Budismo Theravada.Texto de Hammalawa
Saddhatissa (1914-1990). Através da leitura, audição e ponderação do
ensinamento, pode-se estabelecer uma confiança básica nele, e os primeiros
passos da trilha poderão ser dados. No budismo, como na maioria das religiões
existentes, estes primeiros passos envolvem um exame do código de moral que
governa a vida de um indivíduo. Antes de voltar-se para a vida interior, isto
é, para o desenvolvimento e liberação da mente, e este é o objetivo do
ensinamento budista, a vida exterior deve ser colocada em ordem. Contudo, mais
uma vez, nem tudo é tão simples quanto parece, e a moral budista não pode ser
considerada um outro conjunto de regras. Deve haver, ao se fazer uma escolha, o
cultivo da sabedoria e do discernimento, para que se possa detectar quando tal
escolha deve ser feita. No que diz respeito ao cultivo da força de vontade e do
discernimento, o ensinamento budista dá maior ênfase ao último, pois a
obediência cega não é incentivada e, portanto, a não ser que uma pessoa esteja
convencida de que está seguindo um curso insensato, provavelmente não o
abandonará se ele lhe for atraente. A moral budista é, de fato, uma moral
natural; ela é baseada na compreensão do indivíduo, através da experiência dos
resultados de suas ações, e na sua própria escolha consciente e esclarecida de
seguir este caminho em vez de outro. Nenhum agente externo é invocado; não se
pede obediência aos mandamentos de Deus; nem o medo ou o amor são envolvidos,
mas apenas a compreensão baseada na experiência e na escolha cuidadosa. Esta
abordagem é exemplificada na fórmula usada pelos budistas para postular seu
código moral. Não existem leis, nem deves isto ou deves aquilo. O budista é
convidado a tomar para si mesmo certas regras de treinamento, que lhe poderão
ser úteis para a obtenção daquela autoconfiança tranquila, indispensável a
todos os que procuram a harmonia e a felicidade. Não existem leis ou
mandamentos, mas um apelo ao bom senso e à ordem social.
O fundamento moral em que se baseia o
ensinamento do Budha é formulado em cinco preceitos:
1.
Submeto-me às regras de treinamento para abster-me de causar danos às coisas
viventes.
2.
Submeto-me às regras de treinamento para abster-me de desejar possuir o que não
me é dado.
3.
Submeto-me às regras de treinamento para abster-me do uso incorreto dos
sentidos.
4.
Submeto-me às regras de treinamento para abster-me das falas indevidas.
5.
Submeto-me às regras de treinamento para abster-me de tomar drogas e bebidas
que tendem a anuviar a mente.
O primeiro preceito implica um crescente
conhecimento da inviolabilidade da vida. Este preceito, frequentemente
traduzido como não matar, requer mais precisamente que não se viole, injurie
ou, de algum modo, maltrate os seres viventes. Em princípio, pode parecer
significar apenas abster-se de assassinar ou matar licenciosamente. Surge,
então, a questão de se meu prazer gastronômico deveria ser satisfeito à custa
de coisas viventes, e se os animais deveriam ser massacrados de tal modo que eu
me pudesse entreter em suas plumagens usurpadas. De que servem meus impulsos
assassinos quando sou humilhado ou frustrado? De que serve a felicidade oculta
que sinto quando alguém de quem não gosto é degradado? Se um homem que vive no
mundo ocidental, em pleno século XX, tentar seriamente pôr em prática o
primeiro preceito do código moral budista, um interminável número de
interrogações e dúvidas imediatamente surgirão. Todavia, tais questões são
frutíferas. Primeiramente, é claro, elas perturbarão e romperão sua vida, mas
gradativamente, isto é, na medida em que forem sendo devidamente enfrentadas e
trabalhadas, a própria vida adquirirá uma nova significação e perspectiva. Um
novo sentido de respeito pelo outro começará a permear seu pensamento. O
segundo preceito requer que o individuo se abstenha do desejo de possuir o que
não lhe foi dado. Aqui, mais uma vez, a interpretação mais simples que seria
não roubar é ruidosamente inadequada. Trata-se bem mais que uma questão de
desenvolver o mesmo respeito pelos possuidores de objetos inanimados que o
primeiro preceito prescreve em relação às coisas viventes. Não possuir o que
não lhe foi dado significa esperar até que as coisas lhe sejam oferecidas, em
vez de sair apressadamente e agarrá-las. Uma paciência reflexiva substituirá
gradualmente o frenético eu quero, uma atitude que prevalece atualmente.
Todavia, como no caso do primeiro preceito, uma tentativa séria de colocar em
prática a regra de treinamento para abster-se de desejar possuir o que não lhe
é dado envolve uma série de autoquestionamentos profundos. O terceiro preceito
tem sido frequentemente traduzido como abster-se de um mau procedimento sexual.
Mas isso não é tudo o que este preceito encerra. Somos aqui advertidos para nos
abstermos de um uso indevido do corpo e das sensações corpóreas. A estimulação
artificial do apetite está tão envolvida quanto o adultério e o incesto. Aquele
que se submeter a esta terceira regra de treinamento deverá refletir sobre o
modo pelo qual usa o seu corpo, órgãos sensoriais e impulsos sexuais. Isso não
é, de modo algum, uma exortação ao ascetismo. Não é imposto ao budista
abster-se da vida sexual; nem tampouco de comer os alimentos que lhe apetecem
ou deleitar os olhos e ouvidos com obras de arte e elementos da natureza que o
atraiam. O que a terceira regra advoga é um ininterrupto conhecimento da
qualidade e do grau de atividade sensual de um indivíduo. Os sentidos devem ser
gozados, mas não esfalfados; usados, mas não abusados. Não é o casamento que torna
o sexo permissível, mas o respeito e a confiança mútuos. Não é a luxúria em si
que deve ser evitada, mas a inundação da consciência que causa qualquer espécie
de indulgência e a abstenção de causar sofrimento ao próximo. Há uma lista das
variedades de falas indevidas na literatura canônica budista. Mentir é
obviamente uma delas, bem como a calúnia, a difamação, a tagarelice, a conversa
maliciosa, ou a conversa destinada a provocar o ódio ou a violência, a
revelação de segredos ditos em confiança, etc. As implicações para o moderno
budista dos termos fala indevida ou fala adequada serão tratadas com maior
profundidade posteriormente, na discussão do terceiro fator do Óctuplo Caminho.
Por enquanto, é suficiente observar que uma tentativa cuidadosa de pôr em prática
o quarto preceito envolverá necessariamente o indivíduo numa busca incessante
da auto honestidade. Do psicótico, que acredita ser Napoleão, e cuja afirmação
deste efeito suportará um teste do detector de mentiras, à pessoa normal, que
convenientemente esquece partes da informação que contradiriam sua apresentação
de um argumento, a progressão é complexa, mas inquebrável. Observar
conscientemente a quarta regra de treinamento desencadeará a questão de como
esquecemos algumas coisas, como dizemos coisas que não queríamos dizer e por
que as pessoas algumas vezes interpretam erroneamente o que dizemos. Seria
devido à nossa própria falta de clareza, ou simplesmente à falha dessas pessoas
em nos compreender? Isso nos leva a observar com mais atenção se acompanhamentos
extras não são adicionados às estórias quando as recontamos. Começamos a
refletir a respeito das coisas que desejamos dizer a uma pessoa e, em vez de
despejarmos nossa estória em quem quer que esteja à nossa volta, fazemos uma
pausa para considerar os efeitos que essa estória causaria a essa pessoa, e se
algum mal poderia advir, para ela ou para nós mesmos, se a contássemos. Evitar
as falas indevidas não é tarefa fácil de ser conseguida, e são muito poucos os
que podem afirmar terem sido plenamente bem sucedidos. E, ainda que as
observemos imperfeitamente, poderemos notar a diferença que se estabelece
quando nos submetemos a este quarto preceito. Aqui, uma vez mais, descobrimos
que a vida se torna mais dócil e tranquila na medida em que a agitação e o
barulho começam a se extinguir. Falar talvez um pouco menos nos dará tempo para
ouvir um pouco mais, uma rara virtude no mundo atual. O quinto preceito contém
uma das chaves para a interpretação de todo o código moral budista: Submeto-me
às regras de treinamento para abster-me de tomar drogas e bebidas que tendem a
anuviar a mente, pois o que é malévolo para os seres humanos, segundo o
conceito ético budista, é o embotamento deliberado da mente. O ensinamento
central do Budha é um sistema de meditação, assim designado para elucidar a
mente de que o conhecimento e a introvisão podem advir dela e ser pensados sem
impedimentos. Como preparação essencial, entretanto, o suposto seguidor deste
treinamento deve encarregar-se de treinar a si mesmo para a abstenção da
indulgência em qualquer bebida ou droga que tenda a nublar a clareza de sua
visão mental, que tenda a abafar suas dúvidas e incertezas numa nuvem de
euforia semi consciente, ou que o incentive a ver as coisas de modo diferente
do que elas realmente são. http://www.nossacasa.net/shunya.
Abraço. Davi.
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