Budismo. Texto do Yogi
Kharishnanda Sarawasti (1922-2001). PREGAÇÃO DO BUDHA. Capítulo três.
IDENTIDADE E SEPARATIVIDADE. Kutadanta, o prior dos brâmanes de Danamati,
aproximou-se respeitosamente do Bem aventurado, saudou-o e disse-lhe: Asceta,
fui informado de que o senhor é o Budha, o Santo, o Onipotente, o Senhor do
Mundo. Porém, se isso fosse verdade, o senhor não teria vindo como um rei com
toda a glória e onipotência? O Bem aventurado respondeu-lhe: Os seus olhos
estão cegos. Se não estivesse turva a sua visão, veria a glória e a onipotência
da Verdade. Kutadanta replicou-lhe: Mostre-me a Verdade e a verei. Mas a sua
doutrina não tem consistência. Se tivesse, perduraria, porém, como não tem,
desaparecerá. O Bem aventurado respondeu-lhe: A verdade é eterna. Não
desaparecerá nunca. Kutadanta objetou dizendo: Dizem que o senhor ensina a Boa
Lei: no entanto, desdenha a religião. Os seus discípulos menosprezam os ritos e
as cerimônias, e negam-se a sacrificar no altar dos deuses, dizendo que não é
pleo sacrifício que se mostra a verdadeira devoção aos deuses. Mas eu entendo
que no culto e no sacrifício está a essência da religião. O Senhor Budha lhe
replicou: O sacrifício da personalidade vale muitíssimo mais do que a imolação
das reses. Quem sacrifica aos deuses seus maus desejos e vis paixões,
compreende a inutilidade de banhar em sangue de animais inocentes a ara dos
altares. Em troca, libertar-se da luxúria purifica o coração. Mais vale
obedecer às leis da justiça do que adorar os deuses. Qualquer pessoa pode tirar
a vida, mas é incapaz de dá-la. Todas as criaturas amam a vida e lutam por ela.
A vida é uma dádiva maravilhosa, querida e grata para todos, mesmo para os mais
humildes; por isso deve ser respeitada por todo homem piedoso, porque a piedade
torna o homem terno para com os fracos e nobre para com os fortes. O homem
implora a misericórdia dos deuses e não tem misericórdia pelos animais, para os
quais ele é como um deus. Tudo quanto vive está unido por laços de parentesco,
e os animais que vocês matam já lhes deram o doce tributo do seu leite, o macio
de sua lã e depositam sua confiança nas mãos dos que os degolam. Ninguém pode
purificar o seu espírito com sangue, pois se os deuses são bons, não lhes pode
ser agradável o sangue, e se são maus, este não basta para suborna-los. Sobre a
inocente cabeça de um animal não é possível colocar nem o peso de um fio de
cabelo das maldades e erros pelos quais cada um deve responder pessoalmente,
porque cada qual deve prestar contas de si mesmo segundo a imutável aritmética
do Universo. Esta distribui o bem para o bem e o mal para o mal, dando a cada
um à sua medida de acordo com suas ações, palavras e pensamentos, e vigilante,
exata, imutável e implacável, faz que o futuro seja o fruto do passado. Feliz
seria a Terra, se todos os seres estivessem unidos pelos laços da benevolência
e só se alimentassem de alimentos puros, sem derramamento de sangue. Os grãos
dourados, os frutos reluzentes e as ervas saborosas que nascem para todos
bastariam para alimentar e dar fartura ao mundo. Kutadanta era muito piedoso, e
como havia sacrificado muitas vítimas, inquietou-se e sua consciência encheu-se
de remorsos, pois compreendeu o quanto era insensato crer que a efusão de
sangue bastaria para apagar os pecados. Então perguntou ao Bem aventurado. O
senhor acredita, Mestre, que a alma renasce e evolui no transcurso das vidas e
que, sujeita à lei do karma, deve colher o que semeia? Pergunto-lhe porque me
disseram que o senhor ensina a inexistência do eu, como a suprema felicidade do
nirvana. Se eu sou apenas uma combinação de elementos, devo desintegrar-me e
desaparecer ao morrer. Se sou uma mera combinação de ideias, pensamentos,
sensações e desejos, o que será de mim quando o meu corpo se desintegrar? Onde
está essa infinita felicidade de que falam os seus discípulos? É uma palavra vã,
sem sentido, uma ilusão. Quando medito nos seus ensinamentos, só vejo o nada, a
aniquilação, o não ser, como destino final do homem. Ó brâmanes, você é
religioso e tem zelo. Inquieta-se pelo futuro, mas em vão se atormenta, porque
lhe falta o mais necessário. Por erro ou por ignorância, os homens gozam na
ilusão de que suas almas são entidades distintas e existentes por si mesmas.
Seu coração, ó brâmane, ainda está apegado à personalidade. Você aspira ao céu,
porém busca e espera no céu os prazeres da personalidade, e assim não poderá
encontrar a felicidade na Verdade imortal. Certamente eu lhe digo: o Bem
aventurado não veio ensinar a morte, e sim pregar a vida, e você não discerne
entre o morrer e o viver. O seu corpo morrerá, pois os sacrifícios não o
salvarão. Busque então a vida do espírito. Onde está a personalidade não pode
estar a Verdade, e quando se pratica e conhece a Verdade, a personalidade
desaparece. Faça com que o seu espírito repouse na Verdade, difunda a Verdade e
ponha a Verdade na sua alma. E na Verdade você viverá eternamente. O eu é a
morte; a Verdade é a vida. O apego ao eu e à personalidade é morte contínua, ao
passo que quem vive e se move na Verdade alcança o nirvana. Kutadanta tornou:
Venerável Mestre, onde está o nirvana? O Bem aventurado disse: Onde quer que se
obedeça a Lei. Kutadanta replicou: Então o nirvana não está em parte alguma e,
portanto, não tem realidade. O Bem aventurado: Você não me entendeu. Escute e
responda. Qual é a morada do vento? Onde ele habita? Kutadanta: Em parte
alguma. O Bem aventurado: Então o vento não existe? É uma ilusão? Kutadanta não
soube responder, e o Senhor Budha tornou a perguntar-lhe: Diga-me, ó brâmane:
Onde reside a sabedoria? Está em algum lugar? Kutadanta: A sabedoria não tem
lugar determinado. E o Bhagavad disse: Você dirá que não há sabedoria, nem
justiça, nem salvação porque, como o nirvana, elas não tem lugar determinado?
Assim como a brisa veloz atravessa o mundo durante o calor do dia, também o
Tathágaa vem refrigerar o espírito humano como o delicado e suave sopro que que
alivia o calor de todo sofrimento. Kutadanta replicou: Parece-me que o senhor
prega uma excelsa doutrina, porém não posso entende-la. Permite-me outra
pergunta? Se a alma não existe, como pode existir imortalidade? Se a atividade
da alma cessa, os nossos pensamentos também cessarão. O Senhor Budha respondeu:
A nossa felicidade de pensar desaparece, porém os nossos pensamentos continuam
existindo. Cessa o raciocínio, porém continua o conhecimento. É como se durante
a noite um homem tivesse necessidade de escrever uma carta. Ele acende a luz,
escreve a carta e uma vez escrita a carta, apaga a luz. Embora a luz esteja
apagada, a carta continua escrita. De modo semelhante, o raciocínio cessa, mas
o conhecimento persiste. A atividade mental cessa, porém a experiência, o
conhecimento e o fruto de nossas boas ações não são perdidos. Kutadanta:
Diga-me, senhor, que será da minha personalidade quando seus componentes se
dissociarem? Se minhas ideias desaparecem, e meus pensamentos deixam de ser
meus, e minha alma já não é minha alma, que é feito da personalidade? Dê-me um
exemplo, senhor meu. O Bem aventurado: Suponha que um homem acenda uma
lamparina. Ela arderá a noite inteira? Kutadanta: Pode ser que sim. O Bem
aventurado: Bem, mas a chama que arde na primeira metade da noite, arde na
segunda? Kutadanta pensou que era a mesma, porém, receoso de um sentido oculto,
respondeu: Não, não é a mesma. O Bem aventurado: Então haverá duas chamas: uma
durante a primeira metade da noite e outra durante a segunda? Kutadanta: Num
certo sentido não é a mesma chama, porém em outro sim, porque se constitui da
mesma matéria e da mesma luz, e serve para o mesmo fim. O Bem aventurado: Você
dirá que a chama que ardeu ontem é a mesma que arde hoje na mesma lamparina
alimentada pelo mesmo e iluminando o mesmo lugar? Kutadanta: Pode ter se
apagado durante o dia. O Bem aventurado: Suponha que a lamparina tenha estado
acesa durante a primeira metade da noite e apagada durante a segunda. Se alguém
tornar a acendê-la, dirá que a chama dela é a mesma? Kutadanta: Num sentido é
diferente, e em outro é a mesma. O Bem aventurado: O tempo durante o qual a
lamparina esteve apagada tem algo a ver com a chama ser ou não a mesma?
Kutadanta: Não, senhor. O tempo não interfere em nada, quer seja a mesma ou
não. O Bem aventurado: Bem, então admitimos que em certo sentido a chama de
hoje é a mesma de ontem, e que em outro sentido ela muda a cada instante.
Então, as chamas da mesma natureza e da mesma intensidade que iluminam lugares
idênticos, são de certo modo as mesmas. Kutadanta: Sim, senhor. O Bem
aventurado: Suponhamos agora um homem que pensa como você, que sente como você,
que age como você. Não será o mesmo que você? Kutanda: Não, senhor. O Bem
aventurado: Você nega que a lógica que lhe parece boa para uma coisa também o
seja para as coisas do mundo? Kutadanta refletiu um instante e respondeu
pausadamente. Não nego. A mesma lógica impera em todo o universo; porém, na
minha personalidade há algo que a distingue completamente das demais
personalidades. Pode haver outro indivíduo que sinta, pense e proceda como eu,
porém não será eu. O Bem aventurado: Verdadeiramente, Kutadanta, esse outro
homem não será você. Porém, diga-me: o estudante que vai à escola é o mesmo depois
de terminados os estudos? O que cometeu um crime é a mesma pessoa quando, ao
ser castigado, lhe cortam as mãos e os pés? Kutadanta: São as mesmas pessoas. O
Bem aventurado: Estará então a identidade constituída pela continuidade?
Kutadanta: Não apenas pela continuidade, mas também pela identidade da
natureza. O Bem aventurado: Pois, se você admite que duas pessoas podem ser
idênticas no mesmo sentido em que temos dito que as chamas são as mesmas, deve
reconhecer que, nesse sentido, outro homem da mesma natureza, resultante do
mesmo karma, é o mesmo que você. Kutadanta: Reconheço. O Bem aventurado: Pois
nesse sentido você é o mesmo hoje que ontem. A sua natureza pessoal não
consiste da matéria de que está formado o seu corpo, porém da forma ou
configuração do seu corpo, de suas sensações e pensamentos. A sua personalidade
é uma combinação de elementos. Onde quer que eles estejam, ali você está.
Assim, pois em certo sentido, reconhece a sua personalidade, com ela se
identifica e dá-lhe continuidade segundo o seu karma. Você a chamaria de morte
e aniquilação, ou vida e continuação da vida? Kutadanta: Eu a chamaria de vida
e continuação de vida, porque é a continuação da minha existência. Mas o que me
preocupa é a continuação de minha personalidade, de modo que todo homem, seja
ou não idêntico a mim, é uma personalidade absolutamente distinta. O Bem
aventurado: Muito bem, essa é a continuação que você deseja, e esse é o apego à
personalidade. Esse é o erro que lhe acarreta inquietudes inúteis. Aquele que
se apega à personalidade tem que passar por inúmeros nascimentos e mortes.
Morrerá continuamente, porque a natureza da personalidade é morte incessante.
Kutadanta: Como é isso? O Bem aventurado: Onde está a sua personalidade?
Kutadanta não soube responder. O Bem aventurado: Essa personalidade, que você
tanto estima, muda incessantemente. Anos atrás, você foi menino, depois jovem e
agora é um homem. Que identidade pessoal há entre o menino e o homem? Não há,
como também não havia, conforme vimos, na chama da lamparina que ardeu durante
a primeira metade da noite e a que ardeu ao reacender-se depois de apagada.
Qual é a sua verdadeira personalidade: a de ontem, a de hoje ou a de amanhã?
Kutadanta, perplexo, respondeu: Senhor do Mundo, vejo meu erro, porém ainda
estou confuso. O Senhor Budha prosseguiu dizendo: Os princípios constituintes
da sua personalidade são o resultado das suas ações em vidas passadas, e em
futuras existências você colherá o que com suas ações está semeando no
presente. Kutadanta: Certamente, senhor, não me parece justo que outros colham
o que eu semeei agora. O Tathágat ficou um momento silencioso e deposi disse:
Será inútil todo ensinamento? Não compreende que essas outras personalidades
são você mesmo? Você, e não outros, colherá o que semeou. Suponha um homem mal
educado, que sofre as consequências de sua infeliz condição. Em menino foi
preguiçoso e, quando se fez homem, não tinha ofício nem profissão para ganhar o
seu sustento. Você dirá que a miséria dele não é o resultado de sua conduta, porque
a personalidade do menino não é a mesma do adulto? Em verdade lhe digo que nem
nas alturas do céu nem nas entranhas da Terra encontrará um lugar onde possa
fugir ao resultado das suas más ações. E da mesma maneira irá receber a
recompensa de Suas boas obras. Quem volta são e salvo de uma longa viagem,
recebe em sua casa as boas vindas de seus parentes, amigos e conhecidos. Também
o resultado de suas boas ações beneficia o homem que passa desta vida para a
outra, se ele seguiu o caminho da justiça. Kutadanta: Creio na glória e
excelência das suas doutrinas. Minha vista não pode suportar o fulgor da luz;
porém, agora compreendo que a personalidade é ilusória, que as orações são
palavras ociosas e que os sacrifícios não servem para a salvação. Como encontrar
o caminho da Verdade eterna? Aprendi de memória todos os Vedas e não encontrei
a Verdade. O Bem aventurado: A erudição não é uma coisa má, porém a verdadeira
ciência, o conhecimento útil, só pode ser obtido pela prática. Reconheça a
verdade de que o seu próximo é seu semelhante. Compreenda que a personalidade é
morte e a verdade é imortal. E Kutadanta exclamou: Oxalá (queira Deus) eu
pudesse refugiar-me no Budha, no Dharma e na Ordem. Aceite-me por discípulo e
faça-me compartilhar da felicidade da imortalidade. PREGAÇÃO DO BUDHA. Capítulo
quatro. UMA ESSÊNCIA, UMA LEI E UM FIM. Um dia o Tathágata, conversando com o
venerável Kasyapa com o propósito de libertar sua mente da incerteza e da
dúvida, disse-lhe: Todos os seres e todas as coisas são constituídas de uma
mesma essência, embora pareçam diferentes segundo as formas que tomam em
consequência das influências que recebem. Como se formam, agem, e como agem,
são. Suponha, Kasyapa, que um oleiro fabrique vasilhas diferentes com o mesmo
barro. Cada uma dessas vasilhas terá o seu destino, pois uma servirá para
arroz, outra para manteiga, outra para leite e algumas serão usadas para
depósitos de impurezas. Não há diferença no barro empregado. A diferença está
no modelo dado pelo oleiro, segundo os diversos usos requeridos pelas
circunstâncias. Do mesmo modo, todos os seres evolucionam de acordo com uma só
Lei e se destinam ao mesmo fim, que é o nirvana. Se você compreende, ó Kasyapa,
que todos os seres são da mesma essência e que não há mais que uma única Verdade,
e vive de acordo com essa compreensão, alcançará o nirvana. O Tathágata é o
mesmo para todos os seres e da mesma essência que todos eles, pois difere
apenas em seu aspecto como os demais seres diferem entre si. O Tathágata dá
alegria ao mundo inteiro, do mesmo modo que a nuvem derrama a chuva sobre
justos e pecadores. Tem a mesma compaixão pelos grandes e pelos pequenos, pelo
sábio e pelo ignorante, pelo virtuosos e pelo pecador. A vasta nuvem carregada
de água derrama a chuva sobre prados, várzeas, montanhas e vales, hortas e
campos. E todos recebem a água da chuva, que é da mesma essência, e árvores,
plantas e ervas nascem, florescem e frutificam, cada uma segundo a sua espécie
e natureza. Arraigadas no mesmo solo, todas as plantas de um campo ou de uma horta
recebem a mesma água que a todas vivifica. O Tathágata conhece, ó Kasyapa. A
lei cuja virtude é o conhecimento e cujo fim é a paz do nirvana. Ele é o mesmo
para todos, porém não se manifesta do mesmo modo a todos, mas a cada um segundo
suas necessidades. Logo no começo não dá para todos a plenitude do
conhecimento, porém observa a predisposição de cada um. Livro O Evangelho do
Budha. Vida e Doutrina de Sidharta Gautama – o Inspirador do Budismo. Abraço.
Davi.
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