quinta-feira, 11 de julho de 2019

O MISTÉRIO DO EU


Teosofia. Publicação da Sociedade Teosófica do Brasil. Ano 105. 2016. Texto de J. R. Lassen-Willems. Tradução Edvaldo Batista de Souza. O MISTÉRIO DO EU. O que queremos dizer por EU? Nas últimas décadas qualquer consenso sobre o significado implodiu no que agora chamamos de guerras culturais. Raramente aqueles que estão na busca espiritual querem dizer a mesma coisa quando usam a palavra EU. Nosso propósito aqui é uma discussão aberta de uma possível estrutura, ou paradigma que possa ajudar a localizar várias descrições do EU num continuum de interpretações pessoais do problema do EU. Com tal paradigma, podemos, estão, localizar nosso próprio lugar na discussão, e talvez também começar a entender por que temos problemas ao falar aos nossos companheiros na Senda. Com a compreensão surge a compaixão pelas diferenças e também o respeito mútuo. O EU poderia ser visto como uma resposta ao problema da identidade pessoal. Como os seres humanos tradicionalmente vieram a compreender a estrutura ou processo que dá origem ao fenômeno de uma identidade pessoal específica: Nosso esforço aqui será prático, não acadêmico. Há três respostas básicas ao problema da identidade, ou seja, não EU, EU monárquico e EU em camada. A posição do não EU, é mais encontrada no Budismo, na Moderna Psicologia Comportamental, na Psicologia e nos Estudos da Consciência – conforme A Obra de Oliver Sachs (1933-2015). Há varrições no tema. A posição mais extrema é a de Burrhus Frederick Skinner (1904-1990). Ele nega até mesmo uma utilidade funcional ao uso do EU como identidade pessoal. Sob a posição não EU, o ego, identidade pessoal, o EU é considerado uma ilusão, criado por fatores dinâmicos na operação da consciência ou, numa representação, a atividade do cérebro biológico. Muitos budistas theravadianos, usando seus textos epistemológicos, o Abhidharma, também consideram o EU como nada mais que uma ilusão. Eles argumentam que várias condições causais, inclusive a operação da memória, provê fatores de continuidade que dão origem à ilusão de um Eu ou ego específico que persiste e é considerado real. É uma incompreensão maior atribuir a esse EU ou ego qualquer papel dominante na operação dos cinco Khandhas ou agregados básicos que interagem para dar origem a uma coisa, isto é, um ser humano, um cão, ou ouma cadeira. Para os budistas theravadianos esses Khandhas incluem rupa (corpo), sanna (sensação), vedana (resposta positiva. Negativa ou neutra aos estímulos orgânicos).  Sankhar (formações mentais, isto é, emoções e pensamentos), e vinna (consciência). No Theravada, os Khandhas são os componentes básicos do mundo da aparência. Rupa é material, sanna e vedana são responsivos, sankhara é o conteúdo da atividade mental, e vinna é o próprio processo de consciência. Esses são considerados os componentes minuciosos ou completos da realidade. Não existe coisa per se no Budismo. Antes, o que existe são condicionamentos Kármicos desses cinco agregados. Assim, a coleção de condições Kármicas num local, agindo durante algum tempo, dá origem à continuidade aparentemente específica a que chamamos de EU ou uma pessoa. O Budismo vê a pessoa como uma construção dinâmica e impermanente, completamente dependente de uma interação relacional com todas as outras condições que surgem à sua volta. A pessoa não tem essência real (não tem existência separada das condições que dão origem). No Budismo, é melhor pensar na pessoa ou identidade pessoal como uma matriz dinâmica. Uma matriz de condicionalidade relacional. Assim, com a condicionalidade relacional há aspectos tanto subjetivos quanto objetivos a tais surgimentos contingentes. Para os budistas, o apego a este EU impermanente dá origem à dor primordial, ou dukkha. Aliás, as três marcas da existência no Budismo, dukkha (sofrimento), anatta ( não EU) e anichcha (impermanência) devem ser plenamente experienciadas, investigadas e compreendidas para que cesse todo apego, de modo que a percepção possa então experienciar o Nirvana ou Iluminação. Joseph Goldstein (1944 - ) certa vez definiu Nirvana como agarrar-se a absolutamente nada. Em resumo, João ou Jão é uma construção do Karma. Não um acidente do Karma, porque com o Karma não há acidentes. As Explicações biológicas ocidentais de autoconsciência (essa terminologia é preferida a EU ou ego) podem ser resumidas da seguinte maneira. No desenvolvimento evolutivo do ser humano, aparece o estágio quando, dentro da sofisticada estrutura cerebral, surge a experiência de autoconsciência. Essa autoconsciência é verdadeira e totalmente função de tecido orgânico. Ela aparece quando o tecido cerebral alcança uma certa complexidade e densidade. Assim é o próprio tecido orgânico que causa o aparecimento da autoconsciência. Essa posição é considerada como ponto pacífico porque, quando o tecido cerebral degenera ou ocorrem danos significativos ao cérebro, a auto identidade é seriamente prejudicada, e as vezes desaparece completamente. Se a autoconsciência não fosse um fenômeno biológico, não desapareceria com mudanças radicais na operação do cérebro ou na destruição de seu tecido. Assim, considera-se que a autoconsciência não tem existência real em si mesma e de si mesma. Para a psicologia comportamental, a identidade pessoal é simplesmente a quase imperceptível operação de condicionamento múltiplos operando no organismo. Para nossa discussão, este organismo é considerado uma tábula rasa com relação à auto identidade até que os condicionamentos deem origem a uma pseudo identidade construída. Porque é possível conceber programas de condicionamentos químicos ou operantes que, então, destruirão o senso de pseudo EU. Isto é considerado uma prova para os comportamentalistas, de que esse tal EU, não tem existência real, isto é, é uma ilusão. A posição do EU monádico é mais rara atualmente, mas já foi a fundação da filosofia ocidental. A posição monádica afirma que existe um mundo eterno, mais profundo do que o mundo de mudanças, isto é, o mundo de aparências ou fenômenos. Este reino imutável é chamado o reino das ideias, da mente pura. Aqui, nada muda. Para que exista uma cadeira específica no mundo da aparência, deve haver uma forma ou ideia imutável de cadeira no reino das ideias. Diz-se que esta ideia da cadeira é o terreno para o surgimento fenomenal transitório da cadeira. Aliás, esta ideia da cadeira provê a realidade para todas as cadeiras que podem ser encontradas no mundo da aparência. De modo semelhante, o fenômeno da autoconsciência em nossas vidas, diárias tem sua fundação no interior da mente ou no mundo das ideias (formas). Autoconsciência é a expressão de uma alma imutável, imortal. Posteriormente, a filosofia deu a essa alma o nome de mônada (especialmente Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) e Baruch de Spinoza (1632-1677). Este uso da mônada é diferente do uso feito pela Senhora Helena P. Blavatsky (1831-1891). Sob muitos aspectos, Platão (428 AC 347) é o responsável por essa compreensão de uma alma eterna. No entanto, ele verdadeiramente tinha um conhecimento da alma (EU) em camadas, que, de algum modo, se parece com o pensamento teosófico posterior. Mas porque Platão não era epistemologista (isto é, interessado na questão do conhecimento da realidade per se, isto é, sua verdade). Seu discípulo posterior, Plotino (204-270) tentou esclarecer a ambiguidade do status ontológico das camadas de Platão no interior do mundo das aparências e declarar, em vez disso, que a mônada mental superior era o verdadeiro ser no centro de toda a existência. A exposição sistemática que Plotino faz deste mundo de existência incluía uma doutrina do mundo das aparências como uma série de emanações, nas quais à descrição, sua exposição é também de seres. Assim, se considerada estritamente quanto à descrição, sua exposição é também uma posição em camadas. Embora com ênfase e tratamento popular, considera-se que Plotino adotou a posição monádica. Na verdade, em sua expressão ontológica, a posição de Plotino é muito semelhante à posição Advaita Vedanta de Shankara (788-820). Com relação a isso, o sistema de Plotino deve ser compreendido como monádico. O problema do EU torna-se cada vez mais complicado e polêmico no pensamento ocidental posterior. Leibnitz e Spinoza consideravam que somente a mônada mental tinha existência real. A alma, como uma essência específica de identidade pessoal, não continua a desempenhar papel na teologia escolástica posterior, ou seja, no trabalho de Tomás de Aquino (1225-1274) e seus seguidores. No mundo do pensamento esotérico, os modernos defensores primários de uma compreensão da consciência monádica fixa são Paul Brunton (1898-1981) e Anthony Damiani. Aqui, o pensamento seria, se estritamente considerado, uma posição em camadas (ver abaixo), exceto que a existência real é negada a tudo menos à mônada mental. Damiani é mais sutil em sua formulação do que seu professor Paul Bruton. (Brunton, vol. 6 de The Notebook of Paul Brunton e Damiani, Standing in Your Own Way – Talks on the Nature of Ego). No Oriente, o Taoísmo e o Advaita Vedanta (Brunton foi influenciado pelo Advaita Vedanta) são diferentes estratégias que discutem um sistema monárquico. O Taoísmo só usa a formulação do homem verdadeiro que percebe a realidade corretamente quando abre mão da dualidade da ilusão de um ego separado. O Taoísmo conta com uma transcendência de linguagem paradoxal para o pleno entendimento da realidade. A esse respeito, é transracional. O Advaita Vedanta é uma das mais sofisticadas exposições da posição do EU monádico. A exposição que Shankaracharya (788-820) faz do Advaita Vedanta, a transcendência é alcançada racionalmente, e não supra racionalmente como ocorre com o Taoísmo. (Tradução de Stephen Mitchell do Tao Teh Ching. Para Shankacharya, ver versão da Vedanta Press do Self Knowledge, ou Atmabodha). Em algumas polêmicas, o advento da modernidade e da pós-modernidade, primeiramente no Ocidente e depois também no Oriente, desconstruiu totalmente a questão do sujeito ou do EU. Não mais se considera o EU como tendo qualquer utilidade em muitas das discussões. É difícil recusar a importância de uma investigação de subjetividade e de se estar seriamente buscando a Senda Espiritual, por isso olhemos agora para a posição do EU em camadas. Esta posição não tem a simplicidade das outras duas. É mais complicada, e exige mais de nossa compreensão. Por enquanto, a posição do EU em camadas será o argumento de que o EU se manifesta de muitas maneiras, dependendo da natureza do reino no qual se está manifestando. O EU é a expressão de muitas funções, que somente estão plenamente integradas em um EU ou na compreensão da alma, quando a especificidade de cada função se torna clara e seu relacionamento com as outras funções é plenamente compreendido. Embora tenha havido muitas apresentações da posição do EU em camadas, haverá suficiente para indicar sua ênfase e escopo heurístico: a apresentação cristã tradicional, a cabalista e a de Helena P. Blavatsky. Um pesquisador cuidadoso encontrará um esquema semelhante nas descrições tântricas hindus das vestes, nas descrições sufi da alma, no esquema Shingon dos japoneses, na descrição corporal de alaya no interior do Budismo Yogachara, e, mais recentemente, no campo da Psicologia Trans pessoal. A posição cristã é a primeira encontrada no apóstolo Paulo (I Coríntios, Romanos e Gálatas) o uso que faz Paulo não é consistente. O leitor encontrará em Paulo discussões sobre mente, coração, alma, corpo e espírito. Esses são com frequência usados de modo intercambiável, porém mais habitualmente com uma tensão entre corpo e espírito. No entanto, cristãos posteriores lendo Paulo, começam a falar de três aspectos ou constituintes do ser humano: corpo (sarx), mente ou alma (psique) e espírito (pneuma). O corpo é um veículo físico vital. A mente ou alma é o princípio intelectual vital do ser humano. O espírito é o eterno elemento divino na humanidade. Análises cristãs esotéricas posteriores subdividiram esses três em cinco e, posteriormente, sete princípios. (Para a posição esotérica ver Theosofia, Arthur Vesluis). A posição cabalista fala exotericamente de três princípios: nefesh (corpo), ruach (espírito vital), e neshemah ( mente eterna). Esses três princípios são sutilizados para se tornarem cinco princípios em discussões esotéricas: nefesh (alma animal), ruach (princípio espiritual ou alento vital), neshemah (mente intelectual), chiah (espírito superior) e yehiddah (espírito eterno). A cabala ensina que essas coisas não são tanto camadas como centros de atividades ou de consciência no interior do ser humano total. Frequentemente, a leitura da Cabala pode ser confusa porque a expressão é propositadamente ambígua, para que o buscador ou tenha de receber instrução real de um mestre esotérico, ou cavar profundamente bem abaixo da superfície para encontrar contradições e/ou inconsistências superficiais nos textos exotéricos (o livro de Leo Scharya sobre a Cabala). O esquema de Helena P. Blavatsky sofreu uma série de transformações à medida que seu estudo se tornou mais intenso e suas conclusões mais profundas. Em A Chava para a Teosofia, ela faz referência a sete princípios, nama rupa, linga sharira, prana, Kama rupa, manas, buddhi, atman, que mal traduzido são corpo, duplo etérico, elan vital ou princípio alento, eu astral ou emocional, mente, eu superior e a mônada manifestada. Com sua outra obra, especialmente nas sessões esotéricas, Helena P. Blavatsky mudou este formato para incluir várias ênfases diferentes. Talvez a mais sutil seja encontrada em suas “Instruções Esotéricas” no volume XII dos Collected Writting. Adam Warcup em Cyclic Evolution usa este esquema para sua própria interpretação. Os sete incluem, atman, invólucros áurico, buddhi, manas, prana, linga sharira, manas inferior. A principal diferença entre o esquema original dela e este último é que este se aplica a explicar o real processo de encarnação. E também pressupõe que o corpo (nama rupa), o primeiro princípio original dela em A Chave, não é verdadeiramente um princípio, per se, mas antes uma substância passiva na qual os outros princípios ativos se manifestam. Finalmente, qual é a importância geral dessas descrições do EU em camadas? Primeiro, todos tentam prover uma ponte metafísica entre unidade eterna e a hierarquia de emanações no interior dos reinos do Universo manifestado. Segundo, eles abordam a ampla gama de vitalidade e inteligência humanos dentro desses reinos. Como tais, ambas tratam das forças dinâmicas, mutantes, forças impermanentes da posição não EU, mas incluem também a parte de inteligência eterna da posição do EU monádico, uma inteligência que persiste, e na qual toda manifestação está baseada. O esquema de Helena P. Blavatsky parece ser o mais lúcido porque nele nada que se manifesta é eterno (embora alguns aspectos existam durante eras). Assim, a explicação de Blavastsky inclui tanto a inteligência profunda na base de toda aparência e, também, a evolução dessa inteligência quando se manifesta na matéria em evolução. A esse respeito, seu esquema em camadas é a melhor síntese das forças das outras duas posições. Assim, temos três diferentes descrições do EU ou alma. Que importância tem elas, se não há também uma maneira de investigar sua importância para a vida da pessoa? Duas formas de disciplina interior – e rapidamente mencionadas aqui – podem verdadeiramente investigar a natureza do EU, de modo que a pessoa possa encontrar por si mesma o que deve ser acreditado a respeito do mistério do EU. Esses dois métodos são Oração centrada e Meditação de insight (vipassana). Oração centrada é uma nova formulação de uma antiga forma de meditação cristã – atualizada para o momento presente por Frade Thomas Keating OSB. Com a oração centrada, a pessoa entrega sua consciência a Deus, isto é, a uma quietude profunda, pelo uso de uma simples palavra como forma icônica com a qual focar a atenção. Gradualmente, à medida que a mente é aquietada, é alcançado um estado que é chamado de a Oração da quietude. Nesse estado, a mente fica totalmente tranquila, e, nesse silencia, Deus consegue infundir contemplação, e a pessoa experiência a real natureza do verdadeiro EU. Não é preciso ser ateu para tentar esta meditação, se se está apenas querendo disciplinar a atenção para alcançar o estado de quietude profunda. No entanto, o não teísta pode ser surpreendido pelos resultados. Vipassana (Meditação com insight) é uma antiga meditação budista theravada que usa a percepção para estar consciente da natureza transitória de todos os fenômenos emergentes. Gradualmente, o apego pessoal a fenômenos transitórios é liberado, e, eventualmente, a pessoa experiência aquilo que é incondicionado. A natureza do EU é também tratada nesta meditação porque, certamente, o EU é um dos fenômenos emergentes que se experiência na consciência diária. Os budistas consideram que esta meditação necessariamente desmonta qualquer forma ou compreensão do EU. Publicação da Sociedade Teosófica. Ano 105. 2016. Abraço. Davi

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