Cristianismo
Oriental. RELATO DE UM PEREGRINO RUSSO. I. ATRAVÉS DA SIBÉRIA. A ORAÇÃO DE
JESUS. Durante muito tempo eu viajei pelos lugares mais diversos, sempre com a
oração de Jesus que me fortalecia e consolava ao longo das estradas, em
qualquer ocasião, em cada encontro. Finalmente me pareceu que faria bem parar
em algum lugar para encontrar maior solidão e estudar a Filocalia que eu só
podia ler à noite, nas paradas, ou durante o descanso do meio dia. Tinha muita
vontade de mergulhar longamente nessa leitura para tirar dela, com muita fé, a
verdadeira doutrina sobre a salvação da alma pela oração do coração.
Infelizmente, para satisfazer esse desejo, eu não conseguia me empregar em
nenhum trabalho manual, pois não podia usar o meu braço esquerdo desde minha
infância; assim, na impossibilidade de me fixar em algum lugar, dirigi-me às
regiões da Sibéria, em direção a Santo Inocêncio de Irkutsk (1), pensando que,
nas florestas e estepes de lá, encontraria mais silêncio e poderia dedicar-me
mais facilmente à leitura e à oração. E lá fui eu, recitando sempre a oração.
Ao cabo de certo tempo, senti que a oração por si só passava para meu coração,
isto é, que meu coração, ao bater regularmente, ia recitando as santas palavras
no ritmo das batidas, por exemplo: 1 – Senhor, 2 – Jesus, 3 – Cristo, e assim
por diante. Deixei de murmurar com os lábios e ficava muito atento para escutar
o que dizia o meu coração, me lembrando que o monge sempre me dizia como isso
era agradável. Depois, senti uma dorzinha no coração e, no meu espírito, um tal
amor por Jesus Cristo que me parecia que, se eu o visse, me lançaria aos seus
pés, abraçando-os e lavando-os com minhas lágrimas. E lhe agradeceria o consolo
que seu nome nos dá, em sua bondade e seu amor por sua criatura indigna e culpada.
Logo comecei a sentir um calor benfazejo no meu coração que se estendeu por
todo o peito. Isso me levou a uma leitura muito atenta da Filocalia para nela
verificar essas sensações e estudar como se desenvolve a oração interior do
coração. Sem esse controle, eu tinha medo de me iludir, de julgar as ações da
natureza como se fossem da graça e de ficar orgulhoso por aprender tão
rapidamente a oração, como me havia prevenido o monge. Por isso eu só caminhava
à noite e passava o dia lendo a Filocalia, sentado na floresta, embaixo das
árvores. Ah! Quantas coisas novas, profundas e ignoradas eu descobri nessa
leitura! Assim ocupado, sentia uma felicidade tal, como jamais imaginara até
então. Sem dúvida, algumas passagens do livro eram ainda incompreensíveis ao
meu espírito tão limitado, mas os efeitos da oração do coração iluminavam e
clareavam o que não compreendia. Além disso, eu via às vezes, em sonhos, meu
amigo monge que me explicava as dificuldades e encaminhava cada vez mais para a
humildade a minha alma lenta a entender. Passei dois longos meses de verão
nessa felicidade perfeita. Eu viajava principalmente através dos bosques e
pelos caminhos do campo: quando chegava a uma aldeia, pedia alguns pães, um
punhado de sal, enchia de água minha cabaça e partia para mais cem quilômetros.
O PEREGRINO É ASSALTADO. Certamente por causa de meus pecados ou para o
progresso de minha vida espiritual, apareceram as tentações quando o verão já
acabava. Eis como: uma noite, quando eu tinha desembocado numa grande estrada,
encontrei-me com dois homens com capacetes de soldados. Eles me pediram
dinheiro. Quando lhes disse que não tinha um tostão, não quiseram acreditar e
gritaram com brutalidade: Tu mentes! Os peregrinos arranjam muito dinheiro! E
um deles acrescentou – Não adianta nada ficar falando com ele! E bateu-me na
cabeça com seu grosso cajado. Eu cai sem sentidos. Não sei quanto tempo fiquei
lá, mas quando voltei a mim, percebi que estava na floresta, perto da estrada.
Eu estava todo rasgado e minha sacola tinha desaparecido. Só restaram pedaços
dos barbantes que a amarravam. Graças a Deus, eles não levaram minha carteira
de identidade que eu guardava dentro do meu gorro para poder mostra-la
rapidamente, quando era necessário. Levantando-me, chorei amargamente, não tanto
por causa das pancadas, mas pelos meus livros – a Bíblia e a minha Filocalia –
que estavam dentro da sacola roubada. Durante o dia todo e a noite toda, chorei
e me lastimei. Onde estaria a minha Bíblia que eu lia desde pequeno e que
trazia sempre comigo? Onde estaria a minha Filocalia da qual tirava
ensinamentos e consolação? Infeliz de mim! Tinha perdido o único tesouro da
minha vida, sem ter podido aproveitar dele até o fim. Seria melhor morrer do
que viver assim, sem alimento espiritual. Nunca poderia recuperar meus livros!
Dois dias inteiros, tanto me afligi que nem podia andar direito. No terceiro
dia, exausto, caí junto de um arbusto e adormeci. Em sonhos, parecia-me que
estava no mosteiro, na cela do monge, meu amigo, e lhe falava, chorando, da minha
tristeza. Depois de me consolar, o monge me disse: Que isso te sirva de lição
de desapego das coisas terrestres para encaminhar-te mais livremente para o
céu. Essa provação te foi mandada para que não caias na volúpia espiritual.
Deus quer que o cristão renuncie à sua vontade própria e a todo apego por ela,
a fim de entregar-se inteiramente à vontade divina. Tudo o que Ele faz é para o
bem e a salvação do homem. “Ele quer que todos sejam salvos (Tm 2,4). Cria
coragem, pois, e acredita que, com a tentação, “o Senhor vos dará os meios de
sair dela e a força para suportá-la” (I Co 10,13). Logo receberás um consolo
maior que tua dor. Com essas palavras, eu acordei e senti em meu corpo forças
novas e na minha alma como que uma aurora e uma tranquilidade nova – Seja feita
a vontade de Deus! Disse. Levantei-me, fiz o sinal da cruz e parti. A oração
agia no meu coração como antes e assim, durante três dias, caminhei calmamente.
De repente, encontro na estrada uma tropa de homens condenados a trabalhos
forçados que eram conduzidos sob escolta. Ao chegar perto deles, reconheci os
dois homens que me tinham roubado; como eles marchavam na primeira coluna,
atirei-me a seus pés, suplicando que me dissessem onde estavam os meus livros.
No começo, fingiram não me reconhecer. Depois, um deles me disse: Se nos deres
alguma coisa, nós te diremos onde estão teus livros. Tens de nos dar um rublo
de prata. Jurei que lhes daria o dinheiro, de qualquer jeito, nem que tivesse
de mendigar para consegui-lo. Tomem, se quiserem, minha carteira de identidade
como penhor. Daí eles me disseram que meus livros estavam nos carros juntamente
com outros objetos que tinham roubado. Como posso obtê-los? Pede ao capitão da
escolta. Fui correndo falar com o capitão e lhe expliquei tudo em detalhes. Na
conversa, ele me perguntou se eu sabia ler a Bíblia. Sei ler, sim, e também sei
escrever, disse; o senhor verá na capa da Bíblia uma inscrição que mostra que
ela me pertence; e eis aqui minha carteira de identidade, com meu nome e
sobrenome. O capitão me disse: Esses salteadores são desertores. Viviam em uma
cabana e roubavam os que passavam. Um cocheiro esperto conseguiu prendê-los
ontem quando tentaram, arrebatar-lhe seu grande trenó. O que mais desejo é
devolver teus livros, se estão ai. Mas tens de vir conosco até a próxima
parada. Fica a quatro quilômetros somente e eu não posso parar todo o comboio
por tua causa. Fui caminhando, feliz, ao lado do cavalo do capitão e conversava
com ele. Vi que se tratava de um homem honesto e bom que já não era muito moço.
Ele me perguntou quem era eu, de onde vinha e para onde ia. Respondi-lhe com
toda a franqueza. Assim chegamos à casa de pouso. Ele foi procurar meus livros
e me devolveu, dizendo: Onde queres ir agora? Já é noite. Fica comigo. Eu
fiquei. Estava tão feliz por ter recuperado meus livros que não sabia com
agradecer a Deus; eu os apertava contra meu peito até me doerem os braços.
Chorava de alegria e meu coração vibrava. Olhando para mim, o capitão disse:
Vejo que gostas de ler a Bíblia! De tão feliz, eu nem podia falar. Só chorava.
Ele continuou: Eu também, meu irmão, leio todos os dias o Evangelho. Assim
falando, abriu seu uniforme e tirou de dentro um pequeno Evangelho de Kiev (2)
com capa de prata. Senta-te aqui e eu te contarei como adquiri esse hábito.
Olá! Tragam-nos um jantar! HISTÓRIA DE CAPITÃO. Sentamos à mesa. O capitão
começou a contar: Desde minha mocidade, eu sempre servi no exército e nunca na
guarnição. Eu conhecia bem o serviço e meus chefes me consideravam um modelo.
Mas era moço e meus amigos também. Mas era moço e meus amigos também. Para
minha desgraça, aprendi a beber e bebia tanto que fiquei doente. Quando não
bebia, era um excelente oficial, mas bastava um copinho de nada e lá ficava eu
seis semanas de cama. Durante muito tempo, me suportaram. Mas, um dia, bêbado,
insultei meu chefe: fui rebaixado e condenado a servir três anos na guarnição.
E se eu não largasse a bebida, pegaria um castigo mais severo ainda. Nessa
situação miserável, fiz de tudo para me controlar, para tratar-me; não consegui
livrar-me do vício e então decidiram mandar-me para o batalhão da disciplina.
Quando me comunicaram a decisão, não sabia mais o que seria de mim. Um dia,
estava sentado na caserna e pensava em tudo isso. Apareceu nesse momento um
monge que pedia esmola para a igreja. Cada um dava o que podia. Chegando perto
de mim, perguntou-me: Por que estás tão triste? Conversei um pouco com ele e
lhe contei minha desgraça. O monge, condoído com minha infelicidade, me disse:
A mesma coisa aconteceu ao meu próprio irmão e escuta como ele saiu dessa: seu
mestre espiritual lhe deu um Evangelho e ordenou-lhe que lesse um capítulo cada
vez que tivesse vontade de Beber. E se a vontade voltasse, ele devia ler o
capítulo seguinte. Meu irmão pôs em prática o conselho e, em pouco tempo, o
vício da bebida o deixou. Já faz quinze anos e nunca mais tomou bebida forte.
Faze tu o mesmo e logo verás o benefício. Eu tenho um Evangelho; se quiseres,
vou busca-lo para ti. A essas palavras, eu lhe disse: Que queres que eu faça de
teu Evangelho, quando nem meus esforços, nem os remédios puderam me corrigir?
Eu falava assim porque nunca tinha lido o Evangelho. Não diga isso, respondeu o
monge. Garanto que aproveitarás. No dia seguinte, com efeito, o monge me trouxe
este Evangelho que está aqui. Eu abri, olhei, li algumas frases e lhe disse:
Não quero saber disso; não compreendo nada. Não estou habituado a ler essa
linguagem eclesiástica. O monge continuou a aconselhar-me, dizendo que as
palavras do Evangelho tinham uma força benfazeja; pois foi o próprio Deus que
falou aquelas palavras que ali estão impressas – Não faz mal que não entendas.
Lê apenas com atenção, um santo já disse: Se não compreendes a palavra de Deus,
os demônios compreendem o que lês e tremem (Tg 2,19). E certamente o desejo de
beber é obra dos demônios. Digo-te ainda isto: João Crisóstomo (347-407)
escreve que até a casa onde está guardado o Evangelho assusta os espíritos das
trevas e se torna um obstáculo a suas intrigas. Eu não me lembro bem –
parece-me que dei alguma coisa ao monge – peguei o seu Evangelho e o enfiei no
baú com minhas coisas. E o esqueci completamente. Algum tempo depois, chegou a
hora de beber. Estava louco de vontade. Abri meu baú para pegar o dinheiro e
correr ao botequim. Meus olhos bateram no Evangelho e me lembrei de tudo o que
tinha dito o monge. Abri e comecei a ler o primeiro capítulo de Mateus. Li até
o fim, sem compreender nada; mas me lembrei das explicações do monge: Não faz
mal se nada compreendes. Lê com atenção. Então disse com meus botões: Pois bem!
Vamos tentar mais um capítulo. E a leitura então me pareceu mais compreensível.
Vejamos o terceiro capítulo, pensei. Nem tinha começado a ler ainda, quando
tocou um sinal: era o toque da noite. Eu não podia mais sair da caserna. Assim,
fiquei sem beber. No dia seguinte, quando ia sair para buscar aguardente, disse
comigo mesmo: E se eu lesse um capítulo do Evangelho? Vamos ver. Eu o li e não
arredei o pé. Uma outra vez, senti vontade de tomar bebida alcoólica, mas
comecei a ler e me senti aliviado. Fiquei muito reconfortado e assim, cada vez
que me dava vontade de beber, eu atacava um capítulo do Evangelho. Quanto mais
o tempo passava, mais certo ia dando. Quando terminei os quatro Evangelhos, meu
vício pela bebida tinha desaparecido completamente; eu me tornara de gelo a
esse respeito. E veja só: faz exatamente vinte anos que nunca mais tomei
bebidas fortes. Todo mundo se admirou com a minha mudança. Depois de três anos,
fui readmitido no corpo de oficiais, fui promovido e cheguei a capitão. Casei-me
com uma mulher excelente. Juntamos algumas posses e agora, com a graça de Deus,
estamos tem. Ajudamos aos pobres como podemos e acolhemos os peregrinos. Tenho
um filho que já é oficial, é um rapaz ótimo. Pois bem, saibas tu que, depois de
minha cura, prometi a mim mesmo que, durante minha vida inteira, eu leria cada
dia um dos quatro Evangelhos inteiro, sem admitir impedimento algum. É assim
que faço. Quando tenho trabalho demais e fico muito cansado, eu me deito e peço
à minha mulher, ou ao meu filho, que leiam o Evangelho para mim; assim cumpro a
regra. Em testemunho de gratidão e para a glória de Deus, mandei recobrir de
prata este Evangelho eu o guardo sempre no meu peito. Eu escutava com interesse
a história do capitão e lhe disse: Conheci um caso semelhante: em nossa aldeia,
na fábrica, existia um excelente operário, que conhecia muito bem seu ofício.
Mas, por desgraça, ele vivia sempre bêbado. Um homem piedoso aconselhou-o que,
cada vez que tivesse vontade de beber aguardente, recitasse trinta e três
orações de Jesus em honra da Santíssima Trindade e dos anos de vida terrestre
de Jesus Cristo. Foi o que ele fez e logo deixou de beber. E isso não é tudo.
Três anos depois, entrou em um mosteiro. E o que será que vale mais – perguntou
o capitão – a oração de Jesus ou o Evangelho? É a mesma coisa, respondi. O
Evangelho é como a oração de Jesus, pois o nome divino de Jesus Cristo traz em
si todas as verdades evangélicas. Os Padres dizem que a oração de Jesus é o
resumo de todo o Evangelho. Em seguida, nós dois rezamos as orações; o capitão
começou a ler desde o início do Evangelho de São Marcos e eu o escutei fazendo
a oração do coração. As duas horas da manhã, ele terminou a leitura e nós fomos
dormir. Conforme meu costume, levantei-me cedo; todos dormiam; apenas raiou o
dia, eu mergulhei na leitura da minha querida Filocailia. Com que alegria eu a
abri! Parecia-me que tinha reencontrado meu pai depois de longa ausência ou um
amigo, ressuscitado dos mortos. Abracei meu livro e agradeci a Deus o tê-lo de
volta. Comecei a ler Teolepto de Filadèlfia (3) na segunda parte da Filocália.
Fiquei espantado ao ver que ele se propõe dedicar-se, ao mesmo tempo, a três
atividades diferentes – Sentado à mesa, diz ele, dá ao teu corpo o alimento, ao
teu espírito a leitura, e ao teu coração a oração. Entretanto, a lembrança da
noite passada tão proveitosa me explicava praticamente esse pensamento. Foi
então que descobri a diferença entre o coração e o espírito. Quando o capitão
se levantou, fui agradecer-lhe a sua bondade e me despedir. Ele me serviu chá,
me deu um rublo de prata e então nos separamos. Retomei meu caminho muito
feliz. Ao cabo de um quilômetro, eu me lembrei que tinha prometido aos soldados
um rublo – que eu agora possuía. Seria preciso entregar-lhes a moeda, ou não?
De um lado, pensava eu, eles te bateram e te roubaram e como estão presos, nada
podem fazer contra ti. Mas, de outro lado, lembra-te do que diz a Bíblia: “Se
teu inimigo tiver fonte, dá-lhe de comer (Rm 12,20). E o próprio Jesus Cristo
diz: “Amai os vossos inimigos (Mt 5,44) e ainda “Se alguém quer tomar-te a
túnica, deixa-lhe também a veste (Mt 5,40). Assim persuadido, voltei atrás e
cheguei à casa de pouso no momento em que o comboio estava se formando para
partir: corri até os dois malfeitores e lhes entreguei meu rublo, dizendo:
Rezem e façam penitências; Jesus Cristo é amigo dos homens. Ele não os
abandonará! Com essas palavras, afastei-me e retomei a estrada em outra
direção. Referência do texto: (1). Santo
Inácio de Irkutsk – estudou em Kiev, lecionou na Academia de Moscou - Rússia foi monge
e o primeiro bispo de Irkutsk em 1727.
Seu zelo, sua paciência e sua caridade lhe valeram a reputação de santidade.
Desde 1805, suas relíquias são veneradas pelos fiéis. (2). Evangelho de Kiev –
um livro editado pelo célebre Mosteiro de Kiev na Rússia. (3). Teolepto,
metropolita de Filadélfia – viveu no fim do século XIII. Acham-se seus escritos
na Patrologie grecque de Jacques Paul Migne (1800-1875). Livro Relato de Um
Peregrino Russo. Abraço. Davi.
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