Budismo. Mensagem do Dalai Lama, Tenzin Gyatso (1935- ). Transcrito por
Alexander Benzin. VIVER E
TRABALHAR EM SOCIEDADE MULTIRREGIOSA. Me pediram para falar sobre viver e
trabalhar em harmonia numa sociedade com diversidade religiosa e há muitos
aspectos diferentes que esse assunto toca. Como o nosso ilustre anfitrião
disse, um aspecto é o que Sua Santidade o Dalai Lama sempre enfatiza, que são
os valores humanos e a ética secular. Que apesar das diferentes crenças que
possam existir entre nós que vivemos em uma certa sociedade, a ética não
precisa depender apenas de um conjunto específico de crenças religiosas, pois
há uma ética baseada em valores humanos básicos que são aceitos por todas as
religiões e por pessoas sem religião também. Esses valores se baseiam no
reconhecimento de que somos todos iguais: Todos querem ser felizes. Ninguém quer
ser infeliz. Nesse sentido, somos todos iguais. Todos nós temos sentimentos.
Todos querem ser amados e aceitados. Ninguém quer ser rejeitado ou perseguido.
Todos querem ser respeitados e ter a consideração dos outros. A base, então,
para essa abordagem geral da ética secular é, como Sua Santidade o Dalai Lama
sempre enfatiza, baseada em compaixão, a qual é definida como o desejo de que
os outros fiquem livres do sofrimento e de problemas e de suas causas. Mas
quais são as fontes de problemas e infelicidade? Há muitas. Nós vivemos num
tempo em que há problemas econômicos, problemas relacionados a vários tipos de
conflitos ao redor do mundo. E estamos todos ligados, então o que acontece numa
parte do mundo afeta todos. Não é mais possível viver de forma isolada. Então
quando olhamos para várias crenças religiosas é muito importante que as
diferenças entre elas não contribuam para criar ainda mais problemas. E a
pergunta então é: como podemos evitar disputas, conflitos e mal entendidos que
podem surgir por causa de diferentes crenças? Não é suficiente dizer, “todas as
religiões são iguais. Todas as crenças, também as não religiosas, são iguais.
Todos nós acreditamos em tentar fazer desse mundo um lugar melhor”. Isso não é
suficiente. Mesmo que talvez seja verdade que compartilhamos o mesmo valor,
desejo e objetivo, ainda assim há diferenças e não é justo dizer que não há
diferenças entre as diversas religiões. Mas o que causa desarmonia é muitas
vezes baseado na nossa ignorância sobre as crenças um dos outros. Isso é
agravado com frequência pela nossa falta de conhecimento profundo sobre a nossa
própria tradição. Então ao invés de se basear em conhecimento e compreensão,
nossas atitudes em relação às nossas origens e às origens dos outros podem
facilmente se transformar no que é chamado de “mentalidade de time de futebol”.
Essa mentalidade significa que “esse é o meu time de futebol, ele é o melhor e
nós temos que ganhar. Nós temos que competir e derrotar todos os outros times
de futebol.” Essa é a crença de que a minha creligião é a melhor simplesmente porque é a
minha e a da minha família. Uma vez perguntaram para Sua Santidade o Dalai
Lama, “qual é a melhor religião?” e ele respondeu, “a melhor religião é aquela
que ajuda você a se tornar uma pessoa mais bondosa.” Por isso para cada pessoa
uma religião ou a outra será mais útil para torná-la uma pessoa mais bondosa.
Eu acho que essa é uma forma muito útil de lidar com diversidade religiosa. Nós
precisamos reconhecer que cada religião tenta ajudar os seus seguidores a se
tornarem melhores pessoas, pessoas mais bondosas. Para reconhecer isso,
precisamos ter conhecimento. Precisamos aprender sobre a nossa própria religião
e as dos outros. Isso pode ser feito de forma científica por meio da educação,
sem tentar converter ninguém e sem qualquer tipo de julgamento, apenas
conhecimento geral. Isso é muito útil e importante. Com frequência há encontros
entre diferentes líderes religiosos. Sua Santidade o Dalai Lama gosta muito de
participar desses encontros inter-religiosos. Ele os considera muito úteis. Eu
me lembro de vários encontros de que eu participei. Um deles foi uma reunião
com o Patriarca Bartolomeu, o Patriarca da Igreja Ortodoxa de Constantinopla.
Eu o encontrei pouco tempo depois que ele assumiu posse, quando estava prestes
a ir para o Japão, onde iria conhecer pela primeira vez um líder budista. Ele
me disse que estava muito agradecido pelos escritos de Sua Santidade o Dalai
Lama sobre budismo, porque antes ele não sabia muito sobre budismo e esses
livros o ajudaram muito a poder conhecer e dialogar de forma construtiva com os
líderes budistas no Japão. Assim nós vemos esse tipo de atitude aberta que
reconhece que a base para o entendimento e a cooperação entre as religiões é a
educação, o conhecimento. Nós encontramos isso nos líderes de várias religiões.
Eu me envolvi especialmente com o diálogo entre budistas e muçulmanos.
Inicialmente, eu me interessei por isso nos anos 90, por causa da situação no
Tibete em que muitos muçulmanos chineses estavam se mudando para lá,
especialmente para a região nordeste. Tradicionalmente havia muçulmanos que
viviam na região central do Tibete. Eles eram na maioria comerciantes
muçulmanos de Ladakh e Kashmir. Isso foi na época do 5º
Dalai Lama (Ngawang Lobsang Gyatso
(1617-1682), no século XVII. Ele estabeleceu várias leis que davam aos
muçulmanos todos os direitos que eles queriam em relação a construir mesquitas,
ter seus próprios cemitérios e não serem obrigados a participar dos diversos
rituais e procedimentos budistas que aconteciam em certos feriados ao longo do
ano. Por isso, tradicionalmente não havia um conflito entre essas religiões no
Tibete. Mas recentemente houve muita competição econômica com a chegada de
imigrantes chineses no Tibete e entre eles muitos muçulmanos. Assim, pensando
no contexto maior da Ásia Central e na história da interação entre as
sociedades budistas, muçulmanas e cristãs, eu achei que seria muito importante
construir um diálogo e maior entendimento entre esses grupos, especialmente
entre budistas e muçulmanos. Isso ajudaria o desenvolvimento de toda a região.
Uma das coisas que eu decidi fazer foi escrever uma história mais objetiva da
interação entre as duas culturas e isso me deu a oportunidade perfeita para
viajar para países islâmicos no Oriente Médio e conversar com estudiosos lá. Já
que eu estava buscando conhecimento houve uma enorme abertura entre os
estudiosos islâmicos para ajudar a desfazer os muitos mal-entendidos sobre a
interação entre as duas culturas. Muitos relatos descrevem a interação
simplesmente como: “os invasores muçulmanos vieram para a Índia e destruíram
tudo que era budista.” E embora certamente houve alguma destruição, essa não é
uma representação justa do que realmente aconteceu e da história completa. Mas
enquanto os budistas verem os muçulmanos como aqueles que destruíram os
monastérios na Índia ou os muçulmanos pensarem nos cristãos como aqueles que
fizeram as Cruzadas contra eles, enquanto isso for a memória principal da
interação, isso só vai perpetuar mais problemas entre eles, mais conflitos.
Assim, eu viajei para lugares como Egito e Jordânia, Turquia etc. e conheci
professores e líderes teológicos do Islã. Eu recebi um grande elogio do reitor
da Universidade Teológica do Cairo, a Universiade Al-Azhar. Ele disse que eu era um
verdadeiro guerreiro da verdade, o verdadeiro significado de mujahedin. Eu estava tentando mostrar
a verdade do que realmente aconteceu. Eu percebi que não só os professores e
líderes religiosos que eu conheci, mas também os estudantes, estavam muito
interessados. Trezentos alunos vieram para uma palestra opcional que eu dei na
Universidade do Cairo sobre budismo. Uma vez, Sua Santidade o Dalai Lama me
pediu para fazer uma coisa. De vez em quando ele me dava o que eu chamava de
missão impossível. Ele disse, “eu quero que você encontre e traga para mim um
líder negro africano sufista muçulmano.” Como responder a um pedido como esse a
não ser “muito obrigado”? Sua Santidade tem uma habilidade incrível de saber as
conexões kármicas que as pessoas têm e sempre que ele me
pediu para fazer essas tarefas aparentemente impossíveis, foi extremamente
fácil realizá-las – tudo simplesmente dá certo. Pouco tempo depois, eu viajei
para a Europa – eu costumava dar muitas palestras ao redor do mundo – e conheci
um alemão com quem comecei a conversar. Ele era diplomata na África e então eu
contei para ele o pedido do Dalai Lama e ele disse, “Um grande amigo meu por
coincidência é o líder religioso sufi de Guiné.” Guiné é na África Ocidental e
eu me esqueci de dizer que Sua Santidade também pediu que o líder fosse da
África Ocidental. Esse líder estava na Europa e estava indo para a Índia para
alguns tratamentos médicos ayurvédicos.
Por coincidência ele ia estar em Délhi exatamente quando eu voltaria para lá e
por coincidência ele tinha alguns dias livres antes de ir embora da Índia e
estava muito disposto a se encontrar comigo e que eu o acompanhasse a Dharamsala – Índia para conhecer o 14º Dalai Lama (Tenzin
Gyatso (1935- ). Assim não foi
necessário nenhum esforço para organizar
isso. Então eu conheci esse líder sufi. Ele tinha uma aparência imponente. Era
grande como um chefe tribal africano e extremamente digno. Nós fomos para Dharamsala e eu o acompanhei em seu
encontro com o Dalai Lama. Ele estava vestido com uma dessas túnicas brancas
muito elegantes. O encontro deles foi tão emocionante e caloroso, como dois
velhos amigos que se encontram, que o líder sufi chegou até a chorar. O Dalai
Lama se levantou e foi para a outra sala – fora da sala onde ele recebe
visitantes – e trouxe um lenço pessoalmente para que o líder sufi enxugasse
suas lágrimas, algo que eu nunca tinha visto ele fazer antes. Ele sempre tinha
um assistente para trazer coisas para ele ao invés de ir buscar ele mesmo. Os
dois tiveram uma calorosa discussão sobre a base para a compaixão no budismo e
no sufismo. Depois disso, por muitos anos eles tiveram outros encontros. Assim,
o próprio Dalai Lama tem muito interesse nesse diálogo, não só com os
muçulmanos, mas com líderes de outras religiões ao redor do mundo. Ele me
incentivou a traduzir muitas partes do meu site para línguas islâmicas para
disponibilizar ao mundo islâmico o conhecimento sobre budismo, sobre o Tibete,
sobre seus escritos e discursos sobre harmonia religiosa e ética secular. Outra
missão impossível. Mas surpreendentemente nós já conseguimos traduzir grandes partes
do site para o árabe e urdu. Urdu é a língua do Paquistão e dos muçulmanos do
norte da Índia. Recentemente, novamente sem ir atrás disso e sem procurar por
eles, uma equipe que está interessada em traduzir nosso site para o indonésio
apareceu. A Indonésia tem a maior população muçulmana do mundo. Então, como
costumo dizer, a base para a harmonia religiosa é a educação, conhecimento
sobre as crenças um dos outros. Assim vemos que não há nada a temer. Nós
reconhecemos nossas diferenças, mas enfatizamos o que compartilhamos em
harmonia. Agora a questão é: como podemos viver e trabalhar numa sociedade multirreligiosa como a que vocês têm aqui na Calmúquia? (Calmúquia o nome de uma República
independente, uma das unidades que compõem a Federação Russa. Tem uma área de
130 mil km quadrados, e uma população de cerca de 10 milhões de habitantes. Sua
capital é a cidade de Elista e as línguas faladas são o russo e o calmuco. É a
única região da Europa onde o Budismo é a religião majoritária). E já que essa
é uma faculdade de engenharia, eu estava pensando em o que seria relevante para
vocês como estudantes dessa universidade. Em outras palavras, quando estamos
construindo ou projetando algo, o que podemos levar em consideração para
acomodar essas diferentes crenças e práticas religiosas? Num contexto maior,
como organizamos uma sociedade, um governo, um governo local etc. se tivermos a
chance de ajudar? A primeira coisa que me veio à memória foi que em certas
religiões pede-se aos adeptos para rezar em certos momentos do dia – como entre
os muçulmanos, cinco vezes ao dia. Assim, se você estiver supervisionando uma
construção na qual alguns dos trabalhadores são muçulmanos ou se você estiver
construindo um prédio público, uma escola, por exemplo, na qual haverá alunos
ou professores muçulmanos, pode ser útil criar uma atmosfera harmoniosa com a construção
de uma sala para orações, se for permitido que aqueles que querem rezar durante
o dia possam seguir suas crenças e costumes. Semelhantemente, se há costumes de
outras religiões que podem ser levados em consideração na construção de um
prédio, isso é muito positivo. Em outras palavras, leve em consideração as
características marcantes de uma crença para fazer as pessoas se sentirem
bem-vindas e confortáveis. Sempre há uma questão relacionada à lealdade. A
lealdade é um conceito muito importante para o bem-estar emocional das pessoas.
Nós queremos ser leais à nossa família, ao nosso contexto étnico e à nossa
religião. Também há lealdade ao Estado e ao país. O que muitas vezes causa
problemas é quando as pessoas não podem demonstrar lealdade a tudo isso de
forma harmoniosa, quando elas são forçadas a serem desleais, digamos, ao seu
contexto religioso para serem leais aos costumes da sociedade em geral. Há
exemplos com vestimentas religiosas. Em sociedades muçulmanas, as mulheres
cobrem a cabeça e às vezes o rosto inteiro com um véu e recentemente houve
muita controvérsia por esse costume ter sido proibido na França. Os sikhs – uma religião da Índia – nunca cortam
seus cabelos. Os homens nunca cortam o cabelo e sempre usam turbantes. Em
alguns lugares de trabalho eles não podem fazer isso. Ou no exército, se eles
se alistam. Monges budistas são desencorajados de usar suas túnicas se estão
trabalhando num escritório ou numa escola. Em alguns lugares mesmo usar uma
cruz, se você é cristão, é visto como um pouco agressivo demais. Eu acho muito
importante permitir que as pessoas sejam leais às suas tradições se isso não
causar grandes problemas à sociedade. Qual é o problema se você usa um turbante
e não corta seu cabelo se está numa escola ou no exército? Há algum problema?
Na verdade, não. Você ainda pode fazer seu trabalho muito bem. Qual o problema
se, como budista, você faz uma oração e uma oferenda antes de comer? Qual é o
problema? Se você usa um véu que cobre seu rosto completamente – isso pode ser
um problema para dirigir, por exemplo, porque sua visão é limitada. Então você
poderia dizer, “Você não pode usar um véu cobrindo o rosto inteiro se estiver
dirigindo.” Mas em outras situações, qual é o problema? Ou se você é uma
mulher, qual é o problema em insistir em ser tratada por médicas e enfermeiras
em um hospital? Há muitas mulheres, mesmo sem religião, que também prefeririam
isso. Eu acho que na construção de um prédio, por exemplo, você pode levar em
consideração coisas como uma seção para homens e para mulheres, se estiver numa sociedade em que há um número considerável de
pessoas que gostariam disso como parte de seus costumes. E se você está
trabalhando com uma sociedade, considerar quais medidas nós podemos tomar que
permitam que as pessoas sejam leais às suas tradições em situações nas quais
isso não causa problemas para o funcionamento da sociedade. Em resumo, como o Dalai
Lama sempre diz, é muito bom que existam tantas religiões diferentes no mundo e
não só religiões, mas crenças seculares também. Porque, como no exemplo da
comida, se houvesse só um tipo de comida para todo mundo, isso seria muito
chato e não serviria para todos. É o mesmo para crenças: o que funciona para
uma pessoa pode não servir para outra. Há muitas crenças que podem nos ajudar a
ser pessoas mais bondosas, mais atenciosas, mais amorosas, que podem nos
ensinar métodos para viver em harmonia com os outros. E como Sua Santidade diz,
a melhor religião é aquela que funciona para você e te ajuda a ser uma pessoa
mais bondosa. Ou seja: “só porque eu gosto de sorvete de chocolate, não
significa que você tem que gostar de sorvete de chocolate também”. www.studybuddhism.com.br. Abraço. Davi.
Nenhum comentário:
Postar um comentário