Religião
Afro-brasileira. Candomblé. Livro O Candomblé da Bahia – Rito Nagô. Tradução
Maria Isaura Pereira de Queiroz (1918-2018). OS QUATRO COMPARTIMENTOS DO COSMO
I. A oposição entre os quatro sacerdócios até agora estudados não é senão a
consequência da divisão quádrupla do universo. É lícito inquirir se estas
divisões são estanques, se nada nos permite passar de uma para a outra,
fazendo-as participar ou pelo menos se refletirem umas nas outras. Até este
momento, a oposição dos sacerdócios marca a oposição, a ruptura entre tais
compartimentos. E que oposição! O culto dos Orixá não é certamente privativo
das mulheres, mas as filhas de santo são infinitamente mais numerosas do que os
homens, e podem mesmo atingir o grau mais elevado da hierarquia sacerdotal, no
interior do candomblé; as seitas mais tradicionais, como já dissemos, são
dirigidas por ialorixás e não por babalorixás. Mas, ao contrário, o culto de
Ifa, assim como o de Ossaim e dos Egun, são cultos de homens; se a mulher pode,
em certas circunstâncias, consultar a sorte, só o pode fazer com os búzios e
nunca através do opelê. Esta divisão sexual da tarefa religiosa é reflexo da
divisão do mundo em duas partes, a dos deuses e a da criação. Tal diferenciação
primeira se complica com uma segunda: o babalaô, o Olosaim e os Oge não podem
cair em transe; nem Ifa, nem Ossaim, nem os Egun "descem"; embora
possuam seus cânticos e por vezes suas danças, não têm "cavalos" que
possam montar. O que prova bem que os Orixá habitam fora do mundo da criação,
transcendendo natureza e sociedade; pois só podem nos visitar por meio da
mediunidade da encarnação; o termo "baixar", que define o transe, é
característico desta transcendência. É certo que aqueles deuses intervêm
através das nozes de kola, mas então não "baixam", "falam".
Enquanto as
yauô
desempenham o papel das divindades, o babalaô le e traduz "palavras''. Uma
última diferença é a que distingue os Egun dos Orixá. A gente da Bahia diz dos
primeiros que são "aparições", e dos segundos que são
''manifestações". Está aí toda a diferença entre o transe e a máscara. Na
possessão divina, é o próprio rosto que se transforma em máscara, que se
contrai em traços duros para figurar Ogun guerreiro, em traços de orgulho real
para figurar Xangô, em traços cheios de volúpia sensual ou lúbrica para figurar
Oxun. No caso dos mortos, o corpo fica escondido nas dobras de amplas vestes; é
proibido, sob pena de morte, adivinhar o rosto, tocar no Egun; os antepassados
são máscaras e a sociedade secreta é o primeiro teatro negro do Brasil. Como
objeção poderia ser levantado o caso de Omulú; quando uma filha de santo é
possuída por esta divindade, esconde a cabeça num grande capuz de palha que
impede que lhe vejam o rosto; mas é porque sua face está então coberta de
pústulas, corroída de lepra, não é agradável de ser vista pelos espectadores.
Todavia, sob o capuz, a filha de Omulú está em transe enquanto que, no seu
disfarce, aquele que desempenha o papel de Egun não está; ele é efetivamente o
morto que regressou, não está possuído por este. Em suma: os sacerdotes dos
candomblés encarnam os Orixá; os sacerdotes de Ifa escutam as
"palavras" dos Orixá; os sacerdotes de Ossaim colhem as ervas dos
Orixá; e os sacerdotes dos Egun representam o exército dos mortos. Ou ainda: os
babalaô são os sacerdotes dos homens enquanto indivíduos e das coletividades
sociais enquanto relações entre homens; os olosaím são os sacerdotes da
natureza viva - e se o termo de "vivo" não fosse tão importante,
ficaríamos tentados em dizer que a distinção entre os dois sacerdócios equivale
à que existe entre res e personae; os ogo são os sacerdotes dos mortos; os
babalorixá ou íalorixá são os sacerdotes dos deuses. Costuma certo tipo de
sociologia submergir a personalidade dos chamados "primitivos" dentro
do todo social; insiste na homogeneidade das crenças e dos sentimentos, no
conformismo dos gestos e das atitudes, nas similaridades psíquicas, como se as
representações coletivas não se diferenciassem, não se colorissem
diferentemente conforme os sêres que as vivem. No entanto, o que a divisão do
trabalho vai desentranhar não é o indivíduo, mas o individualismo, coisa muito
diferente. Todos os etnógrafos que viveram entre tribos as mais
"primitivas" são concordes em reconhecer que seus membros distinguem
as idiossincrasias pessoais. Poderíamos ir mesmo mais longe e descobrir mais ou
menos por tôda a parte uma primeira filosofia da individuação, que chegaria até
a lembrar as disputas da Idade Média, pois trata-se realmente de saber, quase
sempre, se o princípio da individuação é o espírito ou a matéria, o reflexo das
diferenças míticas ou, como diz Maurice Leenhardt (1878-1954) a propósito dos
Canacas da Nova Caledônia, o fato de se possuir um corpo. Se quisermos
descobrir a concepção afro-brasileira da pessoa humana, é ao babalaô que
devemos nos endereçar, pois é ele o sacerdote dos indivíduos, o sacerdote da
pessoa humana enquanto pessoa. Sabe-se que na África, quando nasce uma criança,
tira-se o seu odu com duas nozes de kola. No entanto, somente chegando à idade
adulta é que irá fazer seu Ifa pessoal, pois "os Antigos nos ensinaram que
o indivíduo que não possui um Fa é um ser incompleto". Ora, esse Ifa não é
senão um odu desenhado na terra, terra que em seguida é posta num saquinho
branco ou numa cabaça e que, no momento da morte, ou será destruído, ou
herdado, ou enterrado com o defunto. Este odu, do qual o babalaô indicou previamente
ao consulente o significado, os sacrifícios que requer, os tabus que obriga a
respeitar, os provérbios que devem guiar a ação do seu possuidor, constitui de
certo modo o destino resumido da pessoa em questão. E como todos os indivíduos
têm o seu odu, mas o conjunto destes odu forma, apesar de tudo, uma lista
fechada, compreende-se ao mesmo tempo porque cada pessoa é diferente, e ao
mesmo tempo porque as diferenças não são ilimitadas, sendo possível uma
classificação dos caracteres. Toda uma psicologia sistemática existe em gérmen
no culto de Ifa. No Brasil, porém, parece que pelo menos atualmente não se tira
o Ifa pessoal. Temos mesmo a impressão de que se Martiniano Elizeu do Bonfim (1859-1943)
foi se iniciar na África, esta iniciação não consistiu tanto em interrogar os
sacerdotes de lá sobre a vida das divindades, mas em tirar seu Ifa pessoal a
fim de se tornar babalaô na Bahia, pois em sua cidade natal não encontrara
ninguém capaz de fazê-lo. Se o que se chama de "grande jôgo" na
Nigéria, desapareceu no Brasil, restam todavia as ideias suficiente em que se
baseava. Em primeiro lugar, a ideia de Eleda, isto é, anjo da guarda. Dennet
mostrou muito bem que Eleda não é um deus e sim o Ifa pessoal que se tirou, e
Trautmann define o Fa pessoal como sendo "o deus tutelar", "o
protetor" do indivíduo. Os africanos cristianizados, todavia, já o
identificam com o anjo da guarda que vela sobre cada um de nós. Ora, este
conceito de Eleda persiste entre os afro-brasileiros. O Padre Brazil não o
confunde com o Orixá que reside na cabeça de seus filhos; está, diz ele,
situado entre os deuses e os homens, ocupa uma posição intermediária. Há sem
dúvida, nas seitas bantos, tendência para confundir Eleda com o Orixá
particular de cada um, aquele que se recebeu o nome no momento da iniciação.
Mas as seitas mais tradicionais não fazem tal confusão, Eleda é realidade sui
generis. Em segundo lugar, se o adulto não desvenda mais seu Ifa, permanece o
costume para os pais, no momento do nascimento, de irem consultar o babalaô; o
odu que sai nesse momento não apenas nomeia o Orixá a que pertencerá a criança,
mas também dá certo número de indicações sobre o destino futuro do
recém-nascido. Enfim e principalmente, todos os meus informantes estavam de acordo
em dizer que cada indivíduo tem o seu Exú. Ora, o "grande jôgo" dos
Yoruba não consiste unicamente em descobrir o Ifa, mas também em tirar o Exú
individual pelo Babalaô: Exú de barro, regado de óleo de amêndoas, que será
colocado num buraco diante da casa e que daí por diante protegerá seu
possuidor. Por ocasião da morte deste, será destruído pela
"desconsagração", e para tal será regado com comidas tabu, cujo
efeito naturalmente será lhe tirar todas as forças, de tal modo que não poderá
mais servir a ninguém. Ora, temos a informação de que, mesmo fora de toda
consulta a Ifa, certos africanos da Bahia pedem a sacerdotes de seu
conhecimento que lhes fabriquem um Exú de barro para colocá-lo no chão de suas
casas, a fim de que os proteja. Mas mesmo que o Exú pessoal não se materialize
num Exú de barro, regado de ervas e de sangue, não deixamos, cada um de nós, de
ter um Exú, um "deus tutelar" como diria Trautmann. Podemos mesmo ir
mais longe. A passagem do Ifa individual para um Exú individual é o reflexo do
outro fenômeno que já tínhamos assinalado: a substituição progressiva da
adivinhação por meio do opelé, pela adivinhação com o dilogun; mudança que está
em processo no mundo dos babalaô da Bahia, vitória dos búzios sobre o colar de
nozes de kola, substituição, em suma, das "palavras" de Ifa pelas
"palavras" do Exú. Por isso mesmo, o princípio de individuação vai
tomar uma forma ligeiramente diferente. Mas antes de estudar esta forma, e
preciso fazer uma observação prévia: se o babalaô é obrigatoriamente um homem,
as mulheres, como os homens, podem consultá-lo quando lança os búzios. E aqui
novamente aparece uma exceção extraordinária, com relação ao que é de regra nos
candomblés: A íya-bassé não pode cozinhar os pratos das divindades quando está
menstruada; a yauô não poderá, também, ser possuída enquanto estiver neste
estado e, se alguma mulher menstruada penetra no santuário no decorrer da
festa, imediatamente os tambores desafinam; finalmente, as iniciadas não chegam
ao grau supremo do ialorixá senão quando, segundo a expressão popular,
"tornaram-se homens", isto é, depois da menopausa. No caso da
adivinhação, ao contrário, a mulher pode consultar o babalaô a qualquer momento
e em qualquer dia; a menstruação não constitui impedimento. Não se poderia
exprimir melhor o princípio da individuação em sua oposição ao princípio da
encarnação - o domínio da personalidade por oposição ao domínio dos Orixá. Ou,
noutros termos: o sangue catamenial pode constituir um estado perigoso para a
pessoa em determinadas circunstâncias, por exemplo, em suas relações com os
deuses; mas não impede que a pessoa permaneça uma pessoa, é um estado de
perturbação para o indivíduo, mas deixa intacta a individualidade. Pode-se
consultar o babalaô em cada dia da existência, ou apenas nos períodos de crise.
Cada odu que sai tem seu significado: um designa a ameaça de doença:, outro a
morte que rodeia em torno, o terceiro um inimigo, o quarto uma traição, o
quinto a pobreza; ou então, ao contrário, felicidade, riqueza, satisfação dos
desejos mais caros (...).De tal modo que a existência não passa de uma sucessão
de acontecimentos, felizes ou infelizes, ao sabor dos dias que se arrastam de
um para outro ano. Em certa medida, podemos escapar ao destino realizando os
sacrifícios recomendados. Mas o mito de Oxalá, que citamos a propósito da festa
de abertura do ano religioso, prova que o destino não permite senão pequenas
margens escapatória: Oxalá evita a morte, mas não evita a fratura dos seus
membros nem os sete anos que passa gemendo numa prisão. Se várias pessoas
consultam o babalaô no mesmo dia, os odu que saem são diversos para cada uma,
pois cada qual tem sua própria existência que não se confunde com a do vizinho.
Diríamos, pois, que o que constitui o princípio de individuação nesta filosofia
afro-baiana, é a história do indivíduo. E são essas histórias em justaposição,
que se entrelaçam, que se correspondem, mas que permanecem sempre autônomas,
que compõem a sociedade. Trama em que correm mil fios, cada fio tendo sua cor
diferente. Todavia, se o indivíduo é antes de tudo uma história, é também uma
história que pode ser definida. E justamente a função do babalaô é dar esta
definição através da leitura dos búzios. Todos os acontecimentos possíveis se
reduzem a certo número de casos típicos ou de conceitos - o acidente, a doença,
o dinheiro, etc. - e o que individualiza a pessoa humana são as variações de todas
as combinações possíveis de tais conceitos classificatórios entre si. As
combinações mudam porque cada homem tem a sua história, ou melhor, porque ele é
a sua história; tais combinações, porém, não passam de combinações de certas
classes de acontecimentos, caracterizadas pelo número de búzios caídos sobre o
lado aberto ou sobre o lado fechado. Cada uma das jogadas é ao mesmo tempo a
"palavra" de um santo. Ora é Ogun que fala, ora Xangô, ora Oxolá, o
que faz com que cada um dos acontecimentos tipo que podem surgir na existência
particular se ligue, pelo jogo e no jogo, a um Orixá determinado. Por exemplo,
se quatro búzios caem sobre os lados abertos e doze sobre os lados fechados, é
Xangô que fala e é ao mesmo tempo pobreza ou desastre. Se dez caem sobre os
lados abertos e seis sobre os lados fechados, é Yansan que fala e então o
espírito de um Egun persegue o vivente, tentando arrastá-lo consigo para o
túmulo ... De tal modo que tudo se passa como se os acontecimentos se
distribuíssem entre as divindades, como se cada uma dentre elas tivesse em
partilha dos conceitos classificatórios, cujas combinações constituem as
diversas existências particulares. Chegamos assim às conclusões seguintes: há
um primeiro domínio do cosmos, que é composto ele homens, é o domínio da
competência do babalaô, - cada homem se diferencia dos demais pelo conjunto de
acontecimentos que para ele surgem, pelo seu "destino"; o princípio
da individuação é a história da pessoa, história que não passa de uma
combinação de palavras significativas, pronunciadas pelos deuses; por isso
mesmo não é irracional, pode sempre se definir através dos búzios. Os deuses se
tornam assim o princípio da classificação dos acontecimentos: cada um governa
um acontecimento típico. Ao estudar a natureza, chegaremos a uma conclusão
análoga. Também aí os Orixá nos aparecerão como um princípio de classificação
do real. Ossaim é a divindade do mato. E
encontramos aqui imediatamente a separação entre o primeiro domínio, aquele sobre
o qual reina o babalaô, e o segundo domínio que depende do Olosaim. Quando o
homem aparece para domesticar a natureza, modificar a floresta em campo
cultivado, traçar as ruas da cidade, Ossaim ali não mais se encontra. Não vive
nem nas terras cultivadas, nem nas casas; como já dissemos, as plantas colhidas
nos quintais das habitações citadinas ou compradas no ervanário não têm nenhum
valor. O reino de Ossaim começa onde acaba o reino dos homens. E é por isso que
o homem, ao nele se aventurar, deve tomar certas precauções, obedecer a
determinado ritual, colocar no solo uma oferenda apropriada. Mas se Ossaim é o
"dono das ervas", se é a ele e só a ele que é preciso pedir a
autorização necessária para colhê-las, se é só a ele que é preciso pagar
tributo ao colhê-las, Seja um pouco de tabaco, seja alguns níqueis - cada uma
dessas folhas pertence ao mesmo tempo a um Orixá determinado. O mito de Cuba,
que talvez se encontre também no Brasil mas que nunca ouvimos contar na Bahia,
explica esta dupla dependência. Seja nos permitido citá-lo, pois mesmo ignorado
dos negros brasileiros não deixa de explicar admiravelmente a concepção que
formulam a respeito das plantas: ''Terminada a criação, o Pai Eterno, antes de
se retirar para o céu (...) repartiu o universo entre seus filhos; cada qual
recebeu de suas mãos ou obteve por conta própria - "por méritos
reconhecidos" - o que lhe pertence ainda hoje: Olokun o mar, Aggayu as
savanas, Oké as montanhas (...) etc.
Ossaim recebeu o segredo das ervas, o conhecimento de suas virtudes. As ervas
eram exclusivamente suas e não as dava a ninguém até o dia em que Xangô,
queixando-se à sua mulher Oya, soberana dos ventos, de que só Ossaim conhecia o
mistério de cada ewe, encontrando-se os outros Orixas no mundo sem possuir uma
só planta, esta abriu as pregas de suas vestes, agitou-as impetuosamente fazendo-as
turbilhonar e fé-fé, um vento violento, começou a soprar. Ossaim guardava os
segredos dos ewe numa cabaça colhida de uma árvore; vendo que o vento a tinha
aberto e que as ervas se dispersavam, cantou: "Eé eggüero, sáué
éreo", mas não pode impedir que todos os Orixas se apoderassem das folhas,
repartindo-as entre si. Estes deram nomes e uma virtude a cada uma das que
tinham tomado. Assim, embora Ossaim seja a dona das ervas, cada divindade tem
também as suas na montanha. O papel dos Orixá é, pois, estabelecer uma
classificação das plantas no caos da natureza selvagem, de tal modo que permita
o uso racional delas pelo Olosaim. Esta classificação é certamente muito
diferente da de um Linneu, mas não deixa de ser uma tentativa de interpretação do
mundo vegetal ao mesmo título que a daquele sábio. Obedece a outras regras, mas
obedece a regras. Podemos distinguir duas utilizações das "ervas", a
utilização religiosa como por exemplo na lavagem da cabeça da yauô, e a
utilização medicinal. No primeiro caso, a regra em ação é simbólica, no segundo
caso a regra é participante. As ervas estão ligadas a esta ou àquela divindade,
de acordo com as analogias que podem apresentar para com ela. Por exemplo, a cor
de Oxalá sendo o branco, o tapete de Oxalá cujas folhas são circundadas por uma
espécie de pelo branco, e o algodão, que no arrebentar das sementes deixa
escapar a brancura imaculada de seus flocos, são atribuídos a Oxalá. A folha de
fogo, que tem um colorido avermelhado, a dormideira vermelha ( mas somente a
desta cor) são atribuídas a Xangô e a Yansan porque a cor destes dois santos é
o vermelho. Existe também certo parentesco entre a cor das vestes, a das contas
do colar e o das ervas de cada divindade. Outras vezes, porém, é a forma em
lugar da cor que se leva em consideração; por exemplo, a espada de Ogun tem a
forma de uma faca, o Ogun é o deus de ferro, o rei da guerra, o padroeiro dos
assassinos; a casadinha apresenta sobre as folhas uma espécie de montículos,
como que verrugas que lhe dão o aspecto das pústulas cobrindo o corpo de Omolú,
o santo da varíola. E se a urtiga é igualmente atribuída a esta divindade, é
porque quem nela se esfrega apanha coceiras semelhantes às de diversas
dermatoses. Os olhos de Santa Luzia pertencem a Yemanjá. Porque parecem, na
verdura dos campos, pedaços minúsculos ao mar mirando o azul do céu. Noutros
casos o que importa é o perfume, pois pode-se estabelecer correspondências
entre os perfumes (os que saneiam a atmosfera, os acres, os voluptuosos) e o
caráter das divindades (divindades de purificação - Oxalá; de luta - Ogun; da
sensualidade - Oxun). Note-se que o emprego religioso das plantas não tem nada
em comum com seu emprego medicinal. O rosmaninho, por exemplo, pertence a Oxalá
devido ao perfume purificador e não às propriedades terapêuticas, pois não há
ligação alguma entre a tosse, curada com infusões de rosmaninho, e o deus do
céu. Se a espada de Ogun está ligada ao deus da guerra, é devido à sua forma e
não por ser diurética. Eis porque os dados dos ervanários não podem nos servir
para penetrar no mundo mental dos adeptos dos candomblés. Todavia, os olosaim
não são chamados apenas para preparar os banhos das yauô, mas também para curar
os doentes. Existe, então, uma classificação medicinal das ervas; mas, como
veremos, ela obedece também a outras preocupações diferentes das dos
ervanários. Página 192. Abraço. Davi.
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