Taoísmo. Texto
do acadêmico Inty Scoss Mendoza. II. OS OITO CAMINHOS DO TAO. TAO COMO NÃO
EXISTÊNCIA. 道为无 A contrapartida da definição da existência da
origem de todas as coisas é essa em que o TAO só pode ser
identificado com o VAZIO, a não existência. Wangbi 王弼 (226 -
249), pensador que representa um importante movimento surgido na crise do
final da dinastia Han, o Xuanxue 玄学 (o “saber do
mistério”, o misticismo chinês), aponta a necessidade de “exaurir até
atingir o extremo, o VAZIO”, pois o TAO é “serenamente sem corpo,
não está na manifestação”. Em relação ao “Um”, Wangbi em seu comentário
ao TAO TE KING coloca a seguinte questão: “As dez mil coisas e as dez
mil formas retornam todas ao Um. De onde vem esse
sutil UM? Da não existência surge o Um, por isso o Um pode
ser chamado de não existência”. Contudo tal colocação deixa em aberto o
significado de uma passagem do TAO TE KING (o Livro das Mutações, escrito
aproximadamente entre 350 AC 250), o “famoso” capítulo 25, em que Lao Tsé
nomeia o TAO, e a contragosto, lhe dá ainda mais um nome: “GRANDE”,
da 大. Tal capítulo inicia da seguinte forma: “有物混成”
(you wu hun cheng), onde a tradução literal de cada ideograma
isoladamente nos diria: “ter”, “coisa”, “caos”, “realizar”. “Uma
‘coisa’ existe formada no caos”, seria uma possível tradução, e Lao Tsé
prossegue: “antes de nascerem o céu e a terra. Silente! Apartado!
(...) pode ser considerado a mãe sob o céu. Eu não sei seu nome,
dou-lhe a grafia: 道 DAO TAO. Forçado a nomeá-lo digo: grande”. Essa
“coisa” seria o “SUPREMO UM” citado na seção anterior e como Lao Tsé teria
dito se tratar de algo que existe antes do Céu e da Terra
– ou seja, o Universo para o pensamento chinês – então não
poderia ser tratado como uma não existência. Entretanto, esse movimento
místico faz uma leitura sutil das palavras de Lao Tsé consolidando
uma forte tendência ancestral do pensamento chinês: negar é a melhor maneira de
alcançar a verdade. IDENTIFICANDO O TAO COM O VAZIO é possível desvencilhar se
das limitações da palavra para, com isso, ter uma experiência
direta dessa dimensão além da forma. Por outro lado, essa se trata de uma
tradição que se molda em “tempos de crise” – a instabilidade social
e política do final da dinastia Han – onde os
assuntos mundanos não apresentavam qualquer princípio de harmonia e
equilíbrio, e um saber afirmativo, ou seja, a erudição, não servia
como meio de buscar o Tao, pelo contrário, ecoava colocações de Lao
Tsé como: “O saber não passa de ostentação do Tao e o início da
ignorância” (cap. 38). Ou seja, conceber definições não passa de vã tentativa,
melhor seria permanecer no “não (...).” TAO como Li 道为理. Essa identificação entre o Tao e o “princípio”
(li 理), para Zhang Liwen, se referia a duas dimensões:
ontológica e ética. A questão do conceito de “ontologia”, utilizado por ele,
remete à correlação “óntos raiz”, isto é, a visão chinesa de uma estrutura
metafísica que sustenta todas as coisas, como mencionado anteriormente.
No caso, a metáfora da “raiz” e suas funções em relação ao resto da
planta (fixação, sustentação, nutrição e ancestralidade) são diretamente
aplicadas ao pensamento filosófico, isto é, a busca da raiz é a busca do
que sustenta, nutre, etc. (Zhang D. 1997, p. 16) . O princípio,
do ponto de vista ontológico, seria aquela dimensão sem som e sem
cheiro 13 que está, como o TAO, acima da “forma” e se relaciona com o
sopro vital [qi 气], os instrumentos [qi 器] e
todas as coisas que se encontram sob a “forma”, em posição
de complementaridade. (Zhang L. org 1996 p. 2) As categorias “acima
da forma” e “sob a forma” utilizadas pelo autor para definir o
princípio, e por complementaridade o “sopro”, os “instrumentos” e
as “coisas” remetem a uma passagem do Livro das Mutações, o I
CHING (Yijing): “O QUE ESTA ACIMA DA FORMA É O TAO; O QUE ESTÁ ABAIXO
DA (sob a) FORMA É O INSTRUMENTO”. 形而上者谓之道,形而下 者谓之器. 系词. Tal definição
é a pedra fundamental onde se ergueram todas as teorias em
torno da natureza primeira além da forma, e suas implicações no
mundo da forma. Também atribui ao TAO sua condição nunca contestada: não ter
forma definida. A questão do “instrumento” é particularmente complexa,
pois é uma tradução imprecisa de QI 器, que quer dizer “pote”, e
significa o nível da função, da aplicação específica, do lugar que cada
coisa ocupa na teia de relações universais. A forma é determinante nesse
sentido, e por vezes foi relacionada ao conceito de QI (ou CHI) 气, cuja tradução
como “energia” também é imprecisa e, portanto, opto pela palavra “sopro”,
mesmo sabendo de suas conotações bíblicas. No que se refere ao princípio
do ponto de vista ético: O TAO é o princípio presente
nas relações entre soberano e súdito, pai e filho, marido e mulher
(...) são os valores éticos de benevolência do soberano,
lealdade do súdito, amor paterno, respeito filial, etc. A identificação
entre essas duas dimensões, princípios universais e ação humana, é
uma das características fundamentais do pensamento chinês, e
ambos os autores apontam essa como uma das
características que mais diferem o pensamento chinês do
ocidental. Para Zhang Liwen, isso se traduz como uma união entre ontologia e
ética, enquanto para Zhang Dainian isso se traduz em “união entre saber e ação”
e “união entre o Céu e o ser humano” (Zhang D. 1997, pp.
5 e 6). Historicamente a identificação entre o Tao e “Li” foi desenvolvida
principalmente por Zhuzi 朱子 (1130 - 1200), que representa um
movimento filosófico chamado Lixue 理学 “o saber do princípio”, também conhecido como neo confucionismo.
Uma das características desse movimento é apresentar os
conceitos de TAO e LI como sinônimos: Entre o Céu e a
Terra há o Princípio LI e o Sopro QI. O princípio é o TAO que está acima
da forma, é a raiz de onde nascem as coisas. O Sopro é a ferramenta
que está sob a forma, é o instrumento do nascimento das coisas. O
nascimento do ser humano e das coisas dependem desse princípio para
depois possuírem uma natureza; dependem desse sopro para
depois terem forma. (Zhuxi, Da Huang Dao Fu, in Zhang D. 1997,
p. 58). Outro conceito que se mistura a esses dois é TAIJI 太极16 , que nesse
sistema assume o mesmo lugar cósmico do Tao enquanto princípio criador e
ordenador que permeia, sem forma, todos os processos de mutação
do Universo: O TAIJI é como a raiz de uma árvore que se ramifica em tronco
e galhos, e mais ainda em folhas e flores. Gera sem se exaurir até
surgirem os frutos. Dentro desses estão
contidos os princípios de geração inesgotável de vida. Quando
brotam, geram incontáveis ‘TAIJI’. No campo da ética Zhuzi, a
manifestação do TAO LI se dá na natureza (verdadeira, espiritual, metafísica)
do ser humano, em chinês Xing 性, e se expressa em
princípios éticos naturais em qualquer ser humano: “O que é
igual na existência de todo ser humano é sua natureza. Portanto, a
conduta ética é igual para todos. Sendo assim, o Tao é também igual para
todos”. (Mengzi huowen, in Zhang L. Org. 1996, p. 192); “O TAO a que me refiro
significa o verdadeiro princípio entre soberano e súdito, pai e filho, marido e
mulher, irmão mais velho e irmão mais novo, e entre amigos”
(Lunyu huo wen,). Tal posicionamento afirmativo era uma resposta a
certas abordagens do pensamento taoista e budista na China da
dinastia Song do sul (1127 - 1279) em que o TAO era considerado além da
dimensão humana, quer seja expresso pela não existência (wu 无) taoísta
ou pelo VAZIO (em chinês kong 空, tradução do
sânscrito Śūnyatā). O pintor e pensador Chenchun 陈淳 (1483 - 1544) apresenta da seguinte maneira o
problema dessas visões para um partidário do posicionamento do neo
confucionismo: Lao Tsé e Chuang Tsé falavam sobre o TAO como se esse
não tivesse qualquer relação com o ser humano e com as coisas,
considerando além e aparte do Céu, da Terra, das formas e dos
instrumentos, o que quer dizer que antes de existirem Céu, Terra e
as dez mil coisas só havia um Princípio Vazio, como nos diz o
ensinamento: “O TAO é anterior ao TAIJI” (...). No Budismo, o TAO tem um
sentido semelhante. Entretanto, quando os seguidores de Lao
Tsé consideram a não existência o ancestral das dez mil coisas,
ou os seguidores de Budha, que igualmente consideram o vazio o
ancestral das dez mil coisas, apresentam a minha natureza verdadeira como algo
anterior a tudo e, portanto, tudo o que vem depois não passa de
fantasmagorias, de ilusões. As ações humanas se tornam
pegadas grosseiras, devendo ser todas extirpadas para se
retornar ao vazio original. Isso seria atingir o TAO. Não
compreender o TAO seria um princípio da existência e da ação humanas. (in Zhang
L. org 1996, p. 190). TAO COMO XIN 道为心. O termo XIN 心 é mais um
dos quebra cabeças conceituais chineses que não se
submetem aos esforços mais bem intencionados dos tradutores.
Por vezes é traduzido por coração, pois é utilizado no
chinês moderno tanto para falar do órgão quanto do “coração” no sentido
figurado. Quando surge nas tradições meditativas como a
instância interior que é lentamente cultivada e aprimorada para que adquira
qualidades de atenção, concentração e serenidade seria melhor
traduzilo como “mente”. Entretanto, a “psicologia” quando chegou à
China foi traduzida como Xinlixue 心理学, isto é, “saber do
princípio do XIN”, o que remeteria tal termo ao conceito abrangente de
“psique”. Para tornar a tradução das citações a seguir mais
acessíveis ao leitor, optei por “coração”, mas fica aqui a ressalva
das outras possibilidades. Com base nessas observações tomemos alguns exemplos citados
por Zhang Liwen e Zhang Dainian sobre o conceito de Tao como “coração”. Assim
como cada definição da TAO citada aqui corresponde à interpretação de
um movimento filosófico específico, temos aqui o Xinxue 心学, “o saber do
coração”, cujo grande sistematizador foi Wang Yangming 王阳明(1472 -
1528), que deu continuidade ao pensamento de Lu Jiuyuan 陆九渊 (1139 - 1193) e Yang Jian 杨简 (1141 - 1226) (Zhang L. org 1996 p.
2). Algumas de suas definições: O ser humano é o coração
do Céu, da Terra e das dez mil coisas. O coração é o senhor de
tudo. O coração é o Céu, e ao falar do coração o Universo inteiro está
aí mencionado. Da Limingde, in Zhang D. 1997, p. 69). Fora do
coração não há coisa alguma. Fora do coração não há palavra alguma. Fora do
coração não há princípio algum. Fora do coração não há sentido algum.
Para esse pensador há um saber original, uma consciência partilhada por
todos os seres que manifesta o TAO a partir dessa
subjetividade. Tal consciência é por vezes chamada de
liangzhi 良知 – uma consciência originalmente boa –, e para
Wang Yangming o “TAO é liangzhi” (Zhang L. org 1996, p. 245). A
consciência original (liangzhi) do ser humano é a consciência original
das plantas e pedras, pois sem essa consciência humana
elas não existiriam. Não somente as plantas e
pedras obedecem a esse princípio. Sem a consciência humana não haveria nem
o Céu e a Terra! O Céu, a Terra e as dez mil coisas são
originalmente um só com o ser humano, seu surgimento
mais sutil, mais essencial, é justamente essa centelha
espiritual do coração. O vento, a chuva, o orvalho, o trovão, o sol, a lua,
as estrelas, os animais, as plantas, as montanhas, os rios, a
terra e as pedras são, em princípio um só com ser humano. (Chuan
feilu, in Zhang D. 1997, p. 70) Tal concepção é o ponto máximo da
subjetividade no pensamento filosófico chinês e um ponto de fusão
total entre a busca
dos grandes princípios universais (físicos e
espirituais) com as tradições meditativas e
introspectivas tanto chinesas quanto hindus. O conhecimento
verdadeiro, ou seja, a possibilidade humana de “atingir” o TAO, só é
possível quando se toca o ponto mais profundo e interior do coração
humano, pois ali se encontra o poder que tudo gerou e tudo governa,
isto é, “fora do coração não há TAO algum”, por isso “o coração humano é
o TAO” (Zhang L. org 1996, p. 2). TAO COMO QI (Chi) 道为气 Um
pensador neo confucionista, Zhangzi 张子 (ou Zhang
Zai 张载) (1020 - 1077), desenvolveu uma questão
já colocada em outros momentos: o problema do status dos
princípios de YIN,YANG e do QI frente ao TAO. Ele, contudo,
conduziu tal problema a uma consequência teórica radical: o abandono da
separação clássica entre o que está acima da forma como a dimensão do TAO e o
que está abaixo da forma como a dimensão do “instrumento”. Aqui o
Tao é o processo das transformações do QI no Universo, que passa por
instantes materiais (com forma) e imateriais (sem forma).
Seu postulado básico é: “a transformação provem do QI, e o nome é “Tao”
(Zhang L. org 1996, p. 3). Outro pensador que desenvolveu tais concepções
foi Wang Yanxiang 王延相 (1474 - 1544) que definiu a forma e a não forma
como diferentes estados do QI, ou ainda, como momentos
diferentes em que o Tao está manifesto (aparente) e recolhido (oculto),
tornando então o TAO e o QI como categorias filosóficas similares. Na análise
de Zhang Dainian: A natureza primordial é nessa concepção o QI,
pois possui o poder da manifestação. Além desse conceito haveria
outros quatro conceitos complementares: TAO, Céu, Mutação e Li
(princípio). O TAO é o processo das mutações do QI.
O significado atribuído por Zhangzi para o TAO é diferente daquele
atribuído por Lao Tsé. Para esse último, o TAO é a causa e o princípio
primeiro de todas as coisas, enquanto que para Zhangzi esse passa a
ser o percurso da existência ou os processos da mutação. (Zhang
D. 1997, p. 42) TAO COMO HUMANISMO. 道为人道.Essa é uma interessante definição apresentada por Zhang
Liwen, pois remontando aos primórdios do pensamento
chinês contido no “Livro das Escrituras”, Shujing 书经 (compilado provavelmente entre os séculos XI
AC VI ele aponta a divisão entre o TAO celestial, TIANDAO 天道, e o TAO
humano, RENDAO 人道, como duas categorias que remeteriam
às dimensões divina e humana respectivamente (Zhang L. org. 1996, p.
24). Essa segunda englobaria as questões das virtudes
da benevolência e da justiça, das relações sociais,
dos princípios morais e éticos . Contudo, esse autor apresenta
tal questão sob a ótica de um movimento recente do pensamento chinês,
iniciado no século XIX e que teve seu ápice nos
movimentos para a derrubada da última dinastia, ocorrida finalmente em
1911. A China, nesse período, incorpora conceitos modernos como “liberdade”,
“socialismo”, “igualdade”, mas como já havia ocorrido com outros
casos de conceitos estrangeiros em terra chinesa, eles foram
rapidamente traduzidos em termos propriamente chineses,
reconhecidos, até certo ponto, como sempre presentes no seu
repertório filosófico. O TAO não saiu ileso desse processo, e o
conceito de “humanismo” na sua acepção moderna – e burguesa, para Zhang
Liwen – foi traduzido como RENDAO, o TAO humano: “aquele que
comete um atentado à liberdade alheia, atenta contra o princípio
celestial e contra o RENDAO humanismo” (Yanfu in Zhang L. org. 1996, p. 3). Sun
Yatsen (1866-1925) o “pai na nação” tanto para taiwaneses quanto para
os chineses do continente, e grande teórico da revolução anti
imperialista – aqui entendido tanto como Império chinês quanto
imperialismo ocidental e japonês do século XIX – avança
mais ainda na incorporação do conceito de humanismo
às múltiplas faces do TAO: O socialismo é um
humanismo RENDAÕ. Esse se baseia no amor ao próximo, na liberdade e na
igualdade. O socialismo não pode se afastar desses três
princípios pois essa é a sua verdadeira essência. É também, sem
dúvida, a “boa nova” para a humanidade.(Partidos e
métodos socialistas in Zhang L. org. 1996, p. 3) Tal conceituação é para
Zhang Liwen uma “nova vida” para o TAO. Considerações finais A brevíssima
sistematização do pensamento chinês em torno do conceito do Tao
apresentada aqui padece de
todas as mazelas das generalizações. Muito
mais poderia ter sido dito, e muitas das sutis
facetas desse tema complexo simplesmente foram
desconsideradas ou ignoradas, por isso talvez não faça jus ao
esforço teórico e metodológico dos autores em questão. Entretanto,
acredito que possa com esse artigo contribuir para o esforço de traduzir e
disponibilizar a produção em língua chinesa, antiga e contemporânea,
ou ainda, como é o caso aqui, apresentar as visões do antigo
pelas lentes da modernidade chinesa, movimento esse que conta ainda
com escassos braços e cabeças no Brasil, não por falta de
interesse, mas devido, principalmente, à dificuldade da língua chinesa.
Referências bibliográficas: LAO TSÉ. Os escritos do Curso e
sua Virtude. São Paulo: Mandruvá, 1997. ZHANG, Dainian. 中国哲学大纲 Os
tópicos da Filosofia Chinesa]. Beijing: Academia Chinesa de
Ciências Sociais, 1997. ZHANG, Liwen. 道 [Dao]. Beijing:
Universidade Popular da China, 1996. Faculdade de Educação da Universidade de
São Paulo – São Paulo – SP – Brasil. Abraço. Davi.
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