Religião
Afro-brasileira. Candomblé. Livro O Candomblé da Bahia Rito Nagô. Tradução de Maria
Isaura Pereira de Queiroz (1918-2018). OS QUATRO COMPARTIMENTOS DO COSMO II. O
papel dos Orixá é, pois, estabelecer uma classificação das plantas no caos da
natureza selvagem, de tal modo que permita o uso racional delas pelo Olosaim.
Esta classificação é certamente muito diferente da de um Linneu, mas não deixa
de ser uma tentativa de interpretação do mundo vegetal ao mesmo título que a
daquele sábio. Obedece a outras regras, mas obedece a regras. Podemos
distinguir duas utilizações das "ervas", a utilização religiosa como
por exemplo na lavagem da cabeça yauô, e a utilização medicinal. No primeiro
caso, a regra em ação é simbólica, no segundo caso a regra é participante. As
ervas estão ligadas a esta ou àquela divindade, de acordo com as analogias que
podem apresentar para com ela. Por exemplo, a cor de Oxalá sendo o branco, o
tapete de Oxalá cujas folhas são circundadas por uma espécie de pelo branco, e
o algodão, que no arrebentar das sementes deixa escapar a brancura imaculada de
seus flocos, são atribuídos a Oxalá. A folha de fogo, que tem um colorido
avermelhado, a dormideira vermelha ( mas somente a desta cor) são atribuídas a
Xangô e a Yansan porque a cor destes dois santos é o vermelho. Existe também
certo parentesco entre a cor das vestes, a das contas do colar e o das ervas de
cada divindade. Outras vezes, porém, é a forma em lugar da cor que se leva em
consideração; por exemplo, a espada de Ogun tem a forma de uma faca, o Ogun é o
deus de ferro, o rei da guerra, o padroeiro dos assassinos; a casadinha
apresenta sobre as folhas uma espécie de montículos, como que verrugas que lhe
dão o aspecto das pústulas cobrindo o corpo de Omolú, o santo da varíola. E se
a urtiga é igualmente atribuída a esta divindade, é porque quem nela se esfrega
apanha coceiras semelhantes às de diversas dermatoses. Os olhos de Santa Luzia
pertencem a Yemanjá Porque parecem, na verdura dos campos, pedaços minúsculos
ao mar mirando o azul do céu. Noutros casos o que importa é o perfume, pois
pode-se estabelecer correspondências entre os perfumes (os que saneiam a
atmosfera, os acres, os voluptuosos) e o caráter das divindades de purificação
- Oxalá; de luta - Ogun; da sensualidade - Oxun. Note-se que o emprego
religioso das plantas não tem nada em comum com seu emprego medicinal. O
rosmaninho, por exemplo, pertence a Oxalá devido ao perfume purificador e não
às propriedades terapêuticas, pois não há ligação alguma entre a tosse, curada
com infusões de rosmaninho, e o deus do céu. Se a espada de Ogun está ligada ao
deus da guerra, é devido à sua forma e não por ser diurética. Eis porque os
dados dos ervanários não podem nos servir para penetrar no mundo mental dos
adeptos dos candomblés. Todavia, os Olosaim não são chamados apenas para
preparar os banhos das yauô, mas também para curar os doentes. Existe, então,
uma classificação medicinal das ervas; mas, como veremos, ela obedece também a
outras preocupações diferentes das dos ervanários. Os Orixá estão ligados às
várias partes do corpo humano. Existe uma anatomia mística, também, do mesmo
modo que existe uma geografia mística do espaço. Esta anatomia vai responder à
lei das correspondências, o microcosmo reflete o macrocosmo. Exú guarda as
entradas, vigia as aberturas, é colocado no limiar da porta; comandará, pois, todas
as vias bucais e das outras aberturas do corpo. Eis porque se ligará à carrapateira
cujos grãos servem para fabricar rosários destinados a fazer desaparecer os
papos, ou cuja infusão é empregada contra as inflamações dos gânglios do
pescoço. Ou ainda ao caruru, que é considerado desobstruente, laxativo. Xangô é
divindade do fogo; pune, pois, aqueles que lhe querem mal mandando-lhes febre,
e as ervas que lhe serão atribuídas serão tidas como folhas febrífugas: folha
de fogo, betis cheirosa. Oxalá considerado como abóboda celeste que cobre o
mundo e também como divindade suprema correspondente à cabeça do homem; terá
para si as plantas que combatem as cefaleias e outras doenças da cabeça:
rosmaninho basilisco. Omulu corresponde à pele e castiga os que lhe querem mal enviando-lhes
todas as doenças que a ela atacam, ou que atacam superficialmente a carne: dermatoses,
erisipela, varíola, lepra. Como tais doenças começam muitas vezes a se manifestar
por vômitos, terá sob sua guarda as plantas estomacais. Ou ainda, como as
erupções cutâneas são interpretadas pelo povo como efeito do "sangue
ruim" que quer sair, terá também sob sua jurisdição as diversas plantas
depurativas, como o valame. Yemanjá e Oxun, divindades úmidas, comandam o
ventre, e a última principalmente o baixo ventre; castigam enviando cólicas,
atacando as partes genitais; pelas mesmas razões governarão, principalmente
Oxun, as ervas antissépticas, desinflamatório como o malmequer. A virtude
medicinal das plantas silvestres não é, pois, ignorada e neste ponto a arte do
olosaim encontra a do ervanário; ou a dos curandeiros brancos e caboclos que
abundam no sertão do Brasil, ao mesmo tempo demasiado extenso e muito pouco
povoado para que o médico possa nele facilmente se integrar. Mas, enquanto o
curandeiro ou o ervanário se interessam unicamente pelas propriedades
terapêuticas, o olosaim formula a respeito uma explicação, tomando-as um
elemento da teoria dos Orixá. Introduz imediatamente a planta num sistema
classificatório e de correspondências: entre uma divindade e uma parte do corpo
humano, entre esta parte do corpo humano e a planta salvadora, finalmente entre
esta planta e seu Orixá correspondente. De tal modo que se fecha o círculo. Este
pode ser percorrido em dois sentidos: da planta para o Orixá, e é assim que ela
encontra seu lugar no sistema; do Orixá para a planta, e é assim que se
compreende a gênese de sua virtude medicinal. Pois o santo faz adoecer e cura;
é todo poderoso em relação a parte do corpo que lhe pertence; quando não lhe
dispensam homenagens, pode desencadear sobre ele sua cólera; no entanto, se o
devoto mostra arrependimento, concede a erva que cicatrizará a própria carne
que feriu. Como se vê, o mundo dos homens, o mundo da floresta constituem dois
reinos diferentes; mas um e outro estão presos ao mundo das divindades. Há
ligação entre os acontecimentos vividos, as plantas selvagens, os Orixá que
estão no céu. Estes últimos constituem o princípio de classificação que engloba
em suas malhas todo o real, através da concepção das dependências. Nada tem de
estranho este jogo de reflexos, uma vez que céu e terra são duas meias cabaças,
sendo a de baixo simétrica da de cima. O domínio dos mortos, ao contrário, é
radicalmente diferente. Lembremos que vivem no círculo de água que, no local
exato em que ambas as cabaças se unem, encerra-lhes os bordos. Se, em lugar de
partirmos da imagem concreta do mundo, tomarmos por base sua imagem
"falada", isto é, a cruz formada pelos quatro odu e desenhada no capítulo
precedente, chegamos à mesma conclusão. O braço de baixo é o reflexo do de cima
na superfície tranquila da água, mas a linha vertical corta a linha horizontal
em duas metades antagônicas, a do dia e a da obscuridade. Não há mais aqui
imagem refletida, há direção em dois sentidos contrários. E possível objetar
que a morte figura entre os odu. Mas é preciso não confundir morte que é
acontecimento, com mortos que são seres, desencarnados sem dúvida, mas em todo
o caso, seres. De tal modo que a ligação entre o terceiro reino, o dos
babaloge, e os outros dois, não se realiza senão pela intervenção de Yansan.
Mas note-se que esta ligação é uma relação de luta: Yansan combate contra os
Egun. E ela, porém, que sai vitoriosa
da
batalha, e assim a supremacia dos Orixá sobre o conjunto do cosmos permanece
apesar de tudo assegurada, malgrado a heterogeneidade dos compartimentos em que
está repartido. Na África, os Orixá são deuses de clãs; são considerados como
antepassados que outrora viveram na terra e que foram divinizados depois da
morte. Mas ao mesmo tempo constituem forças da natureza, fazem chover, reinam sobre
a água doce, ou representam uma atividade sociológica bem determinada, a caça,
a metalurgia; não são, pois, adorados apenas pelos descendentes, membros do
clã, mas ainda por todos os que necessitam de seu apoio - camponeses que
desejam boas colheitas, pescadores, ferreiros. Estes dois caracteres não são
contraditórios. Seria lícito imaginar, seguindo a linha de pensamento de Mauss,
por exemplo, a sociedade primitiva como formada por certo número de clãs, cada
clã possuindo função ritual bem especializada que seria exercida a bem do interesse
geral, do interesse do conjunto da tribo. Um clã estaria encarregado dos ritos
de chuva, outro dos ritos da fecundidade animal, outro do apaziguamento do mar (...).
Isto explicaria como e porque os antepassados míticos dos diversos clãs, depois
de terem sido os donos das "magias" que agiam sobre as forças da
natureza, acabavam por simbolizar estas próprias forças. A religião entraria na
lei das trocas, dos dons e dos contra dons; ver-se-ia envolvida nesta
complementaridade de serviços, e a unidade da etnia teria por base a divisão do
trabalho religioso. Todavia, há ainda algo mais; sempre continuando na linha desta
interpretação do pensamento de Mauss, e agora também de Durkheim, compreende-se
a organização clânica da sociedade como o modelo da organização do cosmos; cada
clã se vê ligado não apenas a um ritual apropriado, de que é o possuidor - sob
condição de utilizá-lo em benefício da coletividade maior - mas também a toda
uma série de cores, de plantas, de animais, a uma direção do espaço, a uma
estação do ano. A estrutura social fornece o primeiro modelo para a estrutura
do cosmos. Contudo, como dissemos em nosso prefácio, não queremos colocar
problemas de gênese; além disso, nada nos permite supor que o social preceda em
existência ao místico. A distribuição das coisas entre os clãs precederia ou
não a distribuição dos clãs entre os deuses? Percebemos bem que existe um
sistema estrutural ao qual estão presos ao mesmo tempo os grupos humanos e os
grupos cósmicos; não podemos adivinhar se foi o metafísico ou o sociológico que
serviu de primeiro princípio a esta classificação; se as coisas estão englobadas
na classificação social; ou se o social se insere na classificação das coisas.
Em todo caso, quando passamos da África para o Brasil, os clãs africanos
desaparecem na confusão das misturadas étnicas, no caos das relações sexuais A
escravidão destruí a sociedade tribal. o regime das grandes fazendas misturam raças
e clãs. Os Orixá conservam, sim, seus mitos de antepassados divinizados, mas
não são mais deuses de clãs; são deuses das confrarias religiosas
especializadas. Perdem pois seus caracteres de chefes de linhagens. Aparecem daí
por diante unicamente como personificações da tempestade, da guerra, do vento e
do arco-íris. São personificações das diversas forças da natureza. Isso é o que
os distingue das plantas de Ossaim. O que os torna um reino à parte do cosmos -
se dirigem as forças da natureza, dirigem-nas do alto. Do céu em que habitam.
Do céu de que formam a corte real. Se os laços entre os Orixá e os clãs se romperam
persistem todavia os laços entre esses mesmos Orixa e as cores, as estações, etc.
Mesmo aceitando a hipótese de Mauss e Durkheim sobre a origem social das
primeiras classificações de conceitos, e não considerando o social como
inserido numa categoria que lhe seria anterior. Aqui o fato é inelutável: no
Brasil, a classificação não apresenta mais caráter sociológico; é puramente
religiosa. Deixemos, pois, de lado hipóteses que não seriam de nenhum auxílio
em nosso caso, e nem tentemos resolver o problema insolúvel da gênese. Nossa
tarefa consiste somente em analisar o sistema dos Orixa, do ponto de vista de
sistema classificatório das coisas. Todo santo está ligado a determinada cor, a
certos metais, a certos animais, a certos fenômenos meteorológicos e também,
como vimos, a certos acontecimentos e a certas plantas. Assim também a
determinado espaço (mar, floresta ...) e a determinado tempo (este ou aquele
dia da semana). É claro que não conhecemos todas as ligações; à medida que
vamos mais e mais penetrando no mundo dos mitos, das lendas, ou que observamos
melhor os comportamentos e atitudes dos membros do candomblé, seremos
certamente levados a complicar, a aumentar o número de ligações já conhecidas.
Mas mesmo não podendo afirmar que nosso quadro esteja terminado, é todavia
suficientemente amplo para tornar bem evidente o caráter classificat6rio dos
Orixá. Toda uma série de lendas explica ou justifica estas ligações por meio da
própria história do santo. Basta tomar um único exemplo para dar ideia desta
mitologia classificatória; nosso exemplo será Xangô. Se a cor de Xangô é a
mistura de vermelho e branco é porque de direito o vermelho lhe pertence, como
senhor do fogo; mas carregou nos braços seu velho pai Oxalá quando este, com os
membros alquebrados, saía da prisão; daí por diante, em recordação deste gesto
de afeição filial, mistura o branco, que é a cor de Oxalá, ao vermelho de suas
vestes, entrelaça contas brancas às contas vermelhas de seus colares; mas o giz
que lhe é consagrado permanece vermelho (o giz branco só serve para os desenhos
de Oxalá). Na Bahia me foi contado outro mito que explica de maneira diversa a
mistura das duas cores: Xangô estava muito enamorado de Oxun, filha de Oxalá,
mas esta não consentiu em desposar o deus do raio senão sob condição de que este
transportaria nas costas o velho pai que, devido à idade, estava incapaz de
andar para ir à festa nupcial. Desde esta aliança, o vermelho de Xangô se casa
ao branco de Oxalá. Se o carneiro é o seu animal, foi porque Xangô o encarregou
de se apoderar pela astúcia do martim-pescador, com o fito de puni-lo de sua
indiscrição pois, muito falador, contava tudo o que se fazia em casa. Se Xangô
adora quiabos (Hibiscus esculentus), é porque este alimento lhe fez esquecer a
rivalidade com Ogun e até mesmo seu amor por Oxun. Assim, as menores
participações, as menores ligações estão sempre justificadas por histórias
apropriadas. E o que acabamos de dizer para Xangô, vale naturalmente para todos
os outros Orixá. Estas biografias dos deuses não interessam ao nosso trabalho.
Podemos deixá-las de lado para examinar apenas a classificação das coisas em
categorias divinas. Ora, aqui deparamos com uma primeira dificuldade. Cada
Orixá é múltiplo: há, por exemplo, doze Xangôs, dezesseis Oxun, dezessete
Yansan, vinte e um Exú. Como explicar esta multiplicidade e a determinação dos
diferentes algarismos? Uma ialorixá a quem coloquei a questão, deu-me
interpretação sociológica: os africanos trazidos como escravos pertenciam a
múltiplas tribos, cada
qual
com seu Oxalá, seu Omolú, seu Ogun. No Brasil, estas etnias mantiveram seus
cultos, reconhecendo que, sob nomes diferentes, adoravam no fundo as mesmas
divindades. Daí a justaposição dos nomes e a multiplicidade dos Orixá. Há algo
de certo nesta explicação. Cada candomblé pertence a uma "nação" e
cada "nação" dá nomes diferentes aos seus deuses. Por exemplo, Oxalá
se chama Lembá nos terreiros Congo, Lembarengangá nos terreiros Angola. Exú é
denominado Legba nos candomblés de origem Dahomeana e Bombonjira nos de origem Banto.
Assim como Oxun tem o nome de Aziri nos primeiros de Kissimbi nos segundos. Mas
não são estas designações étnicas que constituem problema para nós; além destas
variações de "nação" para ''nação", há pluralidade de Xangô, de
Ogun, de Exú, dentro de uma mesma etnia. E por outro lado, se a sociologia
oferecesse a chave do problema, não encontraríamos algarismos diferentes ao
passar de uma divindade para outra. Pois somente um acaso extraordinário faria
se terem reunido indivíduos pertencentes a 12 clãs de Xangô, 7 clãs de Ogun,
dezesseis clãs de Oxun, tanto mais que os algarismos destas divindades são
justamente doze, sete e dezesseis. Cada uma das sub divindades possui seus
mitos especiais. Por exemplo, o mais velho de todos os Xangô, Aira, é que foi
encarregado de reconduzir o velho Oxalá ao reino de seu filho, Oxaguian. Oxun Ioni
é o centro de um mito que não encontramos na história de outras Oxun: Oxun era
rainha de um grande e rico território. Este foi invadido pelos Ioni, atraídos
pelo renome desta riqueza fabulosa. Triunfaram da rainha, se apoderaram da
capital, saquearam o país, tomaram conta da fortuna da soberana. Oxun, para não
ser aprisionada, foi obrigada a fugir aproveitando a escuridão da noite; subiu
numa jangada e dirigiu a deus uma oração fervorosa. Depois, sob inspiração divina,
pediu a seus súditos que preparassem abará e deixassem nas margens. Quando os
invasores chegaram à beira da praia, estavam famintos, se precipitaram sobre os
abará, que comeram. Dentro não havia veneno e sim força divina. Todos caíram
mortos. E assim Oxun pode retomar posse, ao mesmo tempo de sua fortuna e de seu
território. Daí por diante, devido à vitória, tomou o nome de Oxun-Ioni. Esta
diversidade de nomes e de lendas permite-nos alvitrar que cada uma destas sub divindades
deve desempenhar função diferente; com efeito, é o que parece se dar. Por
exemplo, vimos que a apetebi era forçosamente uma filha de Oxun, mas não de
qualquer Oxun: unicamente de Yaba Omi. Vimos igualmente que Yansan tinha
vencido a morte e que por esta razão intervinha no axêxê e na sociedade dos
Egun; mas aqui também não se trata de qualquer Yansan e sim de uma das
dezessete Yansan cujo nome não me disseram, mas que talvez seja Muria-Yansan
(nome do personagem que a representa na festa de Egun). Do mesmo modo, entre os
vinte e um Exú, existe um que está encarregado do que se passa na rua, é Olodé,
outro é escravo de Oxalá, AteJú; um vela sobre os portões, outro reina sobre as
encruzilhadas; um é malvado, outro é protetor das habitações. Página 203.
Abraço. Davi
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