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Texto de Dzongsar Jamyang Khyentse Rinpoche (1961- ). O ASPECTO DA CLAREZA.
Assim que falamos sobre um caminho como o budismo, pensamos a respeito de sua
linha de chegada — algum tipo de resultado ou objetivo. Porém no Mahayana não
há objetivo. No Sutra Prajnaparamita, por exemplo, ouvimos que
“Forma é vazio, vazio é forma. Sem olhos, sem ouvidos (…)” e tudo mais. Não há
nada a se obter. E não há “não nada” a se obter. O caminho Mahayana é como
descascar camadas de pele e finalmente descobrir que não há semente dentro.
Temos que obter liberação dessas peles, mas isso é algo difícil de fazer —
amamos nossas peles. Quando crianças, um castelo de areia é uma coisa muito
importante para nós. Depois, aos dezesseis anos, o skate é muito importante, e
a essa altura o castelo de areia já se tornou uma pele apodrecida. Tudo isso
são camadas de pele. E mais importante: até mesmo os caminhos que praticamos
são todos camadas de pele, que utilizamos para nos ajudar a descascar as outras
peles. A pele interna ajuda a pensar sobre a pele externa e nos motiva a
descascá-la. Mas no caminho Mahayana, em última instância, deve-se estar livre de
todos os sistemas, de todas as peles. Mas o que acontece quando todas
essas peles tiverem sido descascadas? O que resta? Será que a iluminação é uma
negação total, como a extinção de um fogo ou a evaporação da umidade? Será que
é algo assim? Não, estamos falando de algo que é o resultado de uma eliminação.
Por exemplo: se a sua janela está suja, você pode limpá-la e remover a sujeira;
então, na ausência de sujeira, a janela é rotulada de janela “limpa”. Não há
nada além disso. O fenômeno que estamos chamando de “janela limpa”, a qualidade
que consiste na ausência de sujeira, não é algo que produzimos ao limpar a
sujeira. Eu não acho que deveríamos sequer chamar isso de “janela limpa”,
porque a janela em seu estado original nunca foi manchada pelos extremos de
sujeira ou limpeza. Não obstante, o processo de se desfazer da sujeira pode ser
rotulado como o surgimento da janela limpa. Aqui estamos falando de
natureza búdica — e se quiser saber mais sobre ela, o Shastra
Uttaratantra de Maitreya é o texto que você precisa estudar. É
importante tomar cuidado ao estabelecer a ideia de natureza búdica, porque caso
contrário ela pode acabar se tornando algo como um atman ou uma
alma verdadeiramente existente. Os shastras Mahayana falam sobre as qualidades
da liberdade, ou eliminação, tais como os dez poderes, os quatro destemores, as
trinta e duas marcas maiores, as oitenta marcas menores, e por aí vai. Se não
tomar cuidado, você pode começar a pensar sobre a natureza búdica de uma forma
teísta — ou seja, em termos das qualidades de um deus, uma alma ou uma essência
permanente. Porém todas essas qualidades, mencionadas nos shastras Mahayana,
são simplesmente qualidades da ausência de sujeira. Quando falamos do resultado da eliminação, automaticamente pensamos
que estamos nos referindo a algo que vem depois: primeiro ocorre a eliminação e
em seguida vem seu efeito. Mas não estamos, de forma alguma, falando disso,
porque nesse caso estaríamos caindo em um extremo eternalista ou teísta.
“Eliminação” implica em ter algo para eliminar. Entretanto, no Prajnaparamita entendemos
que não há nada a eliminar — e essa é a grande eliminação. O resultado dessa
eliminação não é obtido depois. Ele está sempre lá, e por isso é chamado
de tantra, ou “contínuo”. Essa qualidade permanece ao longo da
base, do caminho e do resultado. A janela continua desde antes da sujeira estar
presente, enquanto a sujeira está sendo lavada, e depois da limpeza ter sido
completada. A janela sempre foi livre dos conceitos de sujeira e de liberdade
da sujeira. É por isso que os sutras Mahayana dizem que o resultado está além
da aspiração. Você não pode torcer ou rezar pelo resultado da eliminação,
porque ele já está lá; ele continua o tempo todo, portanto não há necessidade
de aspirar a ele. A essência de todos os ensinamentos do Buda é
a vacuidade, ou originação interdependente. Nada surge, permanece ou cessa
independentemente. Portanto, não há nada permanente. Não existe um eu
verdadeiramente existente. Tudo que pensamos que existe, ou que não existe, ou
ambos ou nenhum dos dois — todas essas coisas são fabricações da nossa mente.
Nós as fabricamos e depois nos apegamos a elas. Porém não percebemos que são
nossas fabricações. Acreditamos que são reais, mas basicamente toda concepção
ou apego que temos é algum tipo de processo fanático. Os sutras Mahayana
ensinam a vacuidade, ou shunyata, para nos levar além de todos
esses extremos e fabricações. Quando falamos sobre vacuidade,
algo além da fabricação, imediatamente pensamos em um estado de existência que
não possui função alguma, como um rato de sofá ou um pedaço de pedra, mas isso
é totalmente incorreto. Esse algo não é meramente uma negação, eliminação ou
recusa. Não é como a extinção de um fogo ou a evaporação da água. Ele é
plenamente funcional, e nós chamamos essa função de atividade búdica, que é um
aspecto da natureza búdica. Essa natureza possui um aspecto de sabedoria
ininterrupta. Eis a dificuldade, porque assim que falamos em sabedoria,
pensamos em termos de cognição e dos sentidos e seus objetos sensoriais. Temos
curiosidade em saber como um buda percebe as coisas. Entretanto, embora a
natureza búdica aparentemente seja algo cognoscente, ela não possui objeto, e
portanto não pode ser um sujeito. Além disso, ela não é inanimada — e tampouco
é animada, no sentido da mente. É por isso que o Shastra Uttaratantra na
verdade é complementar aos ensinamentos Mahasandhi (Dzogchen),
que sempre dizem que mente e sabedoria são separadas — a mente dualista de
sujeito e objeto é separada da sabedoria não-dual, que não é outra coisa senão
a natureza búdica. Você pode dizer que quando Acharya Nagarjuna
(150-250) explica o Prajnaparamita, ele se concentra mais no
aspecto de vazio, ao passo que quando Maitreya explica a mesma coisa ele se
concentra mais no aspecto de “dade”. Esse “dade” é a natureza búdica. Você pode
se perguntar porque o Buda ensinou nos sutras que todos os fenômenos são como
nuvens — instáveis, naturalmente ilusórios e vazios. Porque será que, ainda que
possamos experienciá-los, eles não possuem essência, como um sonho ou uma
miragem? Por que tudo isso é ensinado como vacuidade nos ensinamentos
Madhyamaka e no Sutra Prajnaparamita? E, como Mipham Rinpoche
(1846-1912) pergunta em seu comentário ao Shastra Uttaratantra, por
que nesse terceiro giro da roda do dharma o Buda diz que essa natureza búdica
existe dentro de todos os seres sencientes? Isso não é uma contradição? Além
disso, como a natureza búdica é muito difícil de compreender, até mesmo para
seres sublimes que estão no caminho, porque ela é ensinada aqui para seres
ordinários? Vamos ao texto de Maitreya: Ele havia ensinado em vários lugares
que qualquer coisa cognoscível é sempre vazia, como uma nuvem, um sonho ou uma
ilusão. Então porque o Buda declarou que a essência da budeidade existe em todo
ser senciente? (Estrofe 156). Em primeiro lugar, não há contradição entre o
segundo giro da roda do dharma, no qual o Buda ensinou que todas as coisas são
vacuidade, e o terceiro giro da roda, no qual o Buda ensinou que todos os seres
sencientes possuem a natureza búdica. Nos Sutras Prajnaparamita do
segundo giro, o Buda enfatiza que nada é verdadeiramente existente. Portanto,
quando o Buda diz aqui que a natureza búdica existe, ele não está dizendo que a
natureza búdica existe verdadeiramente. Na verdade, ele está enfatizando seu
aspecto de clareza. Quando falamos sobre a união de clareza e vacuidade, é
importante que compreendamos os dois aspectos, e não apenas o aspecto de
vacuidade. Além disso, os ensinamentos do Buda
sobre a natureza búdica lidam com cinco enganos específicos, para
neutralizá-los: Existem cinco enganos: pusilanimidade,
desprezo em relação aos de menor habilidade, acreditar no que é falso, falar
erroneamente sobre a verdadeira natureza, e estimar a si mesmo acima de todo o
resto. Para que aqueles nos quais os aspectos acima estavam presentes pudessem
se livrar deles, isso foi declarado. (Estrofe 157). Em geral, ao longo do budadharma, e
especialmente no Mahayana, a coisa mais importante é gerar a mente iluminada.
Se você ler o Sutra Bhadrakalpa (o Sutra da Era
Afortunada), você vai ouvir sobre como, no princípio, mil budas geraram a
mente iluminada. Gerar a mente iluminada é uma promessa, ou um compromisso, de
iluminar a si mesmo e todos os seres sencientes — e para praticantes no caminho
é a coisa mais importante. Por exemplo: quando você ora, porquê a oração
funciona? Ela funciona por causa dessa determinação, desse compromisso de
ajudar os seres sencientes. Tudo se baseia nisso. Portanto, existem cinco motivos
para ensinar sobre a natureza búdica, cada um lidando com um desses enganos — e
esses cinco motivos são totalmente voltados para nos ajudar a cumprir esse
compromisso. Primeiramente, se a natureza búdica não fosse enfatizada, então um
bodhisattva no caminho poderia sentir-se desencorajado, porque o caminho é
longo, duro e interminável. Além disso, a pessoa poderia desprezar a si mesma,
pensando “Como alguém impuro e inútil como eu pode alcançar a iluminação”?
Bodhichitta — a vontade de iluminar todos os seres sencientes — não irá surgir
em pessoas que sintam esse tipo de desencorajamento e que desprezem a si
mesmas. Quando sabemos que a natureza búdica está dentro de nós, como uma
moeda de ouro enterrada na lama, isso gera um grande encorajamento. Sabemos que
a iluminação é possível porque a natureza búdica está dentro de nós. Isso traz
alegria para o caminho. Se não soubéssemos que existe uma estátua de ouro
dentro do molde, não haveria alegria em quebrá-lo. Mas quando sabemos, o desejo
de encontrar a estátua dentro é tão grande que nem sequer notamos o processo de
quebra do molde — que é gerar a mente iluminada. Em
segundo lugar, como bodhisattvas temos que beneficiar todos os seres
sencientes. Se não soubermos que a natureza búdica reside dentro de todos,
talvez não respeitemos os outros. Ao invés disso, talvez pensássemos que somos
ótimos porque somos bodhisattvas, e então desprezássemos os outros seres
sencientes. Isso poderia se tornar um grande obstáculo, nos impedindo de
beneficiar outros seres. Imagine que você pense ser um
bodhisattva que possui a natureza búdica e que os outros seres sencientes não a
possuem — e, portanto, precisam da sua ajuda. Você acha que precisa inserir o
buda dentro deles de alguma forma. Isso é um engano enorme. É o que nós chamamos
de exagero ou imputação. A visão budista é que todos possuem a natureza búdica.
Ela não vai mudar. Ninguém, nenhum guru, nenhum Buda pode inseri-la. O máximo
que alguém pode fazer é se tornar um tipo de caminho para possibilitar que as
pessoas a realizem por si mesmas. O terceiro motivo para que a
natureza búdica seja ensinada é dissipar os obstáculos que nos impedem de
ter prajna. Existem dois desses obstáculos. O
primeiro é a imputação: ainda que não exista uma natureza búdica, nós imputamos
ou imaginamos sua existência pensando que todas essas qualidades búdicas
existem, como o ushnisha, a protuberância no topo da cabeça do
Buda, que simboliza sua grande sabedoria e iluminação. Mas elas não existem.
Também precisamos superar o segundo obstáculo à sabedoria: pensar
que as qualidades búdicas não existem, ou que não existem qualidades búdicas
dentro de nós, o que é um tipo de crítica. Essa é o quarto motivo para que a natureza
búdica seja ensinada. Por fim, o quinto motivo é
dissipar os obstáculos que nos impedem de compreender que nós somos iguais aos
outros. Se não soubermos que a natureza búdica existe igualmente dentro de
todos os seres, pode ser que tenhamos mais apego a nós mesmos e mais aversão
aos outros. Essas são os cinco motivos pelos quais a
natureza búdica é ensinada. A natureza búdica é pura e
livre de todos os tipos de fenômenos compostos, desde o princípio. A verdadeira natureza última é sempre
desprovida de qualquer coisa composta, portanto diz-se que as impurezas, o
karma e sua plena maturação são como uma nuvem, etc. (Estrofe 158). Portanto, a natureza búdica é livre dos
três tipos de emoções: desejo, agressão e inveja. Ela é livre das emoções de
formação kármica, como as ações virtuosas e não-virtuosas. E ela é livre do
resultado das emoções, os cinco agregados. Portanto, as emoções são como
nuvens. Diz-se que as impurezas são como
nuvens, o karma é equiparado à experiência dos sonhos, e a plena maturação do
karma e das impurezas — os agregados — são equiparados a conjurações. (Estrofe
159). A natureza dos seres é primordialmente pura; é por isso que a
chamamos de natureza búdica. Embora as emoções sejam fingidamente aparentes e
fingidamente teimosas, parecendo uma segunda natureza, elas nunca o são de
fato. Elas são como nuvens — adventícias, e não uma parte
verdadeira sua. Esse ponto é bem importante. No budismo nós sempre chegamos à
conclusão de que essas emoções e impurezas são temporárias. Quando estamos
olhando para um céu cinzento e nebuloso, talvez o chamemos de céu nebuloso, mas
ele não é realmente um céu nebuloso. As nuvens nunca são o céu. As nuvens são
temporárias ou adventícias. A próxima parte é crucial para
nossa compreensão de karma. Como as emoções são temporárias, aquilo que
chamamos de karma ou ação é como um sonho. Isso é importante porque muitas
pessoas pensam que o karma é quase uma espécie de substituto para Deus. Eles
acham que é como alguém que te pune, te recompensa e decide o seu destino. Mas
no budismo nunca é assim. Na verdade, o karma é como um sonho. Em um sonho você
pode vivenciar todo tipo de êxtase, mas não importa o quão ofegante e suado
você fique, é apenas um sonho. Quando dizemos “É apenas um
sonho”, há às vezes uma conotação de que nós o desprezamos por não ser real.
Mas também não é assim. Se você se apaixonar por um elefante de sonho, então no
próprio sonho você irá passar pelo êxtase de conhecer o elefante, a tristeza de
sentir saudades do elefante e, eventualmente, a agonia de não ter mais o
elefante. É assim que o karma funciona. Essa estrofe é um grande resumo
do budismo. As emoções são temporárias, então a ação é como um sonho, portanto,
os agregados — o resultado das emoções e da ação — são
como uma miragem: quanto mais você se aproxima deles, mais fúteis ou sem
essência eles se tornam. Nós nos esforçamos tanto para chegar perto do
elefante, mas ainda que haja um noivado, uma troca de anéis, uma cerimônia de
casamento, ou o que quer que seja, o elefante continua sendo uma miragem.
Para enfatizar isso, o Buda ensinou a vacuidade nos primeiros
giros da roda do dharma. No Sutra Prajnaparamita, por exemplo, ele
disse que forma é vazio, vazio é forma, e tudo é como uma miragem ou um sonho,
e por aí vai. Então, depois disso, a fim de dissipar os cinco tipos de
obstáculos ou quedas, o Buda ensinou a natureza búdica no terceiro giro da roda
do dharma. Agora chegamos ao benefício de ouvir sobre a
natureza búdica. Quando ouvimos falar da natureza búdica, sentimos alegria ou
entusiasmo em relação ao caminho, porque sabemos que a iluminação é possível.
Até mesmo um cão, já que possui a natureza búdica, é digno de reverência. Não
importa quantas emoções você tenha em erupção dentro de si, você saberá que
elas são removíveis. Isso é sabedoria. Ao mesmo tempo, você saberá que todas as
qualidades do Buda se encontram dentro de você — isso é
sabedoria primordial. Então quando ouvir, ler ou
enxergar qualidades búdicas maravilhosas, você não irá tratá-las como algo
separado de você, pensando “Bom, eles são assim, mas eu sou diferente”. Você
não irá pensar coisas desse tipo porque sabe que todas as qualidades do Buda,
até o último fio de cabelo, existem dentro de você. Não existe nada para te fazer
sentir inveja ou cobiça, porque você possui tudo. E quando você sabe que todo
mundo possui a natureza búdica, a bondade amorosa cresce. Você consegue ver
como a vacuidade isolada não te permite fazer essas coisas? Portanto, qual é o efeito de saber que você possui essas grandes
qualidades? Você sente confiança, e então a negatividade — literalmente: “as
indizíveis ações negativas”— não pode te dominar facilmente. Você se torna um
desconhecido para a negatividade, e desconhecidos possuem algum tipo de dignidade.
Quando se é um desconhecido, os outros não possuem acesso a você. Eles não
chegam e se sentem em casa com você, porque você tem coragem. O segundo efeito
de saber que possui a natureza búdica é que você não vai olhar com desprezo
para aqueles que estão desamparados, pensando que são inferiores a você. Você
não terá arrogância, nem tampouco irá se sentir inferior quando encontrar um
ser sublime, alguém que tenha alcançado muitas coisas. Não existe razão para se
sentir inferior; você possui tudo que esse ser sublime possui. Você não tem
mais nem menos do que o Buda Shakyamuni ou do que qualquer um dos mil budas.
Basicamente, devido à natureza búdica, não há mais nenhum complexo de
inferioridade ou superioridade. Quando as negatividades
surgirem, você saberá que elas não são verdadeiramente existentes. Quando
coisas boas surgirem, tais como pequenos sinais das qualidades iluminadas, você
não ficará empolgado, porque sabe que já as possui. Então existe a bondade
amorosa. Com tudo isso, você irá alcançar a iluminação. Tradução de Gabriel Falcão; revisão de Gustavo Gitti e Luís
Oliveira do texto originalmente publicado no site Lions
Roar. www.budavirtual.com.br.
Abraço. Davi
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