forma, o mundo seria caótico. Imaginem se
a lei da gravidade parasse de existir ou fosse aplicada apenas de forma
intermitente. Imaginem um mundo onde a órbita do sol fosse randômica e
irregular. Mas o judaísmo também ensina que as leis da Natureza não são
absolutas e imutáveis, pois são meras ferramentas Divinas, sempre sujeitas à
vontade de D’us. Não é coincidência o fato de as Dez Pragas terem visado àquilo
que os egípcios endeusavam. O Nilo (rio mais extenso do mundo com 6.853 km,
situado no nordeste do continente africano; sua nascente está a sul da linha do
Equador, ocorrendo sua foz no Mar Mediterrâneo) – divindade preferencial – vira
sangue. O solo se reveste de animais peçonhentos. Dos céus cai um dilúvio de
granizo que contém fogo. A luz do dia se transforma em total escuridão. À
medida que as pragas se abatem sobre o Egito, seu povo percebe que a Natureza é
subitamente transformada de uma divindade confiável em vilã caprichosa,
imprevisível e perigosa. De repente, a Natureza, que eles adoravam, se virava
contra eles, e, mais estranho ainda, não contra os judeus. Compreender que a
Natureza nada mais é do que uma ferramenta Divina foi de crucial importância
para o Povo Judeu. Tirar os judeus do Egito não significaria a verdadeira
liberdade se eles tivessem levado o Egito com eles. Eles teriam sido escravos
em fuga, doutrinados por seus senhores e por uma cultura pagã. Remover os
judeus do Egito não teria sido a verdadeira liberdade. Foi necessário também
remover o Egito que havia dentro dos judeus. E para fazê-lo, os judeus tiveram
que testemunhar a destruição dos deuses egípcios: tiveram que ver que o
paganismo egípcio era um blefe e que a verdadeira Divindade no mundo não está
limitada nem pela Natureza nem por nada mais. Somente quando o paganismo do
Egito foi realmente arrancado de seu coração, os Filhos de Israel puderam
seguir para o Monte Sinai e ouvir a Voz de D’us e receber a Torá (a lei mosaica
compreendendo os cinco primeiros livros da Bíblica: Gênesis, Êxodo, Levíticos,
Números e Deuteronômio. Também chamado de Pentateuco pelos cristãos). E somente
então eles entenderam – e puderam ensinar ao mundo – que a Natureza não deve
ser cultuada, e que aquele que o faz está trocando os meios pelos fins. Os
judeus tiveram que entender que o mundo e tudo que ele contém – mesmo as mais
confiáveis leis da Natureza – são apenas a tela, a tinta e o pincel nas mãos de
um Artista Infinito, Onipotente e Onipresente. Uma das lições fundamentais das
Dez Pragas é a que diz que quem adora as leis da Natureza – e não importa,
realmente, se for um egípcio pagão ou cientista ateu – não é uma pessoa
realmente livre, pois não deixa espaço para o inesperado – para uma intervenção
Divina que viole as leis da Natureza. Como mencionamos acima, e isso deve ser
repetido tantas vezes quantas necessário for: o judaísmo não rejeita as leis da
Natureza nem recomenda uma solução celestial para cada problema. Rejeita, sim,
qualquer forma de panteísmo, inclusive a crença de que D’us é a Natureza e a
Natureza é D’us. O judaísmo ensina que é D’us e não a Natureza quem dita de que
maneira o mundo funciona. A Torá ensina que D’us é tanto iminente quanto
transcendental: Ele é encontrando na Natureza, que Ele criou e constantemente
mantém, mas Ele também Se encontra infinitamente além da mesma. A festa
de Pessach celebra a passagem da escravidão para a liberdade.
A formidável história que lemos durante o Seder nos ensina que
o primeiro passo para a liberdade é uma visão e um entendimento mais precisos
do funcionamento do mundo. Todos os que rejeitam o transcendental – que apenas
creem no material e não no espiritual, e que não podem ou não querem reconhecer
a falibilidade das leis da Natureza – ainda não alcançaram a verdadeira
liberdade interna. Independentemente de que religião organizada a pessoa siga,
essa pessoa apenas se torna verdadeiramente livre quando ela descobre que sua
vida – e o mundo, em geral – não é ditada pelas inflexíveis e imperdoáveis leis
da Natureza, mas por um D’us Infinito e transcendental, que, em Sua Infinita
Sabedoria, dobra e flexiona as leis da Natureza segundo a Sua Vontade. A DIVISÃO DO MAR. Lemos na Hagadá (texto utilizado para o serviço da
noite do Pessach, contendo a leitura da história da libertação do povo de
Israel do Egito, conforme descrição no livro do Êxodo) de Pessach que,
apesar das Dez Pragas enviadas sobre o Egito, nosso povo não ficou livre ao
sair desse país. Conta-nos a Torá, no Livro Êxodo, que após a décima e última
praga, o Faraó permitiu que os judeus deixassem aquele país, mas ele mudou de
ideia e ordenou a seu exército que fosse atrás deles e os trouxesse de volta.
Os judeus adquiriram a liberdade física do Egito uma semana após o Êxodo, no
episódio do Mar de Juncos, quando as águas dividiram-se, por milagre –
permitindo que os judeus cruzassem o mar em terra seca, para depois retornar a
seu estado anterior, afogando os egípcios. São claras as diferenças entre as
Dez Pragas que se abateram sobre o Egito e a divisão do Mar. Quando os Filhos
de Israel estavam no Egito, Moshé e seu irmão Aaron, emissários de D’us, confrontaram
o Faraó e seus feiticeiros e soltaram as pragas contra os egípcios, enquanto o
restante dos judeus olhava passivamente o desenrolar dos milagres. No entanto,
no episódio da divisão do Mar, todos os judeus foram colocados diante de um
grande teste de fé. Eles tinham fugido do Egito, mas o exército desse país os
tinha alcançado. Eles tinham sido pegos numa emboscada: diante deles estava o
Mar de Juncos, profundo e intransponível, e atrás dele estavam poderosas forças
armadas, prontas para capturá-los e matá-los. A Torá nos conta que Moshé,
diante de uma situação aparentemente impossível, clamou a D’us por ajuda. Mas
em vez de responder com um milagre, como fizera no Egito, D’us o censura: “Por
que clamas a Mim? Diz aos Filhos de Israel que sigam adiante!”. Mas como
poderiam avançar quando havia aquele mar colossal diante deles? Note-se que
Moshé (Profeta Moises – o libertador do povo de Israel da escravidão no Egito,
de aproximadamente 430 anos - conforme Êxodo 12,40) não faz essa pergunta e D’us tampouco lhe dá
instruções. D’us apenas lhe diz para seguirem adiante, e assim eles o fizeram.
Aqui segue o próximo passo para a verdadeira liberdade: esta é adquirida não
apenas abraçando-se o transcendental, mas também quando se consegue seguir em
frente, apesar dos contratempos aparentemente impossíveis de serem
vencidos. A liberdade é a crença de que se D’us dá uma ordem, Ele dará ao
homem os meios para cumpri-la. Quando D’us diz a Moshé para ordenar que os
judeus sigam em frente, o profeta levanta seu cajado – o mesmo que ele usara no
Egito para desencadear as pragas – mas nada acontece: o mar continuou como estava,
assim como o exército egípcio. Não se viu salvação nem milagre algum.
Finalmente, um homem de nome Nachshon ben Aminadav, líder da Tribo de Judá, se
atira no mar. Foi avançando com dificuldade pela maré alta até que as águas
chegaram à sua cintura, depois ao seu peito e aos seus ombros. Finalmente,
quando as águas chegaram às suas narinas, o Mar de Juncos se dividiu e os
Filhos de Israel o seguiram. O Midrash cita várias razões
pelas quais o Povo Judeu mereceu que o Mar se dividisse. Segundo alguns de nossos
Sábios, isso ocorreu pelo mérito da profunda fé e confiança inabalável de
nossos antepassados em que D’us os protegeria. Em outras palavras, o Mar se
dividiu porque os judeus tinham fé. Qual a conexão entre fé em D’us e a divisão
do Mar? O que foi discutido sobre a Natureza esclarece esse assunto. A Natureza
– como os egípcios descobriram depois de muito sofrimento – está sujeita a
mudanças radicais. É muito mais imprevisível do que pensa a maioria das
pessoas. De fato, todas as coisas criadas, que vivem dentro dos limites do
tempo, estão sujeitas à mudança. Até mesmo as rochas estão sujeitas ao
desgaste. O homem, também, está sujeito a constantes mudanças. Como ensinou
o Maharal de Praga (Seu nome é Judá Loew bem Betzalel
(1512-1609). Foi uma importante referência no estudo do Talmud, Cabalá e
filosofia, servindo como Rabino-Chefe em Praga – atual República Tcheca, a
maior parte da sua vida) a única constante em nosso mundo em constante
transformação é D’us. O homem, no entanto, tem a oportunidade de copiar D’us.
Nossa fé e confiança n’Ele, quando são reais e não meras palavras vazias,
manifestam uma medida de Seu caráter imutável. Em outras palavras, quando
verdadeiramente temos fé em D’us, de certa forma personificamos o Divino.
Quando o Povo Judeu se aproximou das águas com fé em D’us, as águas perceberam
neles uma medida do Divino. Como um ser criado – no caso, o Mar de Juncos – não
pode opor-se ao Criador, esse ser instintiva e espontaneamente recua perante o
povo que personifica o Divino. Ao compor o Salmo 114, o Rei David referia-se a
isso. Vejamos: “Viu-os o Mar e fugiu (...)”. O Midrash (termo hebraico referente:
a história, investigação e estudo. É um método homilético – pregação ou
formação textual da exegese – interpretação crítica bíblica. O termo também
se refere à compilação integral dos ensinamentos da Tanakh – Bíblia hebraica) pergunta:
O que viu o Mar e de quem fugiu? E responde: Viu divindade refletida no braço
estendido de Moshé, e fugiu de sua posição como um obstáculo no caminho de
D’us. Mas isso levanta uma pergunta óbvia: Por que o Mar esperou que Nachshon
ben Aminadav se atirasse n’água, até que esta chegasse às suas narinas, para
retroceder? A resposta é que o Mar estava esperando que o Povo Judeu
expressasse sua fé por meio da ação. Acreditar em D’us – mesmo com fé e
confiança genuínas – não era suficiente. O Mar exigia uma demonstração externa
de sua fé. Era necessário que alguém a pusesse em prática. A fé é uma qualidade
da alma. Nós, judeus, somos chamados de “pessoas de fé, filhos de pessoas de
fé”. A fé em D’us sempre existe dentro de nós, mesmo dentro daqueles que a
neguem e tentem lutar contra ela. Mesmo quando alguém tenta negar sua fé, sua
alma continua a crer. Mas D’us não se satisfaz com a fé interior oculta. A fé
tem que ser exercida. Tem que levar à ação. Não basta crer: é preciso agir de
acordo com suas crenças, especialmente quando estas estão dentro da essência da
pessoa. D’us nos desafia a atiçar as chamas de nossa fé silenciosa para que ela
possa desenvolver-se. A fé que permanece oculta no coração de alguém é
silenciosa. Não tem como impactar o mundo físico a não ser que seja expressa na
prática. Foi por esta razão que as águas do Mar de Juncos aguardaram – aguardaram
até que os judeus dessem expressão física à sua fé. Nachshon ben Aminadav,
líder da tribo de Judá, ancestral do Rei David e do Mashiach,
personificou a liderança: adentrou nas águas do Mar sem esperar por um milagre,
expressando, assim, a fé que o povo tinha dentro de seu coração. Ao assim
fazer, mesmo arriscando a vida, as águas se dividiram. A fé está muito
entrelaçada com a verdadeira liberdade. Chegam mesmo a ser sinônimos na medida
em que dá ao homem a força e a determinação de agir apesar dos obstáculos –
reais ou imaginários. Todo ser humano é capaz de atingir o nível de devoção
expressa por Nachshon ben Aminadav, pois quando o homem decide realizar a
Vontade de D’us – fazer o que é certo neste mundo – D’us lhe fornece a maneira
de vencer os obstáculos. Pessach – festa da liberdade – nos ensina
que se um judeu está seriamente comprometido a andar pelos caminhos de D’us, da
Torá, da justiça e da honradez, o Altíssimo lhe dará a força e a possibilidade
de assim o fazer. Como no Mar de Juncos, os obstáculos recuarão, cedo ou tarde,
permitindo-lhe uma passagem livre e desimpedida. www.morasha.com.br. Abraço. Davi.
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