quarta-feira, 28 de outubro de 2020

OS QUATRO COMPARTIMENTOS DO COSMO II

 

Religião Afro-brasileira. Candomblé. Livro O Candomblé da Bahia Rito Nagô. Tradução de Maria Isaura Pereira de Queiroz (1918-2018). OS QUATRO COMPARTIMENTOS DO COSMO II. O papel dos Orixá é, pois, estabelecer uma classificação das plantas no caos da natureza selvagem, de tal modo que permita o uso racional delas pelo Olosaim. Esta classificação é certamente muito diferente da de um Linneu, mas não deixa de ser uma tentativa de interpretação do mundo vegetal ao mesmo título que a daquele sábio. Obedece a outras regras, mas obedece a regras. Podemos distinguir duas utilizações das "ervas", a utilização religiosa como por exemplo na lavagem da cabeça yauô, e a utilização medicinal. No primeiro caso, a regra em ação é simbólica, no segundo caso a regra é participante. As ervas estão ligadas a esta ou àquela divindade, de acordo com as analogias que podem apresentar para com ela. Por exemplo, a cor de Oxalá sendo o branco, o tapete de Oxalá cujas folhas são circundadas por uma espécie de pelo branco, e o algodão, que no arrebentar das sementes deixa escapar a brancura imaculada de seus flocos, são atribuídos a Oxalá. A folha de fogo, que tem um colorido avermelhado, a dormideira vermelha ( mas somente a desta cor) são atribuídas a Xangô e a Yansan porque a cor destes dois santos é o vermelho. Existe também certo parentesco entre a cor das vestes, a das contas do colar e o das ervas de cada divindade. Outras vezes, porém, é a forma em lugar da cor que se leva em consideração; por exemplo, a espada de Ogun tem a forma de uma faca, o Ogun é o deus de ferro, o rei da guerra, o padroeiro dos assassinos; a casadinha apresenta sobre as folhas uma espécie de montículos, como que verrugas que lhe dão o aspecto das pústulas cobrindo o corpo de Omolú, o santo da varíola. E se a urtiga é igualmente atribuída a esta divindade, é porque quem nela se esfrega apanha coceiras semelhantes às de diversas dermatoses. Os olhos de Santa Luzia pertencem a Yemanjá Porque parecem, na verdura dos campos, pedaços minúsculos ao mar mirando o azul do céu. Noutros casos o que importa é o perfume, pois pode-se estabelecer correspondências entre os perfumes (os que saneiam a atmosfera, os acres, os voluptuosos) e o caráter das divindades de purificação - Oxalá; de luta - Ogun; da sensualidade - Oxun. Note-se que o emprego religioso das plantas não tem nada em comum com seu emprego medicinal. O rosmaninho, por exemplo, pertence a Oxalá devido ao perfume purificador e não às propriedades terapêuticas, pois não há ligação alguma entre a tosse, curada com infusões de rosmaninho, e o deus do céu. Se a espada de Ogun está ligada ao deus da guerra, é devido à sua forma e não por ser diurética. Eis porque os dados dos ervanários não podem nos servir para penetrar no mundo mental dos adeptos dos candomblés. Todavia, os Olosaim não são chamados apenas para preparar os banhos das yauô, mas também para curar os doentes. Existe, então, uma classificação medicinal das ervas; mas, como veremos, ela obedece também a outras preocupações diferentes das dos ervanários. Os Orixá estão ligados às várias partes do corpo humano. Existe uma anatomia mística, também, do mesmo modo que existe uma geografia mística do espaço. Esta anatomia vai responder à lei das correspondências, o microcosmo reflete o macrocosmo. Exú guarda as entradas, vigia as aberturas, é colocado no limiar da porta; comandará, pois, todas as vias bucais e das outras aberturas do corpo. Eis porque se ligará à carrapateira cujos grãos servem para fabricar rosários destinados a fazer desaparecer os papos, ou cuja infusão é empregada contra as inflamações dos gânglios do pescoço. Ou ainda ao caruru, que é considerado desobstruente, laxativo. Xangô é divindade do fogo; pune, pois, aqueles que lhe querem mal mandando-lhes febre, e as ervas que lhe serão atribuídas serão tidas como folhas febrífugas: folha de fogo, betis cheirosa. Oxalá considerado como abóboda celeste que cobre o mundo e também como divindade suprema correspondente à cabeça do homem; terá para si as plantas que combatem as cefaleias e outras doenças da cabeça: rosmaninho basilisco. Omulu corresponde à pele e castiga os que lhe querem mal enviando-lhes todas as doenças que a ela atacam, ou que atacam superficialmente a carne: dermatoses, erisipela, varíola, lepra. Como tais doenças começam muitas vezes a se manifestar por vômitos, terá sob sua guarda as plantas estomacais. Ou ainda, como as erupções cutâneas são interpretadas pelo povo como efeito do "sangue ruim" que quer sair, terá também sob sua jurisdição as diversas plantas depurativas, como o valame. Yemanjá e Oxun, divindades úmidas, comandam o ventre, e a última principalmente o baixo ventre; castigam enviando cólicas, atacando as partes genitais; pelas mesmas razões governarão, principalmente Oxun, as ervas antissépticas, desinflamatório como o malmequer. A virtude medicinal das plantas silvestres não é, pois, ignorada e neste ponto a arte do olosaim encontra a do ervanário; ou a dos curandeiros brancos e caboclos que abundam no sertão do Brasil, ao mesmo tempo demasiado extenso e muito pouco povoado para que o médico possa nele facilmente se integrar. Mas, enquanto o curandeiro ou o ervanário se interessam unicamente pelas propriedades terapêuticas, o olosaim formula a respeito uma explicação, tomando-as um elemento da teoria dos Orixá. Introduz imediatamente a planta num sistema classificatório e de correspondências: entre uma divindade e uma parte do corpo humano, entre esta parte do corpo humano e a planta salvadora, finalmente entre esta planta e seu Orixá correspondente. De tal modo que se fecha o círculo. Este pode ser percorrido em dois sentidos: da planta para o Orixá, e é assim que ela encontra seu lugar no sistema; do Orixá para a planta, e é assim que se compreende a gênese de sua virtude medicinal. Pois o santo faz adoecer e cura; é todo poderoso em relação a parte do corpo que lhe pertence; quando não lhe dispensam homenagens, pode desencadear sobre ele sua cólera; no entanto, se o devoto mostra arrependimento, concede a erva que cicatrizará a própria carne que feriu. Como se vê, o mundo dos homens, o mundo da floresta constituem dois reinos diferentes; mas um e outro estão presos ao mundo das divindades. Há ligação entre os acontecimentos vividos, as plantas selvagens, os Orixá que estão no céu. Estes últimos constituem o princípio de classificação que engloba em suas malhas todo o real, através da concepção das dependências. Nada tem de estranho este jogo de reflexos, uma vez que céu e terra são duas meias cabaças, sendo a de baixo simétrica da de cima. O domínio dos mortos, ao contrário, é radicalmente diferente. Lembremos que vivem no círculo de água que, no local exato em que ambas as cabaças se unem, encerra-lhes os bordos. Se, em lugar de partirmos da imagem concreta do mundo, tomarmos por base sua imagem "falada", isto é, a cruz formada pelos quatro odu e desenhada no capítulo precedente, chegamos à mesma conclusão. O braço de baixo é o reflexo do de cima na superfície tranquila da água, mas a linha vertical corta a linha horizontal em duas metades antagônicas, a do dia e a da obscuridade. Não há mais aqui imagem refletida, há direção em dois sentidos contrários. E possível objetar que a morte figura entre os odu. Mas é preciso não confundir morte que é acontecimento, com mortos que são seres, desencarnados sem dúvida, mas em todo o caso, seres. De tal modo que a ligação entre o terceiro reino, o dos babaloge, e os outros dois, não se realiza senão pela intervenção de Yansan. Mas note-se que esta ligação é uma relação de luta: Yansan combate contra os Egun. E ela, porém, que sai vitoriosa

da batalha, e assim a supremacia dos Orixá sobre o conjunto do cosmos permanece apesar de tudo assegurada, malgrado a heterogeneidade dos compartimentos em que está repartido. Na África, os Orixá são deuses de clãs; são considerados como antepassados que outrora viveram na terra e que foram divinizados depois da morte. Mas ao mesmo tempo constituem forças da natureza, fazem chover, reinam sobre a água doce, ou representam uma atividade sociológica bem determinada, a caça, a metalurgia; não são, pois, adorados apenas pelos descendentes, membros do clã, mas ainda por todos os que necessitam de seu apoio - camponeses que desejam boas colheitas, pescadores, ferreiros. Estes dois caracteres não são contraditórios. Seria lícito imaginar, seguindo a linha de pensamento de Mauss, por exemplo, a sociedade primitiva como formada por certo número de clãs, cada clã possuindo função ritual bem especializada que seria exercida a bem do interesse geral, do interesse do conjunto da tribo. Um clã estaria encarregado dos ritos de chuva, outro dos ritos da fecundidade animal, outro do apaziguamento do mar (...). Isto explicaria como e porque os antepassados míticos dos diversos clãs, depois de terem sido os donos das "magias" que agiam sobre as forças da natureza, acabavam por simbolizar estas próprias forças. A religião entraria na lei das trocas, dos dons e dos contra dons; ver-se-ia envolvida nesta complementaridade de serviços, e a unidade da etnia teria por base a divisão do trabalho religioso. Todavia, há ainda algo mais; sempre continuando na linha desta interpretação do pensamento de Mauss, e agora também de Durkheim, compreende-se a organização clânica da sociedade como o modelo da organização do cosmos; cada clã se vê ligado não apenas a um ritual apropriado, de que é o possuidor - sob condição de utilizá-lo em benefício da coletividade maior - mas também a toda uma série de cores, de plantas, de animais, a uma direção do espaço, a uma estação do ano. A estrutura social fornece o primeiro modelo para a estrutura do cosmos. Contudo, como dissemos em nosso prefácio, não queremos colocar problemas de gênese; além disso, nada nos permite supor que o social preceda em existência ao místico. A distribuição das coisas entre os clãs precederia ou não a distribuição dos clãs entre os deuses? Percebemos bem que existe um sistema estrutural ao qual estão presos ao mesmo tempo os grupos humanos e os grupos cósmicos; não podemos adivinhar se foi o metafísico ou o sociológico que serviu de primeiro princípio a esta classificação; se as coisas estão englobadas na classificação social; ou se o social se insere na classificação das coisas. Em todo caso, quando passamos da África para o Brasil, os clãs africanos desaparecem na confusão das misturadas étnicas, no caos das relações sexuais A escravidão destruí a sociedade tribal. o regime das grandes fazendas misturam raças e clãs. Os Orixá conservam, sim, seus mitos de antepassados divinizados, mas não são mais deuses de clãs; são deuses das confrarias religiosas especializadas. Perdem pois seus caracteres de chefes de linhagens. Aparecem daí por diante unicamente como personificações da tempestade, da guerra, do vento e do arco-íris. São personificações das diversas forças da natureza. Isso é o que os distingue das plantas de Ossaim. O que os torna um reino à parte do cosmos - se dirigem as forças da natureza, dirigem-nas do alto. Do céu em que habitam. Do céu de que formam a corte real. Se os laços entre os Orixá e os clãs se romperam persistem todavia os laços entre esses mesmos Orixa e as cores, as estações, etc. Mesmo aceitando a hipótese de Mauss e Durkheim sobre a origem social das primeiras classificações de conceitos, e não considerando o social como inserido numa categoria que lhe seria anterior. Aqui o fato é inelutável: no Brasil, a classificação não apresenta mais caráter sociológico; é puramente religiosa. Deixemos, pois, de lado hipóteses que não seriam de nenhum auxílio em nosso caso, e nem tentemos resolver o problema insolúvel da gênese. Nossa tarefa consiste somente em analisar o sistema dos Orixa, do ponto de vista de sistema classificatório das coisas. Todo santo está ligado a determinada cor, a certos metais, a certos animais, a certos fenômenos meteorológicos e também, como vimos, a certos acontecimentos e a certas plantas. Assim também a determinado espaço (mar, floresta ...) e a determinado tempo (este ou aquele dia da semana). É claro que não conhecemos todas as ligações; à medida que vamos mais e mais penetrando no mundo dos mitos, das lendas, ou que observamos melhor os comportamentos e atitudes dos membros do candomblé, seremos certamente levados a complicar, a aumentar o número de ligações já conhecidas. Mas mesmo não podendo afirmar que nosso quadro esteja terminado, é todavia suficientemente amplo para tornar bem evidente o caráter classificat6rio dos Orixá. Toda uma série de lendas explica ou justifica estas ligações por meio da própria história do santo. Basta tomar um único exemplo para dar ideia desta mitologia classificatória; nosso exemplo será Xangô. Se a cor de Xangô é a mistura de vermelho e branco é porque de direito o vermelho lhe pertence, como senhor do fogo; mas carregou nos braços seu velho pai Oxalá quando este, com os membros alquebrados, saía da prisão; daí por diante, em recordação deste gesto de afeição filial, mistura o branco, que é a cor de Oxalá, ao vermelho de suas vestes, entrelaça contas brancas às contas vermelhas de seus colares; mas o giz que lhe é consagrado permanece vermelho (o giz branco só serve para os desenhos de Oxalá). Na Bahia me foi contado outro mito que explica de maneira diversa a mistura das duas cores: Xangô estava muito enamorado de Oxun, filha de Oxalá, mas esta não consentiu em desposar o deus do raio senão sob condição de que este transportaria nas costas o velho pai que, devido à idade, estava incapaz de andar para ir à festa nupcial. Desde esta aliança, o vermelho de Xangô se casa ao branco de Oxalá. Se o carneiro é o seu animal, foi porque Xangô o encarregou de se apoderar pela astúcia do martim-pescador, com o fito de puni-lo de sua indiscrição pois, muito falador, contava tudo o que se fazia em casa. Se Xangô adora quiabos (Hibiscus esculentus), é porque este alimento lhe fez esquecer a rivalidade com Ogun e até mesmo seu amor por Oxun. Assim, as menores participações, as menores ligações estão sempre justificadas por histórias apropriadas. E o que acabamos de dizer para Xangô, vale naturalmente para todos os outros Orixá. Estas biografias dos deuses não interessam ao nosso trabalho. Podemos deixá-las de lado para examinar apenas a classificação das coisas em categorias divinas. Ora, aqui deparamos com uma primeira dificuldade. Cada Orixá é múltiplo: há, por exemplo, doze Xangôs, dezesseis Oxun, dezessete Yansan, vinte e um Exú. Como explicar esta multiplicidade e a determinação dos diferentes algarismos? Uma ialorixá a quem coloquei a questão, deu-me interpretação sociológica: os africanos trazidos como escravos pertenciam a múltiplas tribos, cada

qual com seu Oxalá, seu Omolú, seu Ogun. No Brasil, estas etnias mantiveram seus cultos, reconhecendo que, sob nomes diferentes, adoravam no fundo as mesmas divindades. Daí a justaposição dos nomes e a multiplicidade dos Orixá. Há algo de certo nesta explicação. Cada candomblé pertence a uma "nação" e cada "nação" dá nomes diferentes aos seus deuses. Por exemplo, Oxalá se chama Lembá nos terreiros Congo, Lembarengangá nos terreiros Angola. Exú é denominado Legba nos candomblés de origem Dahomeana e Bombonjira nos de origem Banto. Assim como Oxun tem o nome de Aziri nos primeiros de Kissimbi nos segundos. Mas não são estas designações étnicas que constituem problema para nós; além destas variações de "nação" para ''nação", há pluralidade de Xangô, de Ogun, de Exú, dentro de uma mesma etnia. E por outro lado, se a sociologia oferecesse a chave do problema, não encontraríamos algarismos diferentes ao passar de uma divindade para outra. Pois somente um acaso extraordinário faria se terem reunido indivíduos pertencentes a 12 clãs de Xangô, 7 clãs de Ogun, dezesseis clãs de Oxun, tanto mais que os algarismos destas divindades são justamente doze, sete e dezesseis. Cada uma das sub divindades possui seus mitos especiais. Por exemplo, o mais velho de todos os Xangô, Aira, é que foi encarregado de reconduzir o velho Oxalá ao reino de seu filho, Oxaguian. Oxun Ioni é o centro de um mito que não encontramos na história de outras Oxun: Oxun era rainha de um grande e rico território. Este foi invadido pelos Ioni, atraídos pelo renome desta riqueza fabulosa. Triunfaram da rainha, se apoderaram da capital, saquearam o país, tomaram conta da fortuna da soberana. Oxun, para não ser aprisionada, foi obrigada a fugir aproveitando a escuridão da noite; subiu numa jangada e dirigiu a deus uma oração fervorosa. Depois, sob inspiração divina, pediu a seus súditos que preparassem abará e deixassem nas margens. Quando os invasores chegaram à beira da praia, estavam famintos, se precipitaram sobre os abará, que comeram. Dentro não havia veneno e sim força divina. Todos caíram mortos. E assim Oxun pode retomar posse, ao mesmo tempo de sua fortuna e de seu território. Daí por diante, devido à vitória, tomou o nome de Oxun-Ioni. Esta diversidade de nomes e de lendas permite-nos alvitrar que cada uma destas sub divindades deve desempenhar função diferente; com efeito, é o que parece se dar. Por exemplo, vimos que a apetebi era forçosamente uma filha de Oxun, mas não de qualquer Oxun: unicamente de Yaba Omi. Vimos igualmente que Yansan tinha vencido a morte e que por esta razão intervinha no axêxê e na sociedade dos Egun; mas aqui também não se trata de qualquer Yansan e sim de uma das dezessete Yansan cujo nome não me disseram, mas que talvez seja Muria-Yansan (nome do personagem que a representa na festa de Egun). Do mesmo modo, entre os vinte e um Exú, existe um que está encarregado do que se passa na rua, é Olodé, outro é escravo de Oxalá, AteJú; um vela sobre os portões, outro reina sobre as encruzilhadas; um é malvado, outro é protetor das habitações. Página 203. Abraço. Davi

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