Judaísmo. A UNICIDADE DE D’US. “E saberás hoje e
considerarás no teu coração, que o Eterno, Ele é D’us, em cima, nos céus, e
embaixo, na Terra; não há nada além Dele. (Deuteronômio 4:39). O estudo sobre D'us
e Sua Unicidade constitui a matriz do judaísmo. É a essência da Cabalá, que,
por sua vez, é a alma da Torá e o portão de entrada a um entendimento mais
profundo da lei e filosofia judaica, sua crença e prática. Nosso propósito, nesta análise, é
fornecer uma introdução e um convite a aprofundar o estudo de um tema sem fim
e, por vezes, paradoxal, e as ideias abaixo apresentadas baseiam-se na Cabalá
de Rabi Itzhak Luria, o Arizal (1534-1572), e nos ensinamentos do Rabi Shneur
Zalman de Liadi (1745-1813), o Baal HaTanya, autor do Tanya. Adentramos no estudo sobre D'us e sua
Unicidade com a consciência de que somos meras criaturas finitas e falíveis
tentando discutir o Infinito. O pouco que conhecemos acerca de D'us se deve ao
fato de sermos, em parte, a Sua Essência. Falar de D'us é falar de um Ser
indefinível e incompreensível, que está além de qualquer medida ou definição.
Comparado a D'us, que transcende a sabedoria e o conhecimento, até o mais sábio
dos homens nada mais é do que um tolo. E, portanto, qualquer exemplo, metáfora
ou analogia que tente entender D'us é, inevitavelmente, imprecisa. Na melhor
das hipóteses, pode-se pretender alcançar um pingo da verdade. Um corolário disso é o fato de D'us
ser absolutamente singular. Nada nem ninguém a Ele se podem comparar. Há uma linha
muito bem definida que O distingue de toda a Sua criação. Temos que ter isto
sempre presente em nossa mente, pois, como veremos adiante, apesar de ser o
mundo todo divino, o Criador e a criação não representam uma unidade. Nos
livros sagrados, inclusive na Hagadá de Pessach, D'us é, às vezes, chamado de
HaMakom - O Lugar. A razão para este nome, como ensina o Midrash, é que D'us é
O Lugar do mundo, mas o mundo não é o Seu Lugar. Isto significa que a criação
reside dentro do Criador, mas D'us não é definido nem dependente do mundo, em
instância alguma. Nem Ele nem o Seu Nome podem ser associados a ser algum, vivo
ou inanimado; pois isto equivaleria à idolatria. D'us não pode ser confundido
com Seus Atributos - as Sefirot. Ele não é a Natureza, nem tampouco alguma
forma de anjo ou ser humano onipotente. Até o mais espiritual dos homens, o
maior dos sábios, o mais poderoso milagreiro – mesmo Moshé ou o Mashiach, seja
este último quem for – são, nas palavras do Tanya, "ingênuos diante de Sua
abençoada Presença". Até mesmo um verdadeiro Tzadik, que tem condições de
reverter os decretos divinos, nada mais é do que um instrumento de D'us – um
canal através do qual flui a misericórdia e a plenitude Divina. Judaísmo é monoteísmo puro. É,
também, a busca pela Verdade. Para o judeu, a existência e unicidade de D'us
não são mera questão de fé – são a base de toda a Realidade. São verdades mais
preciosas do que a própria vida. A contínua criação do mundo. Nós, seres humanos,
temos a impressão errônea de que somos criadores. Na verdade, nada criamos;
simplesmente moldamos ou transformamos algo em outro algo. Um escultor, por
exemplo, não cria sua escultura – ele a modela, com gesso ou outro material.
Mesmo um escritor que componha uma história original necessita da matéria
física, ou seja, papel e tinta, para gravar seu trabalho. E apenas pelo fato de
ter a matéria física, o trabalho do escritor permanece após ser finalizado. Tudo na criação humana é iniciado a
partir de um original. Há uma única exceção, o pensamento. Em nossa mente,
temos o poder da imaginação, criando assim coisas ou pessoas ou situações
inexistentes anteriormente e sem substância física. As crianças, por exemplo,
costumam criar na mente amigos imaginários – chegando, mesmo, a lhes atribuir
nomes e com eles "conversar". Contrastando com outras criações do
homem, o pensamento, criado a partir do nada, jamais se torna independente de
seu criador. Um conto publicado pode sobreviver a seu autor, mas se um escritor
apenas criar o conto em sua imaginação, este deixará de existir no instante em
que ele mudar de pensamento. E se ele se esquecer do mesmo, jamais voltando a
pensar no assunto, tal história jamais terá existido. Antes da criação do mundo, não havia
nada além de D'us. O Criador não modelou o universo a partir de um original,
pré-existente, já que não existia absolutamente nada. Como D'us criou tudo a
partir do nada, a criação não pode ser comparada à modelagem de uma estátua ou
à escrita de uma conto – são criados a partir de uma matéria física, mas apenas
aos pensamentos da mente humana, criados a partir do nada. Em sua essência, é
isto o que é o nosso universo: o conjunto dos pensamentos de D'us. Falando por metáforas, Ele pensou e
tudo se criou. D'us continua a pensar sobre sua criação e está continua a
existir. E como a criação é a mudança do nada em algo, há que haver alguma
força que garanta que tudo não volte à forma original de inexistência. Em
termos científicos, poder-se-ia dizer que a criação é a força incessante que se
opõe à entropia. Para que o mundo continue a existir, D'us precisa continuar
com o pensamento no mundo – a dizer, Ele precisa estar constantemente
recriando-o, sem parar; de outra forma, tudo reverteria ao nada, onde tudo se
originou. O ato da criação,
portanto, não foi um evento único, de uma única vez; é um evento contínuo e
incessante. Esta é a razão pela qual todas as manhãs, em nossas orações,
louvamos D'us por ser Aquele "que, em sua bondade, renova dia após dia,
continuamente, a obra da criação". Contudo, como tudo está constantemente
sendo criado do nada, o mundo pode, a qualquer momento, reverter ao nada, seu
estado inicial. D'us não precisa inundar novamente o mundo para se livrar da
humanidade. Basta que Ele pare de pensar no homem. À luz disto, o Talmud ensina
que se em um momento qualquer, em algum ponto da Terra, não houver ao menos um
judeu estudando a Torá, D'us perderia o interesse na criação e todo o universo
súbita e instantaneamente deixaria de existir. Criação contínua significa que D'us está
constantemente pensando em tudo e em todos; nada, portanto, escapando ao Seu
escrutínio. A existência de qualquer ser – um micróbio, um ser humano ou uma
galáxia - está sob Seu constante domínio. Nada pode existir ou ocorrer sem Sua
Presença. Como está escrito na Torá, "pois que Ele é nossa própria
vida" (Deut., 30: 20). A criação constante nos ensina que Ele não é apenas
Quem dá a vida, mas Ele é a nossa vida. É fundamental ter isso bem claro para
se entender a unicidade de D'us. Há quem acredite que D'us criou o mundo e o afastou
de Si; é a teoria filosófica intitulada Deísmo. Outros acreditam que D'us
apenas intervém no mundo esporadicamente, através da realização de um milagre.
Tais noções – a de que existe um mundo e de que há um D'us e ambos interagem ou
não interagem – são falsas. O mundo não é uma realidade absoluta; somente D'us
o é. Pois, assim como os pensamentos residem na mente de uma pessoa, o mundo
reside em D'us. E é por isso que D'us conhece tudo o que transpira no universo
– não porque Ele invade nossa mente e nosso domínio individual – mas porque nós
residimos dentro d'Ele. Assim sendo, nada do que pensamos ou fazemos Lhe é
desconhecido. Afirmar que D'us não percebe ou não se importa se a pessoa diz a
bênção antes de comer ou se a pessoa destina uma doação para caridade, é, no
mínimo, uma leviandade. Na Torá que Ele
compôs, D'us descreve Seu ato de criação como um produto de Sua fala, dos Dez
Pronunciamentos Divinos. Esta metáfora da fala explica a criação na forma da
Revelação Divina. Assim como as palavras de uma pessoa são reveladoras, a
"fala" Divina implica que o mundo emanou d'Ele e que a criação
realmente aconteceu. Mas tal metáfora tem limitações - como o têm todas as
demais usadas para descrever D'us e Seus Atos - pois quando uma pessoa fala, as
palavras emanam de seu íntimo. Há um orador e um discurso. Este, uma vez
pronunciado, deixa o domínio do orador, não podendo ser revertido. Mas, em se
tratando de D'us, não há nada fora de Seu domínio. Como D'us é Infinito, assim
como tudo o que existe dentro d'Ele, Sua fala, contrariamente à do homem, nunca
o abandona. Neste sentido, é mais preciso comparar a criação Divina do mundo
aos pensamentos de uma pessoa que nunca são exteriorizados. Resumindo, a
Criação tem elementos que são comparáveis à fala e ao pensamento do homem. Como
a fala, a Criação é uma forma de revelação e expressão; como o pensamento,
nunca abandona o domínio de um ser. Isto significa que os Dez Pronunciamentos
Divinos resultaram na criação do universo, mas isso não é, de forma alguma,
apartado ou independente de D'us. A Criação, através do ocultamento. A luz de uma vela tem maior
significado à noite; mas se torna menos relevante, apesar de não mudar sua
luminosidade, em plena luz do dia. E, se de alguma maneira, a vela fosse
colocada dentro do sol, sua luz seria imediatamente anulada pela potente luz do
sol. A luz de uma vela dentro do sol somente teria relevância se o sol se
tornasse escuro. Apenas ocultando a luz do sol, a luz da vela seria
perceptível. Esta analogia ajuda
a ilustrar que a Criação, que é finita e reside dentro do Infinito, na verdade
é anulada dentro de D'us. Esta analogia fica aquém da realidade, pois uma vela,
por menor que seja, ainda é uma fração infinitesimal do sol. Comparado com o
Infinito, qualquer número, por maior que seja, é insignificante. Ademais, por
definição, o infinito não pode ser decomposto em partes, e, portanto, não
permite a existência de mais nada. Como discutimos acima, não há espaço fora de
D'us; e, como o infinito não faz espaço para nada mais, como pode o mundo
existir? A Cabalá revela que o mundo foi criado não apenas pela fala Divina,
mas pelo Tzimtzum. Comumente traduzido por Divina Constrição, Tzimtzum deve ser
entendido como Divino Ocultamento: D'us ocultou Sua Luz Infinita para que o
mundo não parecesse estar sendo anulado dentro d'Ele. Nós, portanto, vemos o
mundo, mas não vemos D'us. Referindo-se ao ocultamento de D'us, o Zohar fala de uma "Lâmpada
da Escuridão" que oculta a Luz Infinita para fazer crer que a Criação é
separada de seu Criador. Como a presença do Infinito e o finito – D'us e o
mundo – estão sempre em oposição, sua coexistência é uma contradição. O mundo
somente pode existir quando D'us Se esconde. Se a Luz Infinita fosse revelada,
instantaneamente Ela consumiria e anularia tudo o que existe. A existência do universo envolve dois
processos concomitantes: a contínua criação Divina, pois, do contrário, o mundo
reverteria ao vazio, ao nada; e o ocultamento de D'us, pois, do contrário, o
mundo seria totalmente anulado dentro de Sua Luz Infinita. No entanto, o
Tzimtzum apenas explica como podemos perceber o mundo, mas não como o mundo
pode coexistir com o Infinito. O mundo é um produto da Revelação Divina e do
Ocultamento Divino. O fator comum a ambos os mecanismos é o Divino, não deixando
espaço para nada mais. Como pode um mundo finito ser criado por D'us, oscilando
entre a luz e a escuridão? Revelado ou oculto, é tudo Ele. O Baal HaTanya
elucida este paradoxo com a seguinte analogia: alguém que fique fora do sol
pode diferenciar entre o próprio sol e os raios de luz que emite. De fato, as
pesadas nuvens arruinarão um dia a ar livre apesar do sol nunca deixar de
brilhar. Mas, a luz solar dentro do sol é vinculada à sua origem. Dentro do
sol, não há distinção entre o sol e a luz solar; há apenas o sol. De forma
similar, como não há nada fora de D'us, o mundo nem pode ser comparado a um
raio de sol que, apesar de ser completamente dependente do sol, é reconhecido
como uma entidade em si só. Pelo contrário, o universo todo é anulado dentro de
D'us assim como o raio de sol o é dentro do sol. Como escreve o Baal HaTanya,
este é o significado da verdadeira unicidade de D'us: o fato de que tudo é
nada, comparado a Ele, pois tudo é verdadeiramente anulado dentro de Sua
Existência. A unicidade de D'us
não significa que não haja outros deuses no mundo. Significa que não há nada
além d'Ele. Pois, ainda que nosso mundo realmente exista, assim como a luz
existe dentro do sol, esse mundo é completamente anulado dentro de sua Origem:
não possui existência independente ou absoluta. O ato de idolatria - quer se
adore uma estrela, uma estátua ou um homem qualquer, mesmo um Tzadik - é
abandonar tudo pelo nada, pois que apesar de o mundo ser a fala Divina, o mundo
não é D'us. Prova disto é que o mundo está constantemente sendo criado do nada
e poderia reverter ao vazio do nada - sem efetuar qualquer mudança em D'us. Segundo a Cabalá, o ponto de partida
da idolatria não é a negação de D'us nem a crença em outros deuses, mas é a
assunção de qualquer coisa que seja independente d'Ele. O epítome da idolatria
foi personificado pelo Faraó do Egito - o vilão arrogante que afirmou ser um
deus, auto criado. Não é de surpreender que D'us tenha escolhido Moshé, cuja
essência é a antítese da idolatria, para enfrentar e vencer o Faraó. Pois
Moshé, apesar de ser o maior de todos os profetas, foi também o homem mais
humilde que já existiu: ele personificou a verdadeira santidade, que significa
a auto anulação diante do Divino. Pode-se conjeturar que a humildade de Moshé
não era simplesmente produto do tipo de pessoa que era, mas também do que ele
vivenciou. Chegando tão próximo a D'us, como a nenhum outro ser humano foi dado
chegar, ele pôde perceber, melhor do que ninguém, que tudo e todos nada são
quando comparados ao Criador. Moshé pergunta, pois, retoricamente: "E que
somos nós?" (Êxodo, 16:7). A resposta é que comparados a D'us, nada somos. O paradoxo da Criação - de como um
mundo finito pode existir quando, na verdade, nada existe além de D'us - é
transmitida pela seguinte história. Um rabino chassid disse, certa vez, a um
filósofo, que "pessoas como você pensam em D'us o tempo todo, enquanto os
chassidim apenas pensam em si próprios". Percebendo um sorriso no rosto do
filósofo, o rabino disse, "não o digo como elogio", explicando a
seguir: "Pessoas como você têm certeza de sua própria existência. E, por
isso, passam os dias pensando em D'us. 'Será que Ele existe? E que tipo de D'us
é Ele?' Por outro lado, nós, os chassidim, sabemos que D'us existe. Portanto,
passamos o dia pensando se nós próprios existimos. E em como é possível esta
nossa existência". Corre uma história
sobre assunto semelhante acerca de um grande mestre do Chassidismo, Rabi
Aharon, de Karlin (1802-1872). Grande líder e erudito, além de poderoso
milagreiro, ele foi um dos principais alunos do Maguid de Mezeritch. Certa vez
lhe perguntaram o que havia aprendido enquanto estudara em Mezeritch.
"Nada", respondeu. "Nada?", repetiram, incrédulos.
"Nada", reiterou. "Em Mezeritch, aprendi que nada sou".
Estamos falando de um homem verdadeiramente extraordinário - um Tzadik, um
sábio, um fazedor de milagres e maravilhas - cuja sabedoria e conhecimentos
apenas o tornavam mais humilde pelo fato de o fazerem constatar que o mundo
inteiro é, de fato, anulado diante do Criador. No entanto, essa anulação perante D'us não
significa que o mundo não exista. Fosse este o caso, não haveria paradoxo algum
na Criação. Diferentemente do misticismo oriental, o judaísmo não afirma que o
mundo é uma ilusão. O mundo é uma realidade. Se a vida fosse uma ilusão, não
haveria diferença entre o bem e o mal, o certo e o errado, uma mitzvá e um
pecado. Se, por exemplo, o alimento que ingerimos fosse uma ilusão dos
sentidos, que diferença faria comer matzá ou chametz, em Pessach? Portanto,
negar a realidade do universo não soluciona o paradoxo da Criação. O propósito do
ocultamento. Buscando algum sentido para o paradoxo da Criação, tomemos emprestada
uma analogia do campo da Física. A olho nu, a matéria parece ser sólida e
inerte. Mas um objeto como uma pedra é composto do movimento constante de
partículas cuja solidez física é questionável. Os elétrons são pontos
concentrados de ondas de energia. Ao mencionar isto, quer-se defender o fato de
que mesmo dentro do reino do mundo físico, nem tudo é o que parece. Percebemos
apenas os sólidos tangíveis porque nossa percepção é limitada. Contudo,
justamente esta falta de percepção é o que nos permite funcionar. Não teríamos
condições de viver efetivamente se apenas víssemos partículas atômicas. Esta analogia nos ajuda a entender
que pode haver mais de um nível de percepção. O mesmo é válido para a
Realidade, como um todo. Por um lado, tudo no universo é produto da fala
Divina. Nada há além de D'us; somente Ele existe e o mundo é anulado dentro
d'Ele. Por outro, o mundo não é uma ilusão: matzá é matzá; chametz é chametz e
o ser humano é um ser humano. Quem estuda Cabalá e não consegue aceitar este
paradoxo ou perde a razão ou perde a fé. Esta é uma das razões porque o estudo
do misticismo judaico foi proscrito durante tanto tempo. A Cabalá aborda o paradoxo da criação
através da revelação de que há dois níveis de unicidade: Unicidade Superior,
Yichudá Ila'á, que é a perspectiva do Criador, e a Unicidade Inferior, Yichudá
Tata'á, que é a perspectiva da criação. A Superior significa que, sob a
perspectiva Divina, o mundo é totalmente anulado dentro d'Ele, assim como a luz
do sol o é dentro do sol. A Unicidade Inferior significa que nós vemos um mundo
que aparenta ser separado de seu Criador, assim como alguém que fica fora do
sol percebe os raios de luz totalmente dependentes do astro-rei, mas não
anulados dentro dele. Dois níveis de
Unicidade Divina significam que o relacionamento entre D'us e o universo não é
idêntico nas duas direções. D'us é totalmente independente do mundo, ao passo
que o mundo é totalmente dependente d'Ele. O Criador tudo vê, mas nenhuma de
suas criaturas, nem mesmo os anjos, podem vê-Lo diretamente. Isto significa que
o ocultamento Divino é a escuridão para nós, não para D'us. A partir de Seu
ponto de vista, não há barreira alguma entre Ele e sua criação – Ele nos vê
como se estivéssemos dentro d'Ele. Mas, a partir de nosso ponto de vista,
parece haver uma linha divisória entre D'us e o mundo. Podemos comparar esta situação a um
espelho de um só lado. De um deles, é um espelho, enquanto que do outro é
totalmente transparente. Nós, que olhamos do lado espelhado, conseguimos ver
nossa imagem refletida e, por essa razão, aceitamos a nossa existência como um
fato tácito e natural. Mas perante D'us, tudo é como o vidro translúcido, que
nada encobre nem oculta, não havendo nenhuma barreira a nos separar d'Ele. Isto
explica o fato de que D'us ouve todas as preces. Como o Ocultamento Divino não
é real - mas meramente uma falta de percepção de nossa parte - não há separação
real entre o Criador e toda a criação. D'us percebe tudo, em todos os níveis,
seja o desejo não expresso de uma criança ou o canto de um anjo. Ele está
sempre infinitamente próximo, ainda que não O possamos ver. Na corrente dos mundos espirituais, o
nosso é aquele que mais oculta a Presença Divina. Na liturgia judaica e nos
livros sagrados repete-se, muito apropriadamente, que D'us está nos Céus - não
porque Ele não esteja em lugar algum - mas porque nos mundos espirituais D'us é
menos oculto. Nós, contudo, vivemos em um mundo que, como diz o Zohar, aparenta
ser "um palácio sem governante". E a razão para tal é que se D'us não
Se ocultasse, nosso mundo seria obliterado por Sua Luz Infinita. O Tzimtzum,
portanto, é um elemento essencial da criação. Mais do que isso, é o que nos
outorga o livre arbítrio. Se sentíssemos a Presença de D'us pairando sobre nós
e nos envolvendo, nenhum de nós conseguiria fazer nada de errado e o conceito
do livre arbítrio perderia todo o seu significado. Assim é que está escrito que nenhum
ser "há de Me ver e continuar vivo". Mesmo os grandes Tzadikim e os
mais sábios entre nossos sábios não podem ver o Divino, diretamente. Nem Moshé,
a alma mais elevada que já existiu, pôde ser totalmente anulado diante da Essência
Divina. Pois aquele que apenas vê a Divindade perde seu livre arbítrio e não
mais pode participar deste mundo. Diz-se que em seus últimos momentos de vida, o Baal
HaTanya (1745-1813), que se abrigava em uma cabana, chamou seu neto e lhe
pediu: "O que você vê?" O neto, que viria a ser um grande Rebe,
respondeu: "Vejo paredes de madeira e um teto". O Baal HaTanya
respondeu: "Pois eu, não. Neste momento, só vejo a Divindade". O
Maguid de Mezeritch dizia que essa capacidade - de deixar de ver o mundo para apenas
enxergar a fala Divina - é investida em um Tzadik três dias antes de seu
falecimento. É o sinal de que seus dias neste mundo se esgotaram. No que tange aos seres humanos, a
anulação perante o Divino não deve ser interpretada como forma de repúdio ao
mundo ou à própria existência. O nível Inferior da Unicidade é a nossa
realidade e esta realidade não permite que se trate o mundo, os demais seres ou
a própria vida como uma ilusão inconsequente. O nível Inferior de Unicidade foi
criado por D'us com um propósito - para que tivéssemos como interagir com Ele.
É a perspectiva de ser independente - de não conseguir ver que verdadeiramente
nada existe além d'Ele – o que nos dá o livre arbítrio de nos agarrarmos a D'us
ou de negá-Lo ou de nos rebelarmos contra Ele. Assim sendo, abandonar o mundo a
uma mera ilusão é frustrar o magnífico plano da Criação. O que a anulação diante do Divino
requer - e é bem mais do que a maioria das pessoas alcança no curso de sua vida
- é o sentimento genuíno de humildade e repúdio a auto ego. O mais próximo ao
"Unio Mystica” – total obliteração de si próprio - que há, neste mundo, é
o estudo da Torá e o cumprimento de Seus mandamentos - através dos quais a
pessoa anula sua própria vontade frente à Vontade Divina. O estudo da Torá, em
particular, revela o Divino, pois como ensina o Zohar, é na Torá que D'us
oculta Sua Luz Infinita. O mestre chassid,
Rabi Nachman de Bratslav, ensinava que o paradoxo da criação não será
plenamente entendido até o fim dos dias. Mas, apesar de certamente ser melhor
conhecer esse paradoxo do que manter conceitos errôneos sobre D'us e Sua
Unicidade, nosso propósito neste trabalho não foi apresentar um enigma e
deixá-lo em suspenso. Uma resposta possível é que o mundo é algo que reside
entre a não-existência e a existência - e que está no processo de se tornar uma
realidade. Temos razão para crer nisto porque o Talmud ensina que, no futuro,
D'us Se revelará abertamente, mas a humanidade não será obliterada. O Baal
HaTanya explica que a Torá que estudamos e os mandamentos que cumprimos são uma
blindagem para este mundo que estamos construindo, para que, um dia, este mundo
possa suportar, sem ser consumido, uma Revelação Divina explícita. E, à
pergunta de por que o Ocultamento Divino deve chegar ao fim, a resposta é que
tudo o que há de errado, no mundo, somente existe porque D'us Se oculta; as
pessoas não vêm D'us e costumam usar o livre arbítrio para fazer o mal. Portanto, por um lado, o mundo não
pode ser aperfeiçoado até que a Luz Infinita seja revelada. Mas, por outro,
essa Luz tem que permanecer oculta até que o mundo esteja pronto para
suportá-la. Isto explica por que a perfeição do mundo é dependente de nossos
atos: pois, cada vez que uma pessoa estuda a Torá ou cumpre a Vontade Divina,
esta pessoa está transformando este mundo envolto em escuridão em uma Morada de
D's, um lugar onde um dia Ele possa livremente revelar Sua Luz Infinita. O
Talmud ensina que quando esse dia vier a Presença Divina será clara para todos
nós. E nosso povo, que viveu por Ele e tanto sofreu por se recusar a negar a
Sua Unicidade, proclamará: "Este é nosso D'us; esperamos por Ele e Ele nos
salvou. Este é o Eterno por Quem ansiamos, exultemos e rejubilemos em Sua
salvação" (Isaías, 25:9). www.morasha.com.br.
Abraço. Davi.
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