quarta-feira, 2 de setembro de 2020

A ESTRUTURA DO MUNDO V

 

Religião Afro Brasileira. Livro O Candomblé da Bahia – Rito Nagô. Tradução de Maria Isaura Pereira de Queiroz (1918-2018). Capítulo III. A ESTRUTURA DO MUNDO V.  De modo que até o momento não possuímos senão informações fragmentárias; uma descrição de cerimônia pública no Rio de Janeiro antigo, as informações nem sempre exatas fornecidas ao Protásio Frikel (1912-1974), e duas descrições de axêxê com aparição de Egun. Embora os Egun, como veremos daqui a pouco, intervenham algumas vezes no axêxê, é preciso não confundir estas cerimônias funerárias com os ritos de homenagem aos mortos. O axêxê tem por fim expulsar as almas; a sociedade dos Egun tem por missão, ao contrário, evocá-las. Isto é, as finalidades de ambas são antes. opostas do que complementares. Mas não terá esta sociedade outras funções? As grandes festas agrícolas nos países yoruba, a da plantação, a da "desconsagração" das primeiras colheitas, se fazem sempre com evocação dos Egun. Esta primeira função da benção dos campos pelos antepassados e das oferendas das primícias aos mortos parece ter desaparecido na Bahia. Efetivamente, nesta cidade a grande festa dos Egun (ogé-messé, ilé nhanga ou nibi egum anangua) - que é uma cerimônia privada - tem lugar no dia 2 de novembro, dia dos mortos, por sincretismo com o catolicismo. Do mesmo modo que os "diablitos" de Cuba, a sociedade dos Egun ia outrora às casas onde havia mortos ou moribundos. Mas esta função também desapareceu em nossos dias. As cerimônias não podem se realizar nas moradias particulares, e sim somente no interior dos candomblés ou na ilha de Itaparica. Restam apenas: a evocação dos mortos, em circunstâncias diversas e tendo em vista fins bem determinados; a fixação dos Egun em recipientes que são colocados na ilé-saim (cerimônia sem dúvida diferente, mas paralela à da fixação dos Orixá nas pedras do pegí). A evocação da alma do morto ou da morta pode ter lugar no decorrer do axêxê, se se deseja saber as últimas vontades do defunto ou da defunta. Mas isto não em todas as "nações". Há um provérbio africano que diz: "Oyó tem o culto egun, Egba tem o culto oro”. Não encontraremos, pois, aparições de Egun senão nas cerimônias funerárias das seitas descendentes de escravos nagô. Os Igexa, que ainda mais que os outros negros temem os mortos, apressam-se em expulsá-los para longe do terreiro. As seitas gêge ou dahomeanas ignoram igualmente esta evocação em seus axêxê, tanto mais que nos países de origem não possuem sociedades Egungun. Com mais razão ainda os terreiros banto. Eis porque nas descrições das cerimônias mortuárias igexa, gêge ou angola que possuímos ou às quais assistimos, os Egun não apareciam. Aparecem, ao contrário, em Opo-Afonjá; mas os sacerdotes do santuário não podem realizar o ritual, o candomblé deve então apelar para um sacerdote especial, o da Ilha de Itaparica, onde se encontra o centro da sociedade dos Egun. A cerimônia tem lugar ao ar livre, à noite, sob a fronde verde das árvores, e constitui o fim do axêxê propriamente dito, isto é, tem lugar no 7º ou 8º dia. Começa pelo padê de Exú, a saudação à terra-mãe que as mulheres beijam e que os homens tocam com a mão, e continua com os cânticos dirigidos aos mortos, acompanhados pelos tambores. Os homens então se dirigem à ilé-saim, enquanto as mulheres ficam em seus lugares, pois é-lhes proibido penetrar na casa dos mortos. Terminadas as homenagens aos antepassados, os homens retomam seus lugares perto das mulheres e então soam gritos ora roucos, ora estridentes, que partem da câmara secreta: são os mortos que se erguem do seu sono e que falam. Em seguida, contidos pelos sacerdotes, deixam os Egun a casa, apresentando-se sob duas formas: alguns estão vestidos, materializados, são os Egun já "feitos", "fixados"; outros têm a forma de vaga nebulosa, são os mortos que ainda não foram "doutrinados", segundo a expressão consagrada. Vejamos a narrativa de uma testemunha: "Apareceu sob a forma duma nebulosa, por vezes se confundindo com as árvores, e, ao chegar ao local em que se encontrava o galo destinado à matança, foi diminuindo de volume até cair sobre a ave indefesa, ouvindo-se apenas o grito do galo que morria. E do mesmo modo como havia chegado, desapareceu. Neste galo, ninguém mais toca". Estes mortos falam, às vezes, com vozes de falsete inteiramente típicas. As pessoas presentes em geral as reconhecem: é meu pai, dizem elas, é o irmão de fulano. E pedem-lhe ordens ou conselhos. As grandes cerimônias de evocação se fazem na ilha de ltaparica, que é a sede da sociedade. Parece que é lá que se faz a evocação do sétimo ano depois da morte, em que a pessoa desaparecida, antes de deixar definitivamente a terra, faz as últimas recomendações. Se é uma ialorixá, por exemplo, é somente nesse momento que indica o nome de quem lhe deve suceder. Parece também que a cerimônia descrita ao Protásio Frikel por seus informantes pertence ao grande ritual da ilha de Itaparica. Eis porque a transcrevemos aqui, pois é a única conhecida até hoje: Na sala, tudo foi preparado; as pessoas estão de um lado, o lado oposto é reservado aos egun. O babasalâ, isto é, aquele que chama e manipula os egun, tem na mão um bastão, o incha, e o coloca entre o lugar da assistência e o lugar dos egun, para que estes não possam abandonar o local que lhes é privativo. Então o Espírito aparece (...) e a aparição canta. Creiam-me. Não se trata de um homem fantasiado. Escutei a voz. Canta: Iodê-ô araê olô dêô babá jossanjurú (cheguei, meu povo, etc.). Fabrica-se uma anágua (espécie de carcaça dura), e dentro põe-se água e folhas (verdadeira arte). Diante dela, colocam-se os pratos com a comida. Durante esse tempo, os tambores dos mortos são tocados como no axêxe, a festa dos mortos. O tocador de tambor, porém, deve manter-se muito afastado da anágua. Então aparece o espírito e fala, mas fala em africano; move-se, é uma espécie de "vento" (...). Dá-se também alimentos ao egun. E Guajiru, o informante, faz o seguinte desenho que acompanha a narrativa. Acrescentemos que estes Egun dos antepassados, que aparecem em Itaparica, têm a forma de babá (pais), trazendo nomes nagôs e trajes especiais. Frikel dá alguns desses nomes: "Cada um dos egun tem seu nome pessoal, diz Eduardo; mas todos trazem o título de babá - pai, por ex.: babá quê-legbê, babá obô-là, babá alo-côtô (...) etc. Em suma, estes babá são os antepassados das linhagens, que já desapareceram. Em nossos cadernos, anotamos mais ou menos desses pais. Mas existem muitos outros, toda uma legião". Quanto ao traje, mais ou menos semelhante ao dos Egun da África, há dele uma fotografia em Dieux d'Afrique de Pierre Verger (1902-1996). Enfim, são os sacerdotes desta sociedade que estão encarregados de fixar os mortos em vasos de barro ou nos ferros que lhes servirão de última morada. Esta fixação se processaria da mesma maneira na África? Nada sabemos a respeito. Mas os vasos existem, colocados em cima de, tábuas, em buracos da ilé-saim, ou simplesmente em cima do chão. E rende-se um culto, do mesmo modo que aos Orixá; alimentos lhes são oferecidos, regados com o sangue dos animais sacrificados. Os indivíduos encarregados de desempenhar o papel de Eguns são, segundo a própria expressão deles, "iniciados" à sociedade em questão. Mas a iniciação é de tipo inteiramente diferente daquela que estudamos previamente, com o caso das yauéi. Não consiste em aprender um comportamento, mas em aprender um "segredo". Daí o nome de "maçonaria" tantas vezes empregado quando os homens conversam entre si a respeito dos Egun ou de Oro, a iniciação levando à posse de um. saber esotérico. Todos os que conseguem responder às perguntas formuladas pelos chefes passam daí por diante a ser oger, babaoge ou babaloge, se se acrescenta, em sinal de respeito, para homenageá-los, o epíteto de baba, pai. A expressão orioge também é encontrada, sem que eu possa adiantar se se estende ao conjunto dos membros da sociedade, ou se só vale para aqueles que ocupam as posições mais elevadas. Pois esta sociedade é hierarquizada. Não garantimos que a lista dos cargos que passamos a dar siga exatamente a hierarquia, nem que seja completa. Mas, de modo geral, podemos distinguir dois grupos de atores, os que desempenham os papéis de Egun, encarnando os mortos, seja em forma de aparições, seja em forma de vozes (como ventríloquos), e os outros, mais importantes, que dirigem e controlam a multidão de fantasmas. Artur Ramos, num de seus trabalhos de juventude, parece falar da ação de certos sacerdotes do primeiro grupo, quando escreve que Egun-ecuto e Echá-abicu são respectivamente as representações masculina e feminina de forças desconhecidas - genésicas, - de que o babalaô ( o feiticeiro) lança mão em suas práticas mágicas. Mas, mesmo se deixarmos de lado as identificações errôneas do texto, do babalaô e do orioge, do babalaô e do feiticeiro, das forças desconhecidas e das forças genésicas, em nenhum outro encontramos os termos egunecutó e echá-abicu. E. A. Ramos bem o percebeu, pois em obras posteriores não retomou esta afirmação, tendo encontrado o significado verdadeiro numa de suas últimas pesquisas: quando uma mulher vê morrerem todos os seus filhos pequeninos, o primeiro é chamado abicu, e diz que é ele que vem buscar os outros, "comendo-os". Como se vê, estamos longe da sociedade dos Egun. Esta sociedade tem sua sede na ilha de ltaparica para que os mortos possam sair mais facilmente da água; a psicanálise nos familiarizou com esta ligação entre nascimento (ou renascimento) e água, entre mãe e ilha. O chefe da sociedade chama-se alaba, ou mais exatamente alegha. Está armado de um bastão é o encarregado de invocar os mortos; depois, quando estão presentes, de dirigi-los em sua marcha tateante, impedindo-os também de se misturar com os vivos que podem estar assistindo à cerimônia. Em suma, o bastão é ao mesmo tempo a agulha imantada que atrai o morto, que o dirige exatamente por onde o alagba deseja que ele vá, que o conduz, pois um morto não enxerga, e o instrumento de corte entre dois mundos, e também o limite que separa dois domínios, a fronteira móvel entre fantasmas e assistentes. O chefe está acompanhado pelo alafi ou atafim (a primeira expressão parece mais justa que a segunda), que João do Rio denomina o "confidente" do alagba. Sua função permanece obscura. Parece guardar a porta da ilé-saim, sendo de certo modo o porteiro dos mortos. Todavia, o têrmo de "confidente" parece sugerir que desempenha também outro papel. Os mortos falam em língua africana, é nessa língua que dão ordens ou conselhos. A existência de um tradutor é, pois, indispensável para pôr em bom português ordens e conselhos. Se esta não for uma das funções de alagba, como é o caso na África, onde o alagba traduz a voz dos Egun, poderia muito bem ser a função de nosso alafi. Mas, nesse ponto, não nos aventuramos a sair do terreno da hipótese. O algba é seguido pelo amuxam e pelo ala-te-orum. O primeiro traz um chicote e o segundo um prato. Jacques Raimundo, no seu dicionário de termos afro-brasileiros dá boa definição do primeiro daqueles sacerdotes que pode nos servir de ponto de partida. Personagem do culto de Egungun a cuja guarda é confiado o chicote sagrado ou ixã. Do Yor amusham aquele que traz ou utiliza o ixã (yor ishan), o chicote listrado de branco. Como o alagba se serve o bastão, este sacerdote serve-se do chicote para conduzir o Egun. Assim como para fazê-lo vir à terra, se ainda não apareceu, para tanto fustiga a terra com o ixã. No caso não se trata de um instrumento de música, de uma espécie de bastão para marcar o ritmo dos cânticos por meio de batidas surdas e espaçadas, trata-se de um puro instrumento de invocação. Fernando Ortiz que descreve longamente ixã utilizado pelas sociedades secretas de Cuba, compara o ao chachará do Brasil, formando efetivamente como o ixã, por certo número de varetas ligadas umas às outras, e que é a insígnia de Nanan Buruku, assim como de Babaluayé-Omulú. Mas a semelhança da forma não nos deve induzir ao erro. Apesar de a ligação entre Nanan e a morte ser real. Nanan dança com seu chachará entre os braços, ninando-o com mãos tremulas de mulher velha, o chachará não é senão o símbolo do pequeno Babaluayé que acaba de nascer e que sua mãe Nanan procura adormecer. Oneyda Alvarenga observa que os chacharás são da mesma família que os paxorós ou “vassouras”. E este é como efeito o significado verdadeiro do chochará; constitui a vassoura com que Omolú varre os humanos como folhas secas; é a imagem da epidemia que se desencadeia sobre uma região, destruindo tudo em sua passagem. O ixã, ao contrário, faz os mortos subirem das profundas da terra para, durante um instante, falar aos vivos. Quanto ao segundo de nossos dois personagens, o ala-te-orum, etimologicamente parece indicar um Egun mascarado, o aluá designando a alma e as últimas sílabas do título lembrando o otoroun, que na África é o nome da máscara, ou da madeira com que se fabrica a máscara dos mortos. Não sabemos o que representa o prato, pois João do Rio, que é o único a citar este sacerdote, não nos dá maiores indicações; tratar-se-á de um prato de comida oferecido aos Egun, ou seria talvez a meia-cabaça colocada sobre um prato cheio d'água, que é instrumento de música do axêxê e que já estudamos em seu significado de imagem do mundo? Com efeito, sabemos que em certas sociedades secretas existe um sacerdote que avança na procissão ritual levando a meia-cabaça sobre um prato, batendo sobre ela com uma vareta para ritmar musicalmente a marcha. Os dois personagens de que vamos falar agora não aparecem senão secundariamente e na segunda parte das cerimônias da sociedade: Yansan e Erusaim. No Rio de Janeiro, esta Yansan é chamada ou era Chamada outrora, Egunin-Yansan; e em Cuba é chamada Morua Yuanse. Vímos que os Orixã temem a morte menos Yansan que realmente a venceu, Mas não se trata de qualquer Yansan. Com relação a esta divindade, encontramos o mesmo que já assinalamos a propósito do Oxun, como apetevi de babalaô. Um informante indica a existência de 17 Yansa, sendo que uma delas apenas é a rainha dos cemitérios. Mas, devido ao segredo que cerca os mortos, não pode ou não quis dar-nos o nome exato desta Yansan. Embora se trate de uma deusa, o personagem que desempenha seu papel na sociedade dos Egun é um homem. E seu papel é dançar ao som dos tambores especiais da confraria. Quanto ao eruosaim, sua característica é trazer dupla máscara, uma na frente, outra atrás do rosto, como uma espécie de Janus africano. Também se trata de um dançarino, eis porque o juntamos ao precedente. São estes dois sacerdotes os encarregados da parte coreográfica das cerimônias secretas. Enquanto os que carregam as varas são chamados durante os axêxês para controlar os mortos que podem de repente aparecer, nem a Yansan, nem o eruo-saim tomam parte nas cerimônias puramente funerárias. Página 180 os quatro compartimentos do mundo. Livro O Candomblé da Bahia – Rito Nagô. Abraço. Davi.

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