Espiritualidade. Texto de Leonardo Boff (1938- ). Deus se parece com os piolhos. Enfrentava,
na Argentina, um auditório difícil. Cristãos conservadores, alguns padres
reacionários, intelectuais orgânicos ao sistema imperante. Falava da
libertação, como resposta ao grito dos oprimidos e também ao grito da Terra
depredada. Da necessidade de que o oprimido fosse sujeito de sua própria
libertação. Oprimido que não conhece as razões de sua opressão não consegue
nunca deixar de ser oprimido. Que deveria sonhar com um projeto de mundo
diferente deste excludente. Que deveria se organizar para implementá-lo. Que a
questão toda é dar os primeiros passos. Que todos os que ainda não perderam o
sentimento de solidariedade e de compaixão deveriam ser seus aliados. Que a
Igreja, historicamente aliada dos ricos, deveria agora ser aliada dos pobres,
porque assim fez o Jesus histórico. E outros quês, quês e quês (…). Gastei todo
o meu latim sem resultado visível. Lembrei-lhes que o cura José Gabriel
Brochero (1840-1914), espécie de Padre Cícero Romão Batista (1844-1934)
argentino, ensinava ainda no século XIX: "Deus está em todas as partes.
Mas estejam convencidos de que está mais perto dos pobres que dos ricos. Nisso
se parece com os piolhos que estão mais junto dos pobres do que junto dos
ricos". Metáfora bela e verdadeira. Na pausa não quis conversar com
ninguém e sai à rua para me refazer da refrega. Estava numa bela avenida de
Rosário, cidade industrial da Argentina, hoje totalmente devastada pelas
políticas neoliberais. As árvores enfileiradas projetavam sua sombra benfazeja
protegendo-me do sol quase canicular da tarde. Estou voltando à sala de
encontro a fim de continuar a discussão difícil. Vejo que duas senhoras
velhinhas, elegantes, uma apoiada na outra, vêm em direção oposta à minha.
Penso lá comigo mesmo: “que tem a ver estas duas velhinhas com a libertação dos
oprimidos? Devem ser ricas e reacionárias (...). ”Por outra parte, me irrompe
na mente a questão: “elas, de certa forma, devem entrar na libertação. Senão a
libertação jamais será integral e para todos”. Quando estou envolto em tais
pensamentos e com certa má consciência, vejo que elas me observam detidamente.
Aproximam-se e me dizem: “O senhor é aquele que falou no programa de televisão
hoje ao meio-dia sobre a teologia da libertação? Nós vimos e gostamos. Nós não
somos pobres. Nós somos velhas, embora ricas. Estamos caminhando para o fim da
vida. Mas todos os dias rezamos pelos cristãos libertadores, pelos teólogos e
pelos bispos proféticos. E muito mais rezamos pelos pobres e oprimidos. Nós
somos solidárias com o senhor. Sai perplexo. Se uma teologia não incluir esse
tipo de solidariedade e esse bom propósito que se irradia sobre os outros, de
que libertação estamos falando? Estou convencido de que a tenacidade dos
militantes, a cooperação dos aliados, a lucidez dos pastores e a inteligência
dos teólogos estão assentadas sobre a oração de pessoas anônimas como estas
duas ricas e idosas madames. Mesmo que elas não o saibam, nem o presumam: suas
orações libertam os libertadores de sua estreiteza e, quem sabe, de sua
arrogância de terem a melhor causa e de estarem sempre no lado certo. Carnaval de Igrejas. Uma
imagem poderosa me acompanha há anos: a celebração dos mil anos de cristianismo
em Rus, a antiga Rússia. Ela oferece pistas para o verdadeiro ecumenismo. Em
1989 o Governo soviético e a Igreja ortodoxa convidaram para as celebrações,
representantes de todas as denominações cristãs existentes na face da Terra.
Havia mais de mil denominações, desde a Igreja da libertação na América Latina
(que Gustavo Gutiérrez Merino (1928- ) e
eu representávamos para irritação das autoridades católicas romanas presentes e
gáudio dos marxistas) até a pequenina igreja da Galileia cujas origens remontam
aos parentes de Jesus. Reunidos no teatro Bolshoi, em Moscou, durante todo um
dia, cada denominação expressava sua profissão de fé e, em poucos minutos,
formulava bons votos ao povo ortodoxo russo. Parecia um carnaval cristão, tal a
profusão das indumentárias, das cores e dos títulos honoríficos. Todos naquela
semana de celebrações desfilavam em seus trajes com garbo e elegância. Eu
circulava com meu singelo burel franciscano, com capuz e cordão, representando
indignamente a Igreja dos pobres da América Latina. Nas conversas daqueles
dias, percebi que cada igreja se considerava a verdadeira. E seus
representantes todos, especialmente, os vindos de Roma, andavam soberbos
carregando sobre as costas algo que só eles imaginam poder carregar: a verdade
revelada, todos os meios de salvação e a única Igreja de Cristo (os outros
teriam apenas “elementos eclesiais”). Alguns andavam até encurvados sob o peso
de tanta pretensão. Pensava então comigo mesmo: todos esses estão certos e
todos estão errados. Todos estão certos porque ninguém está fora do Cristo e
longe da verdade. Todos estão errados porque ninguém pode conter em suas
vasilhas toda a água do oceano cristão. Num certo momento da cerimônia lancei,
angustiado, ao céu, essa pergunta: “Senhor, qual é, enfim, a tua Igreja, quem
são os teus? Revele-me por tua imensa bondade!” E escutei, no céu de minha mente,
esta resposta: “Todos são os meus, todos têm a minha herança e todos compõem a
minha Igreja”. Efetivamente, sem as Igrejas, Cristo talvez teria sido engolido
pelo esquecimento como o foram tantos místicos e mestres espirituais. Mas elas
não substituem Cristo, só o representam. Não são a luz, apenas a lamparina.
Pessoas que não percebem essa nuance fundamental, pesarosas, dizem: entre a
Igreja e Cristo prefiro ficar com Cristo. Outros, mais sensatos, relativizam a
Igreja e dizem: fiquemos com Jesus e com a Igreja. Mas cada qual no seu nível.
O nível absoluto e fundador é Cristo. O nível relativo e fundado é a Igreja.
Cristo é o sol que irradia por si mesmo, a Igreja, a lua, iluminada pelo sol.
Como todas as Igrejas carregam a memória de Jesus, todas devem viver em
comunhão de reciprocidade. Juntas em relação recíproca formam a única Igreja de
Jesus e de Deus na Terra. O que importa, na verdade, não são tanto as Igrejas,
mas o fenômeno cristão e sua função benfazeja para a espiritualidade dos seres
humanos. Todas as Igrejas são de Cristo mas Cristo é para os humanos e os
humanos são para os outros humanos, homens e mulheres, e todos são para Deus. E a libertação
continua. Não são poucos os que perguntam: a quantas anda a teologia da
libertação? Não obstante o persistente controle por parte das autoridades
doutrinárias do Vaticano, ela continua viva nas Igrejas que tomaram a sério a
opção pelo pobres, contra a pobreza e em favor da vida e da libertação. Karl
Marx (1818-1883) não foi nem é pai e padrinho deste tipo de teologia. Ela
nasceu como resposta ao grito dos oprimidos e dos estertores da Terra. Ao
agravar-se a injustiça social e ecológica, esse grito se transformou hoje em
clamor. Daí a permanente atualidade da teologia da libertação nos lugares onde
cristãos se recusam a aceitar essa anti realidade e encontram em sua fé motivos
poderosos para lutar contra ela, ombro a ombro com outros. No âmbito das
Igrejas ela lançou raízes nas cem mil comunidades de base, nos milhares e
milhares de círculos bíblicos e nas várias pastorais sociais. Nestes espaços os
cristãos aprendem a confrontar página da Bíblia com página da realidade e
derivar compromissos transformadores. No âmbito da sociedade, a teologia da
libertação ganhou corpo em inúmeros movimentos sociais, como nos Sem-Terra, em
alguns movimentos de negros, de indígenas, de mulheres marginalizadas e outros.
A assim chamada Igreja da libertação comparece como uma das forças que ajudou a
fundar o Partido dos Trabalhadores (PT) e ainda hoje lhe dá substância ética e
espiritual e lhe garante caráter popular. Fenômeno relevante é constatar que
ela penetrou no campo especificamente político e contribuiu na elaboração de
uma nova ética pública. Como se não bastasse, fez suscitar uma mística de
transformação e de cuidado para com as coisas do povo, sem a qual as políticas
sociais correm risco de se atolarem no pântano do populismo e desembocarem em
medidas pobres para com os pobres. Pude constatar tal fato nos inícios de maio
quando me coube dar palestras e debates, a convite de grupos da Igreja da
libertação e do Governo petista de Jorge Viana no Acre – Brasil. Estive muitas
vezes neste Estado nos anos 70 e 80, pois aí se instaurava um dos ensaios de
Igreja libertadora dos mais consistentes sob a animação da excepcional figura
do bispo Dom Moacyr Grecchi (1936- ) e
hoje continuada pelo Pe. Luiz Ceppi, articulador inteligente entre fé, política
e libertação. Esta Igreja não só organizou vasta rede de comunidades eclesiais
de base senão que formou quadros comprometidos com a realidade da floresta.
Estes quadros ganharam hoje a cena política, como o Governador Jorge Viana, seu
irmão, o senador Tião Viana, a seringueira e senadora Marina Silva, o deputado
federal e teólogo leigo Nilson Mourão entre tantos outros, de grande valor
ético e político. Eles implementam uma política democrática e popular,
realmente inspirada nos ideais da libertação. Não há espaço para detalhar os
conteúdos do projeto político em curso no Acre. Mas cabe ressaltar duas
características relevantes. A primeira, a criação de uma metáfora forte que
define ação política: “governo da floresta” e “florestania”. Desenvolvimento
não se faz destruindo a floresta, mas preservando-a, extraindo dela sua
incomensurável riqueza e integrando quem lá habita. A segunda, foi a de ter
criado uma verdadeira mística de reinvenção do Acre que se apoderou das mentes
e corações de seus operadores. Irradia-se uma aura benfazeja que impregna a
todos, num despojamento exemplar dos símbolos de poder em função dos ideais de
cuidado com o bem comum e de aproximação à realidade crua do povo. Mais
importante que a teologia da libertação, é a libertação concreta dos oprimidos.
Tal evento é parte da política de Deus no mundo, chamada, não Igreja, mas Reino
de Deus. Florestania:
cidadania na floresta. Na Amazônia assim se pensava e
assim se agia: desmatar é desenvolver. Nesta lógica se tem desmatado 15
hectares por minuto. Este floresticídio está sendo sustado pela florestania,
política proposta pelo governo do Acre sob os cuidados do jovem governador
Jorge Viana (PT). Seu lema: “Governo da floresta”. Meta visada: “florestania”,
cidadania na floresta. Que significam esses conceitos? Ponto de partida é este:
para realidades novas, palavras novas, consoante a sabedoria de Jesus: “para
vinhos novos, odres novos”. Qual a novidade? Entender a floresta amazônica como
base para um novo modelo sócio econômico fundado no extrativismo sem depredar a
floresta. Tal proposta rasga caminho novo, dando viabilidade ao que alguns
teóricos chamam de “modo de produção amazônico”. O governo Jorge Viana soube
captar a singularidade da floresta e decidiu aproveitar as vantagens
comparativas do Acre. Destarte seu projeto de desenvolvimento sócio ecológico
dá corpo aos sonhos de Chico Mendes (1944-1988). Se for bem sucedido e tudo
indica que será, outorgará a seu governo um perfil singular e tornar-se-á
paradigma referencial para toda a região amazônica. Vale observar que o Acre
herdou uma situação privilegiada: apenas 10% de seu território foi desmatado e
30% dele compõe áreas de conservação. O desafio reside na correta articulação
entre floresta, desenvolvimento e cidadania. O eixo articulador é a floresta, o
grande capital natural e também cultural, pois não se pode entender a floresta
sem a cultura dos povos da floresta. Num texto programático “o desenvolvimento
que queremos”, o Governo da Floresta estabelece metas que estão sendo
implementadas: criação de florestas públicas estaduais de produção, valorização
da atividade extrativista, com o estabelecimento de usinas de beneficiamento da
castanha-do-Brasil, produção da borracha, construção de centenas de
casas-de-farinha, manejo sustentável da madeira de lei como o mogno e de outras
espécies ainda não utilizadas na confecção de móveis, aproveitamento do couro
vegetal, levantamento dos óleos e corantes vegetais, de substâncias alcaloides
para a farmacologia e aromáticas, e de outras de valor herbicida e fungicida,
entre tantos outros projetos. Tão importante quanto o plano ecológico econômico
é o plano político social que vem sob o nome de Florestania. Trata-se de uma
palavra que combina “floresta” com “cidadania”. Significa então realizar “a
cidadania na floresta” através de uma nova consciência de que as populações
rurais, ribeirinhas, indígenas e extrativistas só têm vantagens em ficar na
floresta. Aí dentro de seu meio ecológico serão assistidas com saúde, educação,
formação profissional e lazer. A isso se ordenam os Centros de Florestania, as
Escolas de Florestania e os Programas de Educação Indígena e de Política de
desenvolvimento sempre em parceria com as comunidades e o governo. Tais
projetos não são pensados e executados a partir de escritórios refrigerados,
mas mediante uma política da pele, do conhecer as entranhas povo, do olhar
fundo nos seus olhos, enfrentado longas caminhadas “de pés”, a cavalo, de motor
ou de avioneta (avião de pequena dimensão) para encontrar as pessoas lá onde
vivem e sonham. Eis uma política, no sentido de Gandhi, como gesto amoroso para
com o povo. No Acre - estado brasileiro encravado na região da Amazônia. www.leonardoboff.com.br.
Abraço. Davi.
Nenhum comentário:
Postar um comentário