sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

A NATUREZA DO CONFLITO.



Teosofia. Texto de Jiddu Krshnamurti (1895-1986). O problema da comunicação entre pessoas apresenta sempre grandes dificuldades. Comungar de assuntos sérios requer, assim parece, uma atenção de especial natureza, uma vez que, em geral, acontece que não estamos vendo com clareza, e o outro não está realmente prestando atenção ou escutando. Está ocupado com seus próprios problemas, suas próprias ânsias, seus próprios temores. Dessa maneira, a comunicação torna-se extremamente penosa, dificultosa. A participação numa palestra desta natureza requer que ambas as partes – orador e ouvinte – encontrem-se num estado de comunhão. Devemos ser capazes dessa comunhão, isto é, encontrar-nos, de parte a parte, num estado de intensa atenção, ao mesmo tempo e no mesmo nível. Se o orador deseja transmitir algo – como vai fazê-lo – que exige discernimento – não mera atenção ou rejeição no nível verbal, porém profunda e íntima penetração integral – vós e o orador deveis encontrar-vos no mesmo nível e comungar, ao mesmo tempo, com a mesma intensidade. Podeis ouvir as palavras e interpretá-las de acordo com vossa fantasia, conforme vossa compreensão de uma dada língua; mas o encontrar-se realmente no estado de comunhão requer que vós e o orador sintais profundamente, e, concomitantemente, estejais em comunhão de um modo intenso, num nível que exija atenção completa; de outro modo, não há comunhão. Se, alguma vez, já estivestes em comunhão com vós mesmos – não me refiro ao meditar, porém ao estar em comunhão, em comunicação, em contato, em intimidade com vossa própria mente, vosso coração – sabereis que o estado de comunhão requer uma atenção de especial natureza. A pessoa deve ser capaz de seguir com presteza, de ver rapidamente o significado da palavra e, bem assim, a significação jacente além da palavra. Só há possibilidade de comunhão ou comunicação, quando ambas as partes compreendem a natureza e o significado das palavras e, ainda, o alcance da palavra. Querer-me parecer, principalmente, quando se trata de assuntos que exigem muito discernimento, sutileza de pensamento, rápida percepção, que é necessário, não só que estejais em comunhão com vós próprios, mas também em comunhão com o orador. Assim, vossa tarefa, como ouvinte, é duplamente difícil, porque tendes, não só de compreender e estar em comunhão convosco, mas, ao mesmo tempo, tendes de ouvir as palavras e lhes conferir especial importância, sem nelas vos deterdes. Deveis, também, escutar com zelo, com uma intensidade que não perverta, que não traduza, que não compare, deveis encontrar-vos, efetivamente, num estado de intensa comunhão com vós mesmos e também com o orador. Isso requer muito trabalho, é uma tarefa tremenda. Não estamos aqui a entreter-nos friamente sobre assuntos sem importância – sobre política ou alguma reforma social. Estamos falando sobre algo que atinge o ente humano na própria essência de seu existir. Dissemos, na palestra anterior, que vamos penetrar até a raiz das coisas, indagar, investigar a substância mesma de nosso ser. E isso requer, não só que estejais cônscios do estado de vossa própria mente e do vosso coração, mas também que, a um só tempo, no mesmo nível, e com a mesma intensidade, estejais escutando o que se diz. Assim, permiti-me assinalar que vossa tarefa é muito mais penosa. Não estais apenas ouvindo indiferentemente, e concordando ou discordando. Estamos em verdade investigando profundamente a estrutura de nossa mente e de nosso ser. E, como o estais fazendo em cooperação com o orador, com ele deveis estar em comunhão, tanto quanto com vós próprios. Do contrário, cessa imediatamente toda a comunhão, perde-se o contato entre o orador e vós, ouvintes. Espero, pois, que estejais vendo a tarefa que vos compete. Eu não estou determinando, vós a estais determinando. Essa é a única maneira de estar em comunhão – com a natureza, com uma nuvem, com a beleza de um pôr do sol, ou com vossa esposa e vossos filhos, vosso vizinho, vosso patrão. Deveis achar-vos naquele estado de atenção em que há relação direta entre nós, quanto ao que pensamos, dizemos, escutamos. Vede, por favor, que isso é muito importante, pois, de outra maneira, não se pode estabelecer um estado de relação entre vós e o orador. Se isso está bem claro, não só interiormente, mas também exteriormente, se vossa mente não se acha divagando, ou cansada, ou pensando em alguma coisa, se estais escutando – não interpretando, não comparando, não avaliando, porém escutando realmente – deveis ver que estamos fazendo juntos uma viagem às profundezas de nosso ser, onde estamos revelando todas as tortuosidades, todas as dificuldades, todos os problemas existentes em nossa mente e nosso coração. Nesta tarde, desejo falar sobre a NATUREZA DO CONFLITO e sobre a possibilidade de nos libertamos totalmente de qualquer espécie de CONFLITO. Por CONFLITO  entendo a batalha perpétua, a inquietação, a ansiedade, o desespero, a angústia, os temores, os atritos, a luta existente interior e exteriormente, o sentimento de insegurança, a busca, por aqueles que se sentem inseguros, de um estado isento de perturbações, um estado de permanência. E temos também o conflito entre o consciente e o inconsciente, o CONFLITO dos diferentes desejos, o CONFLITO da ambição, o CONFLITO do preenchimento, o CONFLITO da frustração, o CONFLITO que se torna maior quando temos o desejo de descobrir o verdadeiro. Porque, vivendo neste mundo e procurando ajustar-nos ao mundo e à ideia que estabelecemos como padrão, como ideal, estamos tornando maior o nosso CONFLITO. O orador vai examinar bem esta questão e vós ides escutar. Contudo não estareis apenas escutando, aceitando ou rejeitando o que está sendo dito por uma entidade exterior a vós, por um homem sentado neste palco. Estareis escutando a vós mesmos, com ouvidos mentais, ouvidos capazes de escutar cada movimento de pensamento e de sentimento, com clareza, com precisão, com razão e equilíbrio. Em geral buscamos alguma espécie de segurança, porque nossa vida é um CONFLITO infindável, desde o momento em que nascemos até o momento de morrermos. A fastidiosa monotonia da vida e a ansiedade da vida; o desespero da existência; desejar ser amado e não ser amado; a superficialidade, a vulgaridade, a agitação da existência diária – eis nossa vida. Nossa vida, há perigo e apreensão; nada é certo; há sempre a incerteza do amanhã. Assim, consciente ou inconscientemente, andamos numa perene busca de segurança, desejando encontrar um estado permanente, primeiro na plano psicólogo e, depois, no exterior; sempre, em primeiro lugar, o plano psicológico, e não o exterior. Desejais um estado permanente em que não sejais perturbados por coisa alguma, por nenhum medo, nenhuma ansiedade, nenhum sentimento de incerteza, nenhum sentimento de culpa. É o que deseja a maioria de nós. É o que busca a maioria de nós, tanto exteriormente como interiormente. Exteriormente, desejamos ter ótimos empregos; somos educados, tecnologicamente, para funcionarmos de forma mecânica num certo plano burocrático ou outro qualquer. E, em nosso interior, anelamos, a paz, o sentimento de certeza, de permanência. Em todas as relações, em todas as nossas ações, quer estejamos agindo correta, quer incorretamente, queremos estar em segurança. Queremos que se nos diga: isto é certo, isto é errado, não façais isso, fazei aquilo. Desejamos seguir um padrão, porque é a maneira mais fácil de viver – quer se trate de um padrão estabelecido por vós mesmos, quer de um padrão estabelecido por outros, pela sociedade, pelo guru (mestre) ou por vossos próprios ideais e impressões. Existe, pois, essa constante exigência de segurança exterior, bem como de segurança interior. A segurança interior torna-se muito mais complicado quando existe a autoridade de um ideia. Por ideia entendemos o ideal, o padrão, o exemplo, a fórmula, o herói. É essa a permanência pela qual vivemos lutando. Por essa razão, há sempre uma distância entre o que é e o que deveria ser: e, por essa razão, existe CONFLITO. Quando a mente está em busca de segurança, necessitamos da autoridade – seja a autoridade da sociedade, da lei, seja a autoridade estabelecida na forma de um ideal ou de uma pessoa que irá dizer-nos o que se deve fazer e o que se não deve fazer. E, por derradeiro, buscamos a perfeita segurança em Deus. Eis o padrão que estamos seguindo há séculos e séculos. O homem existe como homem, segundo se descobriu, há perto de dois milhões de anos. E há pinturas e outros indícios que nos indicam que o homem sempre viveu nessa constante ansiedade, nesse medo constante, nesse perene estado de apreensão, é uma corrente em cuja superfície o homem vem flutuando, sempre buscando, buscando e, em virtude dessa busca, estabelecendo a autoridade de um livro, de uma pessoa, de uma ideia. E isso ele vem fazendo de forma consciente. Como disse, tende a bondade de observar vossa própria mente, vossa própria vida. O que realmente mais vos interessa é isto: exteriormente, segurança, dinheiro, posição, poder; e, interiormente, um inalterável estado livre de todas as ansiedades e problemas, de toda ideia de perigo, iminente ou remoto. Assim é nossa vida. Esse padrão de existência que aceitamos sem discutir. Quando nos vemos muito perturbados, procuramos escapar, buscando o templo ou outras formas de fuga. Nunca questionamos, nunca investigamos em nós mesmos se, de fato, existe segurança quer no plano consciente quer no inconsciente. E vamos agora questionar isso. Podeis não gostar de fazê-lo e oferecer resistência, pois não estamos acostumados a enfrentar as coisas, não estamos acostumados a olhar-nos assim como somos. Preferimos ver coisas inexistentes, ou imaginar coisas que deveriam existir. Mas agora vamos olhar o que na realidade existe – o que é. Em primeiro lugar, há segurança interior, nas relações, em nossas afeiçoes, em nosso modo de pensar? Existe aquela realidade final a que todo homem aspira, em que deposita suas esperanças, sua fé? Porque no mesmo instante em que desejais segurança, inventais um deus, uma ideia, um ideal que vos dará o sentimento de segurança; mas isso pode não ter realidade nenhuma, ser mera ideia, reação, uma forma de resistência ao fato obvio da segurança. Por conseguinte é necessário investigar essa questão sobre se existe alguma segurança, em qualquer nível que seja de nossa vida. Investigá-lo, primeiro, no plano interior, porque, se não houver segurança interiormente, nossas relações com o mundo serão de todo diferentes; não mais nos identificamos com nenhum grupo, nenhuma nação, nenhuma família mesmo. Por conseguinte, cumpre-nos em primeiro lugar investigar a questão de existir ou não permanência, existir ou não um estado de segurança. Isso significa que devemos, vós e eu, estar dispostos a investigar-nos, com agrado, com facilidade, sem hesitações. Porque é bem certo que vivemos na sujeição à autoridade, tanto exterior com interior; a autoridade da sociedade ou a autoridade que estabelecemos para nós mesmos mediante a experiência, ou a autoridade que a tradição nos impôs. Somos educados para obedecer, pois na obediência, encontramos segurança. E, para poder descobrir se existe verdadeiramente alguma segurança, a pessoa deve estar completamente livre de toda espécie de autoridade. Muito importa compreender isso, porque todas as religiões sustentam que existe uma entidade espiritual, permanente, chamada alma, Atma, ou o nome que preferirdes. E aceitamos tal coisa à força de propaganda, de condicionamento, impelidos por nossos temores, nossas exigências de segurança. Aceitamo-la como uma realidade viva, confortante. E há todo um mundo que diz: tal coisa não existe, é mera questão de crença, sem validade nenhuma. É o mundo comunista, que chamais ateísta, ímpio – como se fôssemos muito pior, só pelo fato de termos uma crença! Assim, o homem que anseia por investigar cabalmente essa questão de segurança, deve estar completamente livre de todas as formas de autoridade; não falo da autoridade da lei, da autoridade do Estado, porém da autoridade que a mente busca ou estabelece num livro, numa ideia, numa experiência, na vida. Tende a bondade de ir me seguindo, consciente ou inconscientemente. Só a mente que está livre da autoridade pode começar a investigar este imenso problema da segurança. De outro modo, nem vós nem eu podemos estar em comunhão, e eu preciso dizer-vos que, psicologicamente, não existe segurança. Se procurais a segurança em Deus, trata-se de uma invenção vossa. Estais projetando vosso desejo num símbolo que chamais “Deus”, sem validade alguma. Precisais, pois, estar livre da autoridade, nesse sentido. A mente busca a autoridade, estabelece a autoridade num ideal, numa fórmula, numa pessoa, numa igreja, numa certa crença, e trata de ajustar-se e de obedecer. Disso ela precisa estar livre, não só consciente mas também – mais difícil ainda – inconscientemente. A maioria das chamadas “pessoas ocultas” não creem em Deus, porque não consideram muito importante isso, possuem ótimos empregos ou regular fortuna, e a crença em Deus é uma simples ideia antiquada. Portanto, atiram-na pela janela e vão continuando a sua maneira. Mas investigar o inconsciente e livrar-se do impulso inconsciente de buscar a autoridade é muito mais dificultoso. Não entrarei muito fundo na questão do inconsciente, e dela tratarei rapidamente. O inconsciente é o passado de muitos milhares de anos. O inconsciente é o resíduo da raça, da família, do conhecimento acumulado. O inconsciente é a tradição inteira, a qual podeis rejeitar conscientemente, mas que continua existente. Ela se torna nossa autoridade nos momentos de perturbação. Diz-nos, então, o inconsciente; ide à igreja, fazei isto e aquilo, praticai puja – o que quer que seja. A inspiração, a sugestão do inconsciente, que é todo o passado, torna-se nossa autoridade – e está se torna nossa consciência, nossa voz interior etc. Portanto, precisamos estar bem cônscios de tudo isso, compreendê-lo e libertar-nos para podermos verificar se existe segurança e viver na verdade por nós mesmos a descoberta a esse respeito. Encontramos também uma segurança, psicológica, emocional, na identificação com uma ideia, com uma raça, uma comunidade, um dado movimento, isto é, ligamo-nos a uma dada forma de existência, a uma dada maneira de pensar: identificamo-nos com um grupo, uma comunidade, uma dada classe ou ideia. Essa identificação com a nação, com a família, com o grupo, a comunidade, confere-nos também uma certa ideia de segurança. Senti-vos muito mais seguros quando dizeis “sou hindu” ou “sou inglês”, ou “alemão” etc. Essa identificação proporciona-nos segurança. Disso também é necessário estar-se cônscio. Assim, quando fazeis a vós mesmos a pergunta sobre se há ou não segurança, o problema torna-se extremamente complexo se não compreendeis diretamente a questão e não apenas os seus aspectos secundários. Porque é o desejo de segurança – quando provavelmente nenhuma segurança existe – que gera o CONFLITO. Se, psicologicamente, percebe-se a verdade de que não existe segurança de espécie alguma, em nenhuma forma, em nenhum nível, já não há CONFLITO. Tendes, então, o poder que a vida vos confere; sois ativo, criador, vulcânico em vossa ação, explosivo em vossas ideias; e a nada estais preso. Estais vivo! E a mente que se acha em CONFLITO não pode, evidentemente, viver na claridade, com infinito sentimento de afeição e compaixão. Contudo não podeis ser sensível, se estais perpetuamente com medo, perpetuamente ansiosos, na insegurança e, por conseguinte, em busca de segurança. E, obviamente, a mente que se acha em CONFLITO está a gastar-se, como qualquer máquina sujeita a atrito; toma-se embotada, estúpida, entediada. Assim, pois, em primeiro lugar: existe segurança? Vós é que tendes de descobri-lo, não eu. Eu digo que, psicologicamente, não há segurança de espécie alguma, em nenhum nível, em nenhuma profundidade. Mas isso não é para vós uma realidade. Se o repetis, dizeis uma mentira, porquanto isso não é verdadeiro para vós. Portanto, deveis descobri-lo, já que se trata de um problema urgente, pois o mundo está mergulhado num caos, encontra-se em aterradoras condições de desespero, violência, brutalidade. Dizendo o mundo, refiro-me ao mundo em que viveis – não à Rússia, à China ou a Inglaterra; refiro-me que vos cerca – a família, as pessoas com quem tendes contato. Esse é o vosso mundo. Nesse mundo, se observardes profundamente, encontrareis imenso desespero, ansiedade, degeneração, imitação constante. E, para compreender a vida em toda a sua vastidão, em toda a sua beleza e profundidade – não uma profundidade imaginária, uma beleza imaginária, porém a verdadeira, palpitante, vital e pujante beleza da vida, da existência do viver – deve vossa mente achar-se, toda inteira, em um estado no qual não subsista uma só arranhadura de CONFLITO. Tendes, pois de descobrir por vós mesmos, como agora estais fazendo. Se pensais que interiormente há segurança, ficareis vivendo num perpétuo estado de CONFLITO. Ficareis vivendo num perpétuo estado de imitação, de obediência, de ajustamento e, por conseguinte, jamais sereis livres. E vossa mente deve completamente livre; do contrário, não pode viver, não pode compreender. Se a mente não está livre, não pode ver a beleza de uma árvore ou a formosura de uma nuvem, ou a beleza de um sorriso, num rosto. Existe segurança? Existe essa permanência que incansavelmente busca? Como vós mesmo sabeis, vosso corpo muda, as células do corpo transformam-se constantemente. Como podeis ver, nas relações com vossa esposa , filhos, vizinhos, com o Estado, com a comunidade – existe alguma coisa de permanente? Gostaríeis de tomar tudo permanente. Chamais as relações com vossa esposa de “matrimônio”, e a elas vos apegais firmemente. Mas existe permanência nessas relações? Porque, se colocastes a permanência em vossa esposa ou marido, e ele ou ela vos abandona, ou olha para outrem, ou morre, ou cai doente, vedes-vos completamente desorientado, sentis ciúme, sentis medo, correis para o templo a praticar puja (um ritual religioso), abris a porta a tudo quanto é absurdo. Observai, por favor, vossa própria mente, observai vossa própria vida. Porque se não compreenderdes vossa vida, a angústia, a desdita, a constante batalha de vossa existência de cada dia, não podeis ir muito longe. Podeis falar de Deus, de amor, de beleza – mas nada disso tem valor algum. Para poderdes ir muito longe, deveis começar com o que está mais perto. E o que está mais perto de vós, sois vós mesmos: ai é que devemos começar. Assim, Cabe-vos investigar e descobrir por vós próprios se existe segurança, se existe permanência, algum estado imperturbável. Não importa o que disseram outros. Sankara ou quem quer que seja, excluí-os de vossa investigação, pois nenhuma verdade tem para vossa vida, neles há tanta verdade como num conto policial. A verdade é vossa vida, a batalha, a angústia, o CONFLITO, os problemas. Se não compreenderdes inteiramente esse campo, não tereis possibilidade de ir mais longe: se fordes mais longe, estareis entrando na esfera da ilusão, da fantasia, de um mito sem validade alguma. Agora, ao começardes a investigar, fazei-o com o fim de descobrir o que é verdadeiro, o que é real – real, no sentido de fato psicológico, e não como gostaríeis que fossem as coisas ou como pensais que deveriam ser. A verdadeira condição de todo ente humano é a incerteza. Os que percebem o real estado de incerteza, ou vêm o fato e com ele ficam vivendo, ou perdem o equilíbrio, tornam-se  neuróticos, porque não podem olhar face a face a incerteza. Não podem viver com algo que demanda extraordinária mobilidade da mente e do coração; por isso, tomam-se neuróticos, tornam-se monges, adotam as mais fantásticas formas de fuga. Deveis, pois, ver o que é real, sem tratar de refugiar-vos em boas obras, visitas ao templo, falas (...) O fato é algo que exige toda a vossa atenção. O fato é que  todos estamos na insegurança, que nada existe de seguro. O fato é que nada é certo, nada. Meu filho poderá morrer, minha mulher fugir de casa, e eu adoecer; nada é certo. Ora, por que não aceitar o fato e viver com ele? Sabeis o que significa “viver com uma coisa”, ver todos os dias o poente como coisa nova, ver a folha como se a estivésseis vendo pela primeira vez, com clareza, com intensidade, com sensibilidade para a extraordinária beleza da folha – isso não exige memória, exige que a olheis cada dia como coisa nova, de maneira nova, com intensidade. Devemos, pois, viver com a incerteza. Porque só a mente que está incerta é criadora, e não aquela que tem continuidade, não a mente que precisa estar em perfeita segurança para criar, escrever poesias (...). Isso é completa falta de maturidade, pura infantilidade. Quando estiverdes vivendo naquele estado de completa insegurança interior, vereis como sabereis enfrentar com clareza, com presteza, qualquer problema da vida, não importa em que nível, qualquer crise, qualquer desafio. Para a maioria de nós, a reação inadequada ao desafio é o começo do conflito. A vida oferece-nos constantemente – a cada um de nós, de diferentes maneiras, segundo nossos gostos e temperamentos – desafios, conscientes ou inconscientes, em todas as vinte e quatro horas do dia. Como respondeis de cada vez? Completamente de modo que não haja CONFLITO algum? Vossa resposta é inadequada, cria-se um problema, é necessário, então, enfrentar o problema imediatamente e prontamente resolvê-lo. E isso só é possível quando vossa mente encontra-se num completo estado de movimento, livre de peias, viva, vigorosa, E só podeis ter essa vitalidade, essa mobilidade, essa tremenda atividade da inação, com vossa mente completamente livre de todos os termos relativos à segurança. No entanto, vede, com a maioria de nós acontece que a vida diária – a ocupação, a família, o sexo, os diversos prazeres – embrutece-nos. Não sei se já considerastes o que significa um homem passar trinta ou quarenta anos de sua existência frequentando um escritório todos os dias! Considerai a mente desse homem! É incapaz de funcionar de outra maneira senão aquela. Tal o médico que se especializa em determinada doença – o seu céu é essa doença. Após trinta ou quarenta anos  assim consumidos, a mente está gasta, não é mais fresca, jovem, inocente, foi embrutecida, especializada, batida, moldada, e assim, ela se isola em um canto, enquanto a vida passa a seu lado. É assim que todos quereis que sejam os vossos filhos – que fiquem exercendo um bom emprego nos próximos trinta ou quarenta anos e tomem-se embotados, estúpidos, incapazes de enfrenta a vida. É só o que interessa a todos vós. Há guerras; o homem está destruindo o homem: há terrível crueldade; cada um só cuida de si, em nome de Deus, em nome da sociedade, praticando boas obras, prestando a assistência aos outros dentre outras coisas. Serve-se de todos em proveito próprio ou da ideia com que se identifica. Tal a condição do homem. Não emprego a palavra indivíduo, porque um indivíduo é coisa muito diferente. Só há verdadeira individualidade quando se está só, completamente livre de todo controle e moldagem pela sociedade, pelo ambiente. Sois um homem, um ente humano torturado, aprisionado neste mundo terrível e angustioso; não podeis fugir dele. Isso é um fato, que tendes de enfrentar e não tendes possibilidade de possuir essa energia, se consuma vossa vida em CONFLITO. Assim, a mente tem de compreender de ponta a ponta esse imenso problema da luta, do esforço interminável, infinito, para vir a ser algo, e que consideramos como processo evolutivo. Quando se luta perenemente por vir a ser, e fica-se a lutar, nunca se encontra um momento de paz verdadeira – não a paz imaginada, a paz estagnação, que é a da mente que diz: Encontrei Deus, encontrei uma certa realidade que me faz feliz. Se um homem não compreendeu o CONFLITO, se não compreendeu seu próprio ser, se, em si mesmo, não penetrou profunda, ampla, claramente, esse homem não tem paz, não importa o que faça. Poderá dissimular-se perante os outros, ser hipócrita. Entretanto, para encontrar aquela realidade, é preciso compreender completamente essa questão da segurança, é preciso estar livre e viver naquele estado de incerteza. A vida da maioria de nós é vazia. Por isso, procuramos preenche-la com coisas as mais variadas. No entanto, se compreenderdes este problema da segurança e da insegurança, vereis, ao vos aprofundardes mais e mais – não estou dizendo “mais e mais” em sentido comparativo – que não é questão de tempo. Compreendereis, então, completamente o problema da segurança e do CONFLITO. Ireis descobrir, descobrir, não crer – por vós mesmos, um estado de completa existência, de completo ser – estado sem medo, sem ansiedade, sem obediência nem compulsão, um completo “estado de ser”, uma luz que não busca, sem nenhum movimento de fora de si própria. Bombaim – Índia, 12 de fevereiro de 1964. Livro O Despertar da Sensibilidade. Abraço. Davi.

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