quarta-feira, 16 de novembro de 2016

DEUS SE PARECE COM OS PIOLHOS.



Espiritualidade. Texto de Leonardo Boff (1938-  ). Deus se parece com os piolhos. Enfrentava, na Argentina, um auditório difícil. Cristãos conservadores, alguns padres reacionários, intelectuais orgânicos ao sistema imperante. Falava da libertação, como resposta ao grito dos oprimidos e também ao grito da Terra depredada. Da necessidade de que o oprimido fosse sujeito de sua própria libertação. Oprimido que não conhece as razões de sua opressão não consegue nunca deixar de ser oprimido. Que deveria sonhar com um projeto de mundo diferente deste excludente. Que deveria se organizar para implementá-lo. Que a questão toda é dar os primeiros passos. Que todos os que ainda não perderam o sentimento de solidariedade e de compaixão deveriam ser seus aliados. Que a Igreja, historicamente aliada dos ricos, deveria agora ser aliada dos pobres, porque assim fez o Jesus histórico. E outros quês, quês e quês (…). Gastei todo o meu latim sem resultado visível. Lembrei-lhes que o cura José Gabriel Brochero (1840-1914), espécie de Padre Cícero Romão Batista (1844-1934) argentino, ensinava ainda no século XIX: "Deus está em todas as partes. Mas estejam convencidos de que está mais perto dos pobres que dos ricos. Nisso se parece com os piolhos que estão mais junto dos pobres do que junto dos ricos". Metáfora bela e verdadeira. Na pausa não quis conversar com ninguém e sai à rua para me refazer da refrega. Estava numa bela avenida de Rosário, cidade industrial da Argentina, hoje totalmente devastada pelas políticas neoliberais. As árvores enfileiradas projetavam sua sombra benfazeja protegendo-me do sol quase canicular da tarde. Estou voltando à sala de encontro a fim de continuar a discussão difícil. Vejo que duas senhoras velhinhas, elegantes, uma apoiada na outra, vêm em direção oposta à minha. Penso lá comigo mesmo: “que tem a ver estas duas velhinhas com a libertação dos oprimidos? Devem ser ricas e reacionárias (...). ”Por outra parte, me irrompe na mente a questão: “elas, de certa forma, devem entrar na libertação. Senão a libertação jamais será integral e para todos”. Quando estou envolto em tais pensamentos e com certa má consciência, vejo que elas me observam detidamente. Aproximam-se e me dizem: “O senhor é aquele que falou no programa de televisão hoje ao meio-dia sobre a teologia da libertação? Nós vimos e gostamos. Nós não somos pobres. Nós somos velhas, embora ricas. Estamos caminhando para o fim da vida. Mas todos os dias rezamos pelos cristãos libertadores, pelos teólogos e pelos bispos proféticos. E muito mais rezamos pelos pobres e oprimidos. Nós somos solidárias com o senhor. Sai perplexo. Se uma teologia não incluir esse tipo de solidariedade e esse bom propósito que se irradia sobre os outros, de que libertação estamos falando? Estou convencido de que a tenacidade dos militantes, a cooperação dos aliados, a lucidez dos pastores e a inteligência dos teólogos estão assentadas sobre a oração de pessoas anônimas como estas duas ricas e idosas madames. Mesmo que elas não o saibam, nem o presumam: suas orações libertam os libertadores de sua estreiteza e, quem sabe, de sua arrogância de terem a melhor causa e de estarem sempre no lado certo. Carnaval de Igrejas. Uma imagem poderosa me acompanha há anos: a celebração dos mil anos de cristianismo em Rus, a antiga Rússia. Ela oferece pistas para o verdadeiro ecumenismo. Em 1989 o Governo soviético e a Igreja ortodoxa convidaram para as celebrações, representantes de todas as denominações cristãs existentes na face da Terra. Havia mais de mil denominações, desde a Igreja da libertação na América Latina (que Gustavo Gutiérrez Merino (1928-  ) e eu representávamos para irritação das autoridades católicas romanas presentes e gáudio dos marxistas) até a pequenina igreja da Galileia cujas origens remontam aos parentes de Jesus. Reunidos no teatro Bolshoi, em Moscou, durante todo um dia, cada denominação expressava sua profissão de fé e, em poucos minutos, formulava bons votos ao povo ortodoxo russo. Parecia um carnaval cristão, tal a profusão das indumentárias, das cores e dos títulos honoríficos. Todos naquela semana de celebrações desfilavam em seus trajes com garbo e elegância. Eu circulava com meu singelo burel franciscano, com capuz e cordão, representando indignamente a Igreja dos pobres da América Latina. Nas conversas daqueles dias, percebi que cada igreja se considerava a verdadeira. E seus representantes todos, especialmente, os vindos de Roma, andavam soberbos carregando sobre as costas algo que só eles imaginam poder carregar: a verdade revelada, todos os meios de salvação e a única Igreja de Cristo (os outros teriam apenas “elementos eclesiais”). Alguns andavam até encurvados sob o peso de tanta pretensão. Pensava então comigo mesmo: todos esses estão certos e todos estão errados. Todos estão certos porque ninguém está fora do Cristo e longe da verdade. Todos estão errados porque ninguém pode conter em suas vasilhas toda a água do oceano cristão. Num certo momento da cerimônia lancei, angustiado, ao céu, essa pergunta: “Senhor, qual é, enfim, a tua Igreja, quem são os teus? Revele-me por tua imensa bondade!” E escutei, no céu de minha mente, esta resposta: “Todos são os meus, todos têm a minha herança e todos compõem a minha Igreja”. Efetivamente, sem as Igrejas, Cristo talvez teria sido engolido pelo esquecimento como o foram tantos místicos e mestres espirituais. Mas elas não substituem Cristo, só o representam. Não são a luz, apenas a lamparina. Pessoas que não percebem essa nuance fundamental, pesarosas, dizem: entre a Igreja e Cristo prefiro ficar com Cristo. Outros, mais sensatos, relativizam a Igreja e dizem: fiquemos com Jesus e com a Igreja. Mas cada qual no seu nível. O nível absoluto e fundador é Cristo. O nível relativo e fundado é a Igreja. Cristo é o sol que irradia por si mesmo, a Igreja, a lua, iluminada pelo sol. Como todas as Igrejas carregam a memória de Jesus, todas devem viver em comunhão de reciprocidade. Juntas em relação recíproca formam a única Igreja de Jesus e de Deus na Terra. O que importa, na verdade, não são tanto as Igrejas, mas o fenômeno cristão e sua função benfazeja para a espiritualidade dos seres humanos. Todas as Igrejas são de Cristo mas Cristo é para os humanos e os humanos são para os outros humanos, homens e mulheres, e todos são para Deus. E a libertação continua. Não são poucos os que perguntam: a quantas anda a teologia da libertação? Não obstante o persistente controle por parte das autoridades doutrinárias do Vaticano, ela continua viva nas Igrejas que tomaram a sério a opção pelo pobres, contra a pobreza e em favor da vida e da libertação. Karl Marx (1818-1883) não foi nem é pai e padrinho deste tipo de teologia. Ela nasceu como resposta ao grito dos oprimidos e dos estertores da Terra. Ao agravar-se a injustiça social e ecológica, esse grito se transformou hoje em clamor. Daí a permanente atualidade da teologia da libertação nos lugares onde cristãos se recusam a aceitar essa anti realidade e encontram em sua fé motivos poderosos para lutar contra ela, ombro a ombro com outros. No âmbito das Igrejas ela lançou raízes nas cem mil comunidades de base, nos milhares e milhares de círculos bíblicos e nas várias pastorais sociais. Nestes espaços os cristãos aprendem a confrontar página da Bíblia com página da realidade e derivar compromissos transformadores. No âmbito da sociedade, a teologia da libertação ganhou corpo em inúmeros movimentos sociais, como nos Sem-Terra, em alguns movimentos de negros, de indígenas, de mulheres marginalizadas e outros. A assim chamada Igreja da libertação comparece como uma das forças que ajudou a fundar o Partido dos Trabalhadores (PT) e ainda hoje lhe dá substância ética e espiritual e lhe garante caráter popular. Fenômeno relevante é constatar que ela penetrou no campo especificamente político e contribuiu na elaboração de uma nova ética pública. Como se não bastasse, fez suscitar uma mística de transformação e de cuidado para com as coisas do povo, sem a qual as políticas sociais correm risco de se atolarem no pântano do populismo e desembocarem em medidas pobres para com os pobres. Pude constatar tal fato nos inícios de maio quando me coube dar palestras e debates, a convite de grupos da Igreja da libertação e do Governo petista de Jorge Viana no Acre – Brasil. Estive muitas vezes neste Estado nos anos 70 e 80, pois aí se instaurava um dos ensaios de Igreja libertadora dos mais consistentes sob a animação da excepcional figura do bispo Dom Moacyr Grecchi (1936-  ) e hoje continuada pelo Pe. Luiz Ceppi, articulador inteligente entre fé, política e libertação. Esta Igreja não só organizou vasta rede de comunidades eclesiais de base senão que formou quadros comprometidos com a realidade da floresta. Estes quadros ganharam hoje a cena política, como o Governador Jorge Viana, seu irmão, o senador Tião Viana, a seringueira e senadora Marina Silva, o deputado federal e teólogo leigo Nilson Mourão entre tantos outros, de grande valor ético e político. Eles implementam uma política democrática e popular, realmente inspirada nos ideais da libertação. Não há espaço para detalhar os conteúdos do projeto político em curso no Acre. Mas cabe ressaltar duas características relevantes. A primeira, a criação de uma metáfora forte que define ação política: “governo da floresta” e “florestania”. Desenvolvimento não se faz destruindo a floresta, mas preservando-a, extraindo dela sua incomensurável riqueza e integrando quem lá habita. A segunda, foi a de ter criado uma verdadeira mística de reinvenção do Acre que se apoderou das mentes e corações de seus operadores. Irradia-se uma aura benfazeja que impregna a todos, num despojamento exemplar dos símbolos de poder em função dos ideais de cuidado com o bem comum e de aproximação à realidade crua do povo. Mais importante que a teologia da libertação, é a libertação concreta dos oprimidos. Tal evento é parte da política de Deus no mundo, chamada, não Igreja, mas Reino de Deus. Florestania: cidadania na floresta. Na Amazônia assim se pensava e assim se agia: desmatar é desenvolver. Nesta lógica se tem desmatado 15 hectares por minuto. Este floresticídio está sendo sustado pela florestania, política proposta pelo governo do Acre sob os cuidados do jovem governador Jorge Viana (PT). Seu lema: “Governo da floresta”. Meta visada: “florestania”, cidadania na floresta. Que significam esses conceitos? Ponto de partida é este: para realidades novas, palavras novas, consoante a sabedoria de Jesus: “para vinhos novos, odres novos”. Qual a novidade? Entender a floresta amazônica como base para um novo modelo sócio econômico fundado no extrativismo sem depredar a floresta. Tal proposta rasga caminho novo, dando viabilidade ao que alguns teóricos chamam de “modo de produção amazônico”. O governo Jorge Viana soube captar a singularidade da floresta e decidiu aproveitar as vantagens comparativas do Acre. Destarte seu projeto de desenvolvimento sócio ecológico dá corpo aos sonhos de Chico Mendes (1944-1988). Se for bem sucedido e tudo indica que será, outorgará a seu governo um perfil singular e tornar-se-á paradigma referencial para toda a região amazônica. Vale observar que o Acre herdou uma situação privilegiada: apenas 10% de seu território foi desmatado e 30% dele compõe áreas de conservação. O desafio reside na correta articulação entre floresta, desenvolvimento e cidadania. O eixo articulador é a floresta, o grande capital natural e também cultural, pois não se pode entender a floresta sem a cultura dos povos da floresta. Num texto programático “o desenvolvimento que queremos”, o Governo da Floresta estabelece metas que estão sendo implementadas: criação de florestas públicas estaduais de produção, valorização da atividade extrativista, com o estabelecimento de usinas de beneficiamento da castanha-do-Brasil, produção da borracha, construção de centenas de casas-de-farinha, manejo sustentável da madeira de lei como o mogno e de outras espécies ainda não utilizadas na confecção de móveis, aproveitamento do couro vegetal, levantamento dos óleos e corantes vegetais, de substâncias alcaloides para a farmacologia e aromáticas, e de outras de valor herbicida e fungicida, entre tantos outros projetos. Tão importante quanto o plano ecológico econômico é o plano político social que vem sob o nome de Florestania. Trata-se de uma palavra que combina “floresta” com “cidadania”. Significa então realizar “a cidadania na floresta” através de uma nova consciência de que as populações rurais, ribeirinhas, indígenas e extrativistas só têm vantagens em ficar na floresta. Aí dentro de seu meio ecológico serão assistidas com saúde, educação, formação profissional e lazer. A isso se ordenam os Centros de Florestania, as Escolas de Florestania e os Programas de Educação Indígena e de Política de desenvolvimento sempre em parceria com as comunidades e o governo. Tais projetos não são pensados e executados a partir de escritórios refrigerados, mas mediante uma política da pele, do conhecer as entranhas povo, do olhar fundo nos seus olhos, enfrentado longas caminhadas “de pés”, a cavalo, de motor ou de avioneta (avião de pequena dimensão) para encontrar as pessoas lá onde vivem e sonham. Eis uma política, no sentido de Gandhi, como gesto amoroso para com o povo. No Acre - estado brasileiro encravado na região da Amazônia. www.leonardoboff.com.br. Abraço. Davi.

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