Teosofia.
Publicação da Sociedade Teosófica do Brasil. Ano 105. 2016. Texto de J. R.
Lassen-Willems. Tradução Edvaldo Batista de Souza. O MISTÉRIO DO EU. O que queremos dizer por EU?
Nas últimas décadas qualquer consenso sobre o significado implodiu no que agora
chamamos de guerras culturais. Raramente aqueles que estão na busca espiritual
querem dizer a mesma coisa quando usam a palavra EU. Nosso propósito aqui é uma
discussão aberta de uma possível estrutura, ou paradigma que possa ajudar a
localizar várias descrições do EU num continuum de interpretações pessoais do
problema do EU. Com tal paradigma, podemos, estão, localizar nosso próprio
lugar na discussão, e talvez também começar a entender por que temos problemas
ao falar aos nossos companheiros na Senda. Com a compreensão surge a compaixão
pelas diferenças e também o respeito mútuo. O EU poderia ser visto como uma
resposta ao problema da identidade pessoal. Como os seres humanos
tradicionalmente vieram a compreender a estrutura ou processo que dá origem ao
fenômeno de uma identidade pessoal específica: Nosso esforço aqui será prático,
não acadêmico. Há três respostas básicas ao problema da identidade, ou seja,
não EU, EU monárquico e EU em camada. A posição do não EU, é mais encontrada no
Budismo, na Moderna Psicologia Comportamental, na Psicologia e nos Estudos da
Consciência – conforme A Obra de Oliver Sachs (1933-2015). Há varrições no
tema. A posição mais extrema é a de Burrhus Frederick Skinner (1904-1990). Ele
nega até mesmo uma utilidade funcional ao uso do EU como identidade pessoal.
Sob a posição não EU, o ego, identidade pessoal, o EU é considerado uma ilusão,
criado por fatores dinâmicos na operação da consciência ou, numa representação,
a atividade do cérebro biológico. Muitos budistas theravadianos, usando seus
textos epistemológicos, o Abhidharma, também consideram o EU como nada mais que
uma ilusão. Eles argumentam que várias condições causais, inclusive a operação
da memória, provê fatores de continuidade que dão origem à ilusão de um Eu ou
ego específico que persiste e é considerado real. É uma incompreensão maior
atribuir a esse EU ou ego qualquer papel dominante na operação dos cinco
Khandhas ou agregados básicos que interagem para dar origem a uma coisa, isto
é, um ser humano, um cão, ou ouma cadeira. Para os budistas theravadianos esses
Khandhas incluem rupa (corpo), sanna (sensação), vedana (resposta positiva.
Negativa ou neutra aos estímulos orgânicos).
Sankhar (formações mentais, isto é, emoções e pensamentos), e vinna
(consciência). No Theravada, os Khandhas são os componentes básicos do mundo da
aparência. Rupa é material, sanna e vedana são responsivos, sankhara é o
conteúdo da atividade mental, e vinna é o próprio processo de consciência.
Esses são considerados os componentes minuciosos ou completos da realidade. Não
existe coisa per se no Budismo. Antes, o que existe são condicionamentos
Kármicos desses cinco agregados. Assim, a coleção de condições Kármicas num
local, agindo durante algum tempo, dá origem à continuidade aparentemente
específica a que chamamos de EU ou uma pessoa. O Budismo vê a pessoa como uma
construção dinâmica e impermanente, completamente dependente de uma interação
relacional com todas as outras condições que surgem à sua volta. A pessoa não
tem essência real (não tem existência separada das condições que dão origem).
No Budismo, é melhor pensar na pessoa ou identidade pessoal como uma matriz
dinâmica. Uma matriz de condicionalidade relacional. Assim, com a
condicionalidade relacional há aspectos tanto subjetivos quanto objetivos a
tais surgimentos contingentes. Para os budistas, o apego a este EU impermanente
dá origem à dor primordial, ou dukkha. Aliás, as três marcas da existência no
Budismo, dukkha (sofrimento), anatta ( não EU) e anichcha (impermanência) devem
ser plenamente experienciadas, investigadas e compreendidas para que cesse todo
apego, de modo que a percepção possa então experienciar o Nirvana ou
Iluminação. Joseph Goldstein (1944 - ) certa vez definiu Nirvana como
agarrar-se a absolutamente nada. Em resumo, João ou Jão é uma construção do
Karma. Não um acidente do Karma, porque com o Karma não há acidentes. As
Explicações biológicas ocidentais de autoconsciência (essa terminologia é
preferida a EU ou ego) podem ser resumidas da seguinte maneira. No
desenvolvimento evolutivo do ser humano, aparece o estágio quando, dentro da
sofisticada estrutura cerebral, surge a experiência de autoconsciência. Essa
autoconsciência é verdadeira e totalmente função de tecido orgânico. Ela
aparece quando o tecido cerebral alcança uma certa complexidade e densidade.
Assim é o próprio tecido orgânico que causa o aparecimento da autoconsciência.
Essa posição é considerada como ponto pacífico porque, quando o tecido cerebral
degenera ou ocorrem danos significativos ao cérebro, a auto identidade é
seriamente prejudicada, e as vezes desaparece completamente. Se a
autoconsciência não fosse um fenômeno biológico, não desapareceria com mudanças
radicais na operação do cérebro ou na destruição de seu tecido. Assim,
considera-se que a autoconsciência não tem existência real em si mesma e de si
mesma. Para a psicologia comportamental, a identidade pessoal é simplesmente a
quase imperceptível operação de condicionamento múltiplos operando no
organismo. Para nossa discussão, este organismo é considerado uma tábula rasa
com relação à auto identidade até que os condicionamentos deem origem a uma
pseudo identidade construída. Porque é possível conceber programas de
condicionamentos químicos ou operantes que, então, destruirão o senso de pseudo
EU. Isto é considerado uma prova para os comportamentalistas, de que esse tal
EU, não tem existência real, isto é, é uma ilusão. A posição do EU monádico é
mais rara atualmente, mas já foi a fundação da filosofia ocidental. A posição
monádica afirma que existe um mundo eterno, mais profundo do que o mundo de
mudanças, isto é, o mundo de aparências ou fenômenos. Este reino imutável é
chamado o reino das ideias, da mente pura. Aqui, nada muda. Para que exista uma
cadeira específica no mundo da aparência, deve haver uma forma ou ideia
imutável de cadeira no reino das ideias. Diz-se que esta ideia da cadeira é o
terreno para o surgimento fenomenal transitório da cadeira. Aliás, esta ideia
da cadeira provê a realidade para todas as cadeiras que podem ser encontradas
no mundo da aparência. De modo semelhante, o fenômeno da autoconsciência em
nossas vidas, diárias tem sua fundação no interior da mente ou no mundo das
ideias (formas). Autoconsciência é a expressão de uma alma imutável, imortal.
Posteriormente, a filosofia deu a essa alma o nome de mônada (especialmente
Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) e Baruch de Spinoza (1632-1677). Este uso
da mônada é diferente do uso feito pela Senhora Helena P. Blavatsky
(1831-1891). Sob muitos aspectos, Platão (428 AC 347) é o responsável por essa
compreensão de uma alma eterna. No entanto, ele verdadeiramente tinha um
conhecimento da alma (EU) em camadas, que, de algum modo, se parece com o
pensamento teosófico posterior. Mas porque Platão não era epistemologista (isto
é, interessado na questão do conhecimento da realidade per se, isto é, sua
verdade). Seu discípulo posterior, Plotino (204-270) tentou esclarecer a
ambiguidade do status ontológico das camadas de Platão no interior do mundo das
aparências e declarar, em vez disso, que a mônada mental superior era o
verdadeiro ser no centro de toda a existência. A exposição sistemática que
Plotino faz deste mundo de existência incluía uma doutrina do mundo das
aparências como uma série de emanações, nas quais à descrição, sua exposição é também
de seres. Assim, se considerada estritamente quanto à descrição, sua exposição
é também uma posição em camadas. Embora com ênfase e tratamento popular,
considera-se que Plotino adotou a posição monádica. Na verdade, em sua
expressão ontológica, a posição de Plotino é muito semelhante à posição Advaita
Vedanta de Shankara (788-820). Com relação a isso, o sistema de Plotino deve
ser compreendido como monádico. O problema do EU torna-se cada vez mais
complicado e polêmico no pensamento ocidental posterior. Leibnitz e Spinoza
consideravam que somente a mônada mental tinha existência real. A alma, como
uma essência específica de identidade pessoal, não continua a desempenhar papel
na teologia escolástica posterior, ou seja, no trabalho de Tomás de Aquino (1225-1274)
e seus seguidores. No mundo do pensamento esotérico, os modernos defensores
primários de uma compreensão da consciência monádica fixa são Paul Brunton
(1898-1981) e Anthony Damiani. Aqui, o pensamento seria, se estritamente
considerado, uma posição em camadas (ver abaixo), exceto que a existência real
é negada a tudo menos à mônada mental. Damiani é mais sutil em sua formulação
do que seu professor Paul Bruton. (Brunton, vol. 6 de The Notebook of Paul
Brunton e Damiani, Standing in Your Own Way – Talks on the Nature of Ego). No Oriente, o Taoísmo e o Advaita Vedanta (Brunton foi
influenciado pelo Advaita Vedanta) são diferentes estratégias que discutem um
sistema monárquico. O Taoísmo só usa a formulação do homem verdadeiro que
percebe a realidade corretamente quando abre mão da dualidade da ilusão de um
ego separado. O Taoísmo conta com uma transcendência de linguagem paradoxal
para o pleno entendimento da realidade. A esse respeito, é transracional. O
Advaita Vedanta é uma das mais sofisticadas exposições da posição do EU
monádico. A exposição que Shankaracharya (788-820) faz do Advaita Vedanta, a
transcendência é alcançada racionalmente, e não supra racionalmente como ocorre
com o Taoísmo. (Tradução de Stephen Mitchell do Tao Teh Ching. Para Shankacharya,
ver versão da Vedanta Press do Self Knowledge, ou Atmabodha). Em algumas
polêmicas, o advento da modernidade e da pós-modernidade, primeiramente no
Ocidente e depois também no Oriente, desconstruiu totalmente a questão do
sujeito ou do EU. Não mais se considera o EU como tendo qualquer utilidade em
muitas das discussões. É difícil recusar a importância de uma investigação de
subjetividade e de se estar seriamente buscando a Senda Espiritual, por isso
olhemos agora para a posição do EU em camadas. Esta posição não tem a
simplicidade das outras duas. É mais complicada, e exige mais de nossa
compreensão. Por enquanto, a posição do EU em camadas será o argumento de que o
EU se manifesta de muitas maneiras, dependendo da natureza do reino no qual se
está manifestando. O EU é a expressão de muitas funções, que somente estão
plenamente integradas em um EU ou na compreensão da alma, quando a
especificidade de cada função se torna clara e seu relacionamento com as outras
funções é plenamente compreendido. Embora tenha havido muitas apresentações da
posição do EU em camadas, haverá suficiente para indicar sua ênfase e escopo
heurístico: a apresentação cristã tradicional, a cabalista e a de Helena P.
Blavatsky. Um pesquisador cuidadoso encontrará um esquema semelhante nas
descrições tântricas hindus das vestes, nas descrições sufi da alma, no esquema
Shingon dos japoneses, na descrição corporal de alaya no interior do Budismo
Yogachara, e, mais recentemente, no campo da Psicologia Trans pessoal. A
posição cristã é a primeira encontrada no apóstolo Paulo (I Coríntios, Romanos
e Gálatas) o uso que faz Paulo não é consistente. O leitor encontrará em Paulo
discussões sobre mente, coração, alma, corpo e espírito. Esses são com
frequência usados de modo intercambiável, porém mais habitualmente com uma
tensão entre corpo e espírito. No entanto, cristãos posteriores lendo Paulo,
começam a falar de três aspectos ou constituintes do ser humano: corpo (sarx),
mente ou alma (psique) e espírito (pneuma). O corpo é um veículo físico vital.
A mente ou alma é o princípio intelectual vital do ser humano. O espírito é o
eterno elemento divino na humanidade. Análises cristãs esotéricas posteriores
subdividiram esses três em cinco e, posteriormente, sete princípios. (Para a
posição esotérica ver Theosofia, Arthur Vesluis). A posição cabalista fala
exotericamente de três princípios: nefesh (corpo), ruach (espírito vital), e
neshemah ( mente eterna). Esses três princípios são sutilizados para se
tornarem cinco princípios em discussões esotéricas: nefesh (alma animal), ruach
(princípio espiritual ou alento vital), neshemah (mente intelectual), chiah
(espírito superior) e yehiddah (espírito eterno). A cabala ensina que essas
coisas não são tanto camadas como centros de atividades ou de consciência no
interior do ser humano total. Frequentemente, a leitura da Cabala pode ser
confusa porque a expressão é propositadamente ambígua, para que o buscador ou
tenha de receber instrução real de um mestre esotérico, ou cavar profundamente
bem abaixo da superfície para encontrar contradições e/ou inconsistências
superficiais nos textos exotéricos (o livro de Leo Scharya sobre a Cabala). O
esquema de Helena P. Blavatsky sofreu uma série de transformações à medida que
seu estudo se tornou mais intenso e suas conclusões mais profundas. Em A Chava
para a Teosofia, ela faz referência a sete princípios, nama rupa, linga
sharira, prana, Kama rupa, manas, buddhi, atman, que mal traduzido são corpo,
duplo etérico, elan vital ou princípio alento, eu astral ou emocional, mente,
eu superior e a mônada manifestada. Com sua outra obra, especialmente nas
sessões esotéricas, Helena P. Blavatsky mudou este formato para incluir várias
ênfases diferentes. Talvez a mais sutil seja encontrada em suas “Instruções
Esotéricas” no volume XII dos Collected Writting. Adam Warcup em Cyclic
Evolution usa este esquema para sua própria interpretação. Os sete incluem,
atman, invólucros áurico, buddhi, manas, prana, linga sharira, manas inferior.
A principal diferença entre o esquema original dela e este último é que este se
aplica a explicar o real processo de encarnação. E também pressupõe que o corpo
(nama rupa), o primeiro princípio original dela em A Chave, não é
verdadeiramente um princípio, per se, mas antes uma substância passiva na qual
os outros princípios ativos se manifestam. Finalmente, qual é a importância
geral dessas descrições do EU em camadas? Primeiro, todos tentam prover uma
ponte metafísica entre unidade eterna e a hierarquia de emanações no interior
dos reinos do Universo manifestado. Segundo, eles abordam a ampla gama de
vitalidade e inteligência humanos dentro desses reinos. Como tais, ambas tratam
das forças dinâmicas, mutantes, forças impermanentes da posição não EU, mas
incluem também a parte de inteligência eterna da posição do EU monádico, uma
inteligência que persiste, e na qual toda manifestação está baseada. O esquema
de Helena P. Blavatsky parece ser o mais lúcido porque nele nada que se
manifesta é eterno (embora alguns aspectos existam durante eras). Assim, a
explicação de Blavastsky inclui tanto a inteligência profunda na base de toda
aparência e, também, a evolução dessa inteligência quando se manifesta na
matéria em evolução. A esse respeito, seu esquema em camadas é a melhor síntese
das forças das outras duas posições. Assim, temos três diferentes descrições do
EU ou alma. Que importância tem elas, se não há também uma maneira de
investigar sua importância para a vida da pessoa? Duas formas de disciplina
interior – e rapidamente mencionadas aqui – podem verdadeiramente investigar a
natureza do EU, de modo que a pessoa possa encontrar por si mesma o que deve
ser acreditado a respeito do mistério do EU. Esses dois métodos são Oração
centrada e Meditação de insight (vipassana). Oração centrada é uma nova formulação
de uma antiga forma de meditação cristã – atualizada para o momento presente
por Frade Thomas Keating OSB. Com a oração centrada, a pessoa entrega sua
consciência a Deus, isto é, a uma quietude profunda, pelo uso de uma simples
palavra como forma icônica com a qual focar a atenção. Gradualmente, à medida
que a mente é aquietada, é alcançado um estado que é chamado de a Oração da
quietude. Nesse estado, a mente fica totalmente tranquila, e, nesse silencia,
Deus consegue infundir contemplação, e a pessoa experiência a real natureza do
verdadeiro EU. Não é preciso ser ateu para tentar esta meditação, se se está
apenas querendo disciplinar a atenção para alcançar o estado de quietude
profunda. No entanto, o não teísta pode ser surpreendido pelos resultados.
Vipassana (Meditação com insight) é uma antiga meditação budista theravada que
usa a percepção para estar consciente da natureza transitória de todos os
fenômenos emergentes. Gradualmente, o apego pessoal a fenômenos transitórios é
liberado, e, eventualmente, a pessoa experiência aquilo que é incondicionado. A
natureza do EU é também tratada nesta meditação porque, certamente, o EU é um
dos fenômenos emergentes que se experiência na consciência diária. Os budistas
consideram que esta meditação necessariamente desmonta qualquer forma ou
compreensão do EU. Publicação da Sociedade Teosófica. Ano 105. 2016. Abraço.
Davi
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