quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

IV. RELATO DE UM PEREGRINO RUSSO. I. ATRAVÉS DA SIBÉRIA.



Cristianismo Oriental. RELATO DE UM PEREGRINO RUSSO. I. ATRAVÉS DA SIBÉRIA. A ORAÇÃO DE JESUS. Durante muito tempo eu viajei pelos lugares mais diversos, sempre com a oração de Jesus que me fortalecia e consolava ao longo das estradas, em qualquer ocasião, em cada encontro. Finalmente me pareceu que faria bem parar em algum lugar para encontrar maior solidão e estudar a Filocalia que eu só podia ler à noite, nas paradas, ou durante o descanso do meio dia. Tinha muita vontade de mergulhar longamente nessa leitura para tirar dela, com muita fé, a verdadeira doutrina sobre a salvação da alma pela oração do coração. Infelizmente, para satisfazer esse desejo, eu não conseguia me empregar em nenhum trabalho manual, pois não podia usar o meu braço esquerdo desde minha infância; assim, na impossibilidade de me fixar em algum lugar, dirigi-me às regiões da Sibéria, em direção a Santo Inocêncio de Irkutsk (1), pensando que, nas florestas e estepes de lá, encontraria mais silêncio e poderia dedicar-me mais facilmente à leitura e à oração. E lá fui eu, recitando sempre a oração. Ao cabo de certo tempo, senti que a oração por si só passava para meu coração, isto é, que meu coração, ao bater regularmente, ia recitando as santas palavras no ritmo das batidas, por exemplo: 1 – Senhor, 2 – Jesus, 3 – Cristo, e assim por diante. Deixei de murmurar com os lábios e ficava muito atento para escutar o que dizia o meu coração, me lembrando que o monge sempre me dizia como isso era agradável. Depois, senti uma dorzinha no coração e, no meu espírito, um tal amor por Jesus Cristo que me parecia que, se eu o visse, me lançaria aos seus pés, abraçando-os e lavando-os com minhas lágrimas. E lhe agradeceria o consolo que seu nome nos dá, em sua bondade e seu amor por sua criatura indigna e culpada. Logo comecei a sentir um calor benfazejo no meu coração que se estendeu por todo o peito. Isso me levou a uma leitura muito atenta da Filocalia para nela verificar essas sensações e estudar como se desenvolve a oração interior do coração. Sem esse controle, eu tinha medo de me iludir, de julgar as ações da natureza como se fossem da graça e de ficar orgulhoso por aprender tão rapidamente a oração, como me havia prevenido o monge. Por isso eu só caminhava à noite e passava o dia lendo a Filocalia, sentado na floresta, embaixo das árvores. Ah! Quantas coisas novas, profundas e ignoradas eu descobri nessa leitura! Assim ocupado, sentia uma felicidade tal, como jamais imaginara até então. Sem dúvida, algumas passagens do livro eram ainda incompreensíveis ao meu espírito tão limitado, mas os efeitos da oração do coração iluminavam e clareavam o que não compreendia. Além disso, eu via às vezes, em sonhos, meu amigo monge que me explicava as dificuldades e encaminhava cada vez mais para a humildade a minha alma lenta a entender. Passei dois longos meses de verão nessa felicidade perfeita. Eu viajava principalmente através dos bosques e pelos caminhos do campo: quando chegava a uma aldeia, pedia alguns pães, um punhado de sal, enchia de água minha cabaça e partia para mais cem quilômetros. O PEREGRINO É ASSALTADO. Certamente por causa de meus pecados ou para o progresso de minha vida espiritual, apareceram as tentações quando o verão já acabava. Eis como: uma noite, quando eu tinha desembocado numa grande estrada, encontrei-me com dois homens com capacetes de soldados. Eles me pediram dinheiro. Quando lhes disse que não tinha um tostão, não quiseram acreditar e gritaram com brutalidade: Tu mentes! Os peregrinos arranjam muito dinheiro! E um deles acrescentou – Não adianta nada ficar falando com ele! E bateu-me na cabeça com seu grosso cajado. Eu cai sem sentidos. Não sei quanto tempo fiquei lá, mas quando voltei a mim, percebi que estava na floresta, perto da estrada. Eu estava todo rasgado e minha sacola tinha desaparecido. Só restaram pedaços dos barbantes que a amarravam. Graças a Deus, eles não levaram minha carteira de identidade que eu guardava dentro do meu gorro para poder mostra-la rapidamente, quando era necessário. Levantando-me, chorei amargamente, não tanto por causa das pancadas, mas pelos meus livros – a Bíblia e a minha Filocalia – que estavam dentro da sacola roubada. Durante o dia todo e a noite toda, chorei e me lastimei. Onde estaria a minha Bíblia que eu lia desde pequeno e que trazia sempre comigo? Onde estaria a minha Filocalia da qual tirava ensinamentos e consolação? Infeliz de mim! Tinha perdido o único tesouro da minha vida, sem ter podido aproveitar dele até o fim. Seria melhor morrer do que viver assim, sem alimento espiritual. Nunca poderia recuperar meus livros! Dois dias inteiros, tanto me afligi que nem podia andar direito. No terceiro dia, exausto, caí junto de um arbusto e adormeci. Em sonhos, parecia-me que estava no mosteiro, na cela do monge, meu amigo, e lhe falava, chorando, da minha tristeza. Depois de me consolar, o monge me disse: Que isso te sirva de lição de desapego das coisas terrestres para encaminhar-te mais livremente para o céu. Essa provação te foi mandada para que não caias na volúpia espiritual. Deus quer que o cristão renuncie à sua vontade própria e a todo apego por ela, a fim de entregar-se inteiramente à vontade divina. Tudo o que Ele faz é para o bem e a salvação do homem. “Ele quer que todos sejam salvos (Tm 2,4). Cria coragem, pois, e acredita que, com a tentação, “o Senhor vos dará os meios de sair dela e a força para suportá-la” (I Co 10,13). Logo receberás um consolo maior que tua dor. Com essas palavras, eu acordei e senti em meu corpo forças novas e na minha alma como que uma aurora e uma tranquilidade nova – Seja feita a vontade de Deus! Disse. Levantei-me, fiz o sinal da cruz e parti. A oração agia no meu coração como antes e assim, durante três dias, caminhei calmamente. De repente, encontro na estrada uma tropa de homens condenados a trabalhos forçados que eram conduzidos sob escolta. Ao chegar perto deles, reconheci os dois homens que me tinham roubado; como eles marchavam na primeira coluna, atirei-me a seus pés, suplicando que me dissessem onde estavam os meus livros. No começo, fingiram não me reconhecer. Depois, um deles me disse: Se nos deres alguma coisa, nós te diremos onde estão teus livros. Tens de nos dar um rublo de prata. Jurei que lhes daria o dinheiro, de qualquer jeito, nem que tivesse de mendigar para consegui-lo. Tomem, se quiserem, minha carteira de identidade como penhor. Daí eles me disseram que meus livros estavam nos carros juntamente com outros objetos que tinham roubado. Como posso obtê-los? Pede ao capitão da escolta. Fui correndo falar com o capitão e lhe expliquei tudo em detalhes. Na conversa, ele me perguntou se eu sabia ler a Bíblia. Sei ler, sim, e também sei escrever, disse; o senhor verá na capa da Bíblia uma inscrição que mostra que ela me pertence; e eis aqui minha carteira de identidade, com meu nome e sobrenome. O capitão me disse: Esses salteadores são desertores. Viviam em uma cabana e roubavam os que passavam. Um cocheiro esperto conseguiu prendê-los ontem quando tentaram, arrebatar-lhe seu grande trenó. O que mais desejo é devolver teus livros, se estão ai. Mas tens de vir conosco até a próxima parada. Fica a quatro quilômetros somente e eu não posso parar todo o comboio por tua causa. Fui caminhando, feliz, ao lado do cavalo do capitão e conversava com ele. Vi que se tratava de um homem honesto e bom que já não era muito moço. Ele me perguntou quem era eu, de onde vinha e para onde ia. Respondi-lhe com toda a franqueza. Assim chegamos à casa de pouso. Ele foi procurar meus livros e me devolveu, dizendo: Onde queres ir agora? Já é noite. Fica comigo. Eu fiquei. Estava tão feliz por ter recuperado meus livros que não sabia com agradecer a Deus; eu os apertava contra meu peito até me doerem os braços. Chorava de alegria e meu coração vibrava. Olhando para mim, o capitão disse: Vejo que gostas de ler a Bíblia! De tão feliz, eu nem podia falar. Só chorava. Ele continuou: Eu também, meu irmão, leio todos os dias o Evangelho. Assim falando, abriu seu uniforme e tirou de dentro um pequeno Evangelho de Kiev (2) com capa de prata. Senta-te aqui e eu te contarei como adquiri esse hábito. Olá! Tragam-nos um jantar! HISTÓRIA DE CAPITÃO. Sentamos à mesa. O capitão começou a contar: Desde minha mocidade, eu sempre servi no exército e nunca na guarnição. Eu conhecia bem o serviço e meus chefes me consideravam um modelo. Mas era moço e meus amigos também. Mas era moço e meus amigos também. Para minha desgraça, aprendi a beber e bebia tanto que fiquei doente. Quando não bebia, era um excelente oficial, mas bastava um copinho de nada e lá ficava eu seis semanas de cama. Durante muito tempo, me suportaram. Mas, um dia, bêbado, insultei meu chefe: fui rebaixado e condenado a servir três anos na guarnição. E se eu não largasse a bebida, pegaria um castigo mais severo ainda. Nessa situação miserável, fiz de tudo para me controlar, para tratar-me; não consegui livrar-me do vício e então decidiram mandar-me para o batalhão da disciplina. Quando me comunicaram a decisão, não sabia mais o que seria de mim. Um dia, estava sentado na caserna e pensava em tudo isso. Apareceu nesse momento um monge que pedia esmola para a igreja. Cada um dava o que podia. Chegando perto de mim, perguntou-me: Por que estás tão triste? Conversei um pouco com ele e lhe contei minha desgraça. O monge, condoído com minha infelicidade, me disse: A mesma coisa aconteceu ao meu próprio irmão e escuta como ele saiu dessa: seu mestre espiritual lhe deu um Evangelho e ordenou-lhe que lesse um capítulo cada vez que tivesse vontade de Beber. E se a vontade voltasse, ele devia ler o capítulo seguinte. Meu irmão pôs em prática o conselho e, em pouco tempo, o vício da bebida o deixou. Já faz quinze anos e nunca mais tomou bebida forte. Faze tu o mesmo e logo verás o benefício. Eu tenho um Evangelho; se quiseres, vou busca-lo para ti. A essas palavras, eu lhe disse: Que queres que eu faça de teu Evangelho, quando nem meus esforços, nem os remédios puderam me corrigir? Eu falava assim porque nunca tinha lido o Evangelho. Não diga isso, respondeu o monge. Garanto que aproveitarás. No dia seguinte, com efeito, o monge me trouxe este Evangelho que está aqui. Eu abri, olhei, li algumas frases e lhe disse: Não quero saber disso; não compreendo nada. Não estou habituado a ler essa linguagem eclesiástica. O monge continuou a aconselhar-me, dizendo que as palavras do Evangelho tinham uma força benfazeja; pois foi o próprio Deus que falou aquelas palavras que ali estão impressas – Não faz mal que não entendas. Lê apenas com atenção, um santo já disse: Se não compreendes a palavra de Deus, os demônios compreendem o que lês e tremem (Tg 2,19). E certamente o desejo de beber é obra dos demônios. Digo-te ainda isto: João Crisóstomo (347-407) escreve que até a casa onde está guardado o Evangelho assusta os espíritos das trevas e se torna um obstáculo a suas intrigas. Eu não me lembro bem – parece-me que dei alguma coisa ao monge – peguei o seu Evangelho e o enfiei no baú com minhas coisas. E o esqueci completamente. Algum tempo depois, chegou a hora de beber. Estava louco de vontade. Abri meu baú para pegar o dinheiro e correr ao botequim. Meus olhos bateram no Evangelho e me lembrei de tudo o que tinha dito o monge. Abri e comecei a ler o primeiro capítulo de Mateus. Li até o fim, sem compreender nada; mas me lembrei das explicações do monge: Não faz mal se nada compreendes. Lê com atenção. Então disse com meus botões: Pois bem! Vamos tentar mais um capítulo. E a leitura então me pareceu mais compreensível. Vejamos o terceiro capítulo, pensei. Nem tinha começado a ler ainda, quando tocou um sinal: era o toque da noite. Eu não podia mais sair da caserna. Assim, fiquei sem beber. No dia seguinte, quando ia sair para buscar aguardente, disse comigo mesmo: E se eu lesse um capítulo do Evangelho? Vamos ver. Eu o li e não arredei o pé. Uma outra vez, senti vontade de tomar bebida alcoólica, mas comecei a ler e me senti aliviado. Fiquei muito reconfortado e assim, cada vez que me dava vontade de beber, eu atacava um capítulo do Evangelho. Quanto mais o tempo passava, mais certo ia dando. Quando terminei os quatro Evangelhos, meu vício pela bebida tinha desaparecido completamente; eu me tornara de gelo a esse respeito. E veja só: faz exatamente vinte anos que nunca mais tomei bebidas fortes. Todo mundo se admirou com a minha mudança. Depois de três anos, fui readmitido no corpo de oficiais, fui promovido e cheguei a capitão. Casei-me com uma mulher excelente. Juntamos algumas posses e agora, com a graça de Deus, estamos tem. Ajudamos aos pobres como podemos e acolhemos os peregrinos. Tenho um filho que já é oficial, é um rapaz ótimo. Pois bem, saibas tu que, depois de minha cura, prometi a mim mesmo que, durante minha vida inteira, eu leria cada dia um dos quatro Evangelhos inteiro, sem admitir impedimento algum. É assim que faço. Quando tenho trabalho demais e fico muito cansado, eu me deito e peço à minha mulher, ou ao meu filho, que leiam o Evangelho para mim; assim cumpro a regra. Em testemunho de gratidão e para a glória de Deus, mandei recobrir de prata este Evangelho eu o guardo sempre no meu peito. Eu escutava com interesse a história do capitão e lhe disse: Conheci um caso semelhante: em nossa aldeia, na fábrica, existia um excelente operário, que conhecia muito bem seu ofício. Mas, por desgraça, ele vivia sempre bêbado. Um homem piedoso aconselhou-o que, cada vez que tivesse vontade de beber aguardente, recitasse trinta e três orações de Jesus em honra da Santíssima Trindade e dos anos de vida terrestre de Jesus Cristo. Foi o que ele fez e logo deixou de beber. E isso não é tudo. Três anos depois, entrou em um mosteiro. E o que será que vale mais – perguntou o capitão – a oração de Jesus ou o Evangelho? É a mesma coisa, respondi. O Evangelho é como a oração de Jesus, pois o nome divino de Jesus Cristo traz em si todas as verdades evangélicas. Os Padres dizem que a oração de Jesus é o resumo de todo o Evangelho. Em seguida, nós dois rezamos as orações; o capitão começou a ler desde o início do Evangelho de São Marcos e eu o escutei fazendo a oração do coração. As duas horas da manhã, ele terminou a leitura e nós fomos dormir. Conforme meu costume, levantei-me cedo; todos dormiam; apenas raiou o dia, eu mergulhei na leitura da minha querida Filocailia. Com que alegria eu a abri! Parecia-me que tinha reencontrado meu pai depois de longa ausência ou um amigo, ressuscitado dos mortos. Abracei meu livro e agradeci a Deus o tê-lo de volta. Comecei a ler Teolepto de Filadèlfia (3) na segunda parte da Filocália. Fiquei espantado ao ver que ele se propõe dedicar-se, ao mesmo tempo, a três atividades diferentes – Sentado à mesa, diz ele, dá ao teu corpo o alimento, ao teu espírito a leitura, e ao teu coração a oração. Entretanto, a lembrança da noite passada tão proveitosa me explicava praticamente esse pensamento. Foi então que descobri a diferença entre o coração e o espírito. Quando o capitão se levantou, fui agradecer-lhe a sua bondade e me despedir. Ele me serviu chá, me deu um rublo de prata e então nos separamos. Retomei meu caminho muito feliz. Ao cabo de um quilômetro, eu me lembrei que tinha prometido aos soldados um rublo – que eu agora possuía. Seria preciso entregar-lhes a moeda, ou não? De um lado, pensava eu, eles te bateram e te roubaram e como estão presos, nada podem fazer contra ti. Mas, de outro lado, lembra-te do que diz a Bíblia: “Se teu inimigo tiver fonte, dá-lhe de comer (Rm 12,20). E o próprio Jesus Cristo diz: “Amai os vossos inimigos (Mt 5,44) e ainda “Se alguém quer tomar-te a túnica, deixa-lhe também a veste (Mt 5,40). Assim persuadido, voltei atrás e cheguei à casa de pouso no momento em que o comboio estava se formando para partir: corri até os dois malfeitores e lhes entreguei meu rublo, dizendo: Rezem e façam penitências; Jesus Cristo é amigo dos homens. Ele não os abandonará! Com essas palavras, afastei-me e retomei a estrada em outra direção.  Referência do texto: (1). Santo Inácio de Irkutsk – estudou em Kiev, lecionou na Academia de Moscou - Rússia foi monge e o primeiro bispo de Irkutsk  em 1727. Seu zelo, sua paciência e sua caridade lhe valeram a reputação de santidade. Desde 1805, suas relíquias são veneradas pelos fiéis. (2). Evangelho de Kiev – um livro editado pelo célebre Mosteiro de Kiev na Rússia. (3). Teolepto, metropolita de Filadélfia – viveu no fim do século XIII. Acham-se seus escritos na Patrologie grecque de Jacques Paul Migne (1800-1875). Livro Relato de Um Peregrino Russo. Abraço. Davi.                                                  

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