terça-feira, 15 de março de 2016

Convicção. Posse da Verdade Absoluta?



Filosofia. Escrito por Friedrich Nietzche (1844-1900). “Convicção é a crença em algum ponto do conhecimento, de posse da verdade absoluta. Esta crença pressupõe, então que existam verdades absolutas. E, igualmente, que tenham sido achados os métodos perfeitos para alcança-las; por fim, que todo aquele que tem convicções se utilize desses métodos perfeitos. Todas as três asserções demonstram de imediato que o homem das convicções não é o do pensamento científico. Ele se encontra na idade da inocência e é uma criança, por mais adulto que seja em outros aspectos. Milênios inteiros, no entanto, viveram com essas pressuposições pueris, e delas brotaram as mais poderosas fontes de energia da humanidade. Os homens inumeráveis que se sacrificaram por suas convicções acreditavam fazê-lo pela verdade absoluta. Nisso estavam todos errados: provavelmente nenhum homem se sacrificou jamais pela verdade; ao menos a expressão dogmática de sua crença terá sido não científica ou semi científica. Mas realmente queriam no ter razão, porque achavam que deviam ter razão. Permitir que lhes fosse arrancada a sua crença talvez  significasse por em dúvida a sua própria beatitude eterna. Num assunto de tal extrema importância, a “vontade” era perceptivelmente a instigadora do intelecto. A pressuposição de todo crente de qualquer tendência era não poder ser refutado; se os contra argumentos se mostrassem muito fortes, sempre lhe restava ainda a possibilidade de difamar a razão. E até mesmo levantar o credo quia absurdum est (creio porque é absurdo) como bandeira do extremado fanatismo. Não foi o conflito de opiniões que tornou a história tão violenta, mas o conflito de fé nas opiniões, ou seja, das convicções. Se todos aqueles que tiveram em tão alta conta a sua convicção, que lhe fizeram sacrifícios de toda espécie e não pouparam honra, corpo e vida para servi-la, tivessem dedicado apenas metade de sua energia a investigar com que direito se apegavam a esta ou àquela convicção, por que caminho tinham a ela chegado: como se mostraria pacífica a história da humanidade! Quanto mais conhecimento não haveria! Todas as cruéis cenas, na perseguição aos hereges de toda espécie, nos teriam sido poupadas por duas razões: primeiro, porque os inquisidores teriam inquirido antes de tudo dentro de si mesmos, superando a pretensão de defender a verdade absoluta. Segundo, porque os próprios hereges não teriam demonstrado maior interesse por teses tão mal fundamentadas como as dos sectários e “ortodoxos” religiosos, após tê-las examinado. Dos tempos em que os homens estavam habituados a crer na posse da verdade absoluta deriva um profundo mal estar com todas as posições céticas e relativistas ante alguma questão do conhecimento. Em geral preferimos nos entregar incondicionalmente a uma convicção tida por pessoas de autoridade (pais, amigos, professores, príncipes), e sentimos uma espécie de remorso quando não o fazemos. Tal inclinação é perfeitamente compreensível, e suas consequências não nos dão direito a censuras violentas ao desenvolvimento da razão humana. Aos  poucos, no entanto, o espírito científico deve amadurecer no homem a virtude da cautelosa abstenção, o sábio comedimento que é mais conhecido no âmbito da vida prática que no da vida teórica. E que Johann Goethe (1749-1832), por exemplo, apresentou em Antônio como alvo de irritação para todos os Tassos, ou seja, para as naturezas não científicas e também passivas. O homem de convicção tem o direito de não entender o homem do pensamento cauteloso, o teórico Antônio. O homem científico, por sua vez, não tem o direito de criticá-lo por isso, é indulgente para com o outro e sabe que em determinado caso este ainda se apegará a ele, como Tasso fez afinal com Antônio. Tasso e Antônio são personagem da Peça Torquato Tasso (1790) de Goether. Quem não passou por diversas convicções, mas ficou preso à fé em cuja rede se emaranhou primeiro, é em todas as circunstâncias, justamente por causa dessa imutabilidade, um representante de culturas atrasadas. Em conformidade com esta ausência de educação (que sempre pressupõe educabilidade), ele é duro, irrazoável, incorrigível, sem brandura, um eterno desconfiado. Um inescrupuloso, que emprega todos os meios para impor sua opinião, por ser incapaz de compreender que têm de existir outras opiniões. Assim considerado, ele é talvez uma fonte de força, e em culturas que se tornaram demasiado livres e frouxas é até mesmo salutar, mas apenas porque incita fortemente à oposição. Pois a delicada estrutura da nova cultura que é obrigada a lutar contra ele se tornará forte ela mesma. Ainda somos, no essencial, os mesmos homens da época da Reforma Protestante: como poderia ser diferente? Mas o fato de já não nos permitirmos certos meios de contribuir para a vitória de nossas opiniões nos diferencia daquele tempo, e prova que pertencemos a uma cultura superior. Quem ainda hoje combate e derruba opiniões com suspeitas, com acessos de raiva, como se fazia durante a Reforma, revela claramente que teria queimado os seus rivais, se tivesse vivido em outros tempos, e que teria recorrido a todos os meios da Inquisição, se tivesse vivido como adversário da Reforma. Essa Inquisição era razoável na época, pois não significava outra coisa senão o estado de sítio que teve de ser proclamado em todo o domínio da Igreja, que como todo estado de sítio, autorizava os meios mais extremos, com base no pressuposto (que já não partilhamos com aqueles homens) de que a Igreja tinha a verdade, e de que era preciso conservá-la para a salvação da humanidade, a todo custo e com todo sacrifício. Hoje em dia, porém, já não admitimos tão facilmente que alguém possua a verdade: os rigorosos métodos de investigação propagaram desconfiança e cautela bastantes, de modo que todo aquele que defende opiniões com palavras e atos violentos é visto como um inimigo de nossa presente cultura ou, no mínimo, como um atrasado. Realmente: o pathos (sentimento de piedade, tristeza, melancolia, compaixão, ternura) DE POSSUIR A VERDADE VALE HOJE BEM POUCO EM RELAÇÃO ÀQUELE OUTRO, MAIS SUAVE E NADA ALTISSONANTE, DA BUSCA DA VERDADE, QUE NUNCA SE CANSA DE REAPRENDER E REEXAMINAR. Além disso, a própria busca metódica da verdade é resultado das épocas em que as convicções se achavam em conflito. Se o indivíduo não tivesse se preocupado com sua VERDADE, isto é, com a razão que lhe cabia, não haveria nenhum método de investigação. Mas, na eterna luta entre as reivindicações de diferentes indivíduos pela verdade absoluta, avançou-se pouco a pouco até achar princípios irrefutáveis, segundo os quais o direito dessas reivindicações podia ser examinado e a disputa apaziguada. Inicialmente se decidia conforme as autoridades, depois os indivíduos criticavam mutuamente os meios e caminhos pelos quais a suposta verdade fora encontrada. Entrementes houve um período em que tiravam as consequências da tese adversária e as viam talvez como prejudiciais e causadoras de infelicidade. Do que então devia resultar, no juízo de cada um, que a convicção do adversário continha um erro. A luta pessoal dos pensadores, enfim, aguçou de tal maneira os métodos, que verdades puderam realmente ser descobertas e os erros de métodos passados ficaram expostos diante de todos”. Do livro Humano Demasiado Humano. Abraço. Davi.

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