Budismo Tibetano. Palavras do Dalai
Lama. Transcrito por Alexander Berzin. Envolvimento Pessoal. O
meu envolvimento pessoal no diálogo islâmico budista desenvolveu-se
gradualmente ao longo de muitos anos. Nas minhas viagens à volta do mundo
ensinando budismo, visitei vários países muçulmanos. Em alguns deles, não me
dirigi diretamente a audiências muçulmanas. Por exemplo, na Malásia e na
Indonésia, dirigi-me a grupos budistas chineses, embora ocasionalmente
discutisse com eles as suas relações com a maioria muçulmana nos seus países.
Eu também falei com grupos de estudantes universitários, faculdades e
buscadores espirituais nas Repúblicas Islâmicas da Ásia Central do Cazaquistão,
Quirguistão, e Uzbequistão que sabiam muito pouco acerca da herança islâmica do
seu país. Estavam interessados em aprender o que o budismo e outras religiões e
filosofias do mundo tinham a oferecer, a fim de lidarem com os problemas
pós-soviéticos. Eu só entrei num diálogo especificamente islamo-budista depois
de uma extensa excursão por toda a Ásia Central, em 1994, quando me tornei mais
consciente sobre o potencial da cooperação islamo-budista para lidar com
algumas das questões sociais ali mais prementes. Maurício. Mais
tarde, nesse ano, comecei esse diálogo durante uma viagem pela África,
especificamente à Maurício e Zanzibar. Estas duas ilhas são os principais
pontos intermediários para o tráfico de heroína do sul da Ásia para o
continente africano. Numa reunião com o Presidente Mauriciano, um indiano de
cultura muçulmana, eu discuti o problema do abuso de drogas entre a juventude
desmoralizada e desempregada do Tibete. E como a sua comunidade religiosa
estava lidando com semelhante problema no seu país. Ele partilhou a minha
preocupação sobre o problema e concordou com a importância da religião no
estímulo à autoestima, apoio comunitário e ética para erguer aqueles que tinham
sido afetados. Mais tarde, na Universidade da Maurício, dei uma palestra sobre
"Readquirir Valores Morais na Idade Moderna: O Que o Budismo Tibetano Pode
Oferecer". Houve uma resposta entusiástica. Zanzibar. Em
Zanzibar, que a população é de 95%
muçulmana, encontrei-me com os chefes locais que me falaram sobre o modesto
sucesso do uso do islão na ajuda àqueles que desejam abandonar o seu hábito da
heroína. Quando os ex viciados são mantidos ocupados com lavagens e orações
rituais cinco vezes por dia, não têm muito tempo vago e inativo para o
preencherem com drogas. Este exemplo dá-nos que pensar sobre os possíveis
benefícios de atividades físicas, como as prostrações, para viciados de cultura
budista.
Turquia. Na
primavera de 1995, durante uma visita a Istambul, Turquia, encontrei-me com o
decano e um grupo de professores de Lei Islâmica e Filosofia de Religião, da
Faculdade Ilahiyat de Teologia Islâmica da Universidade de Marmara. Eu tinha
pedido a reunião a fim de falar sobre a perspectiva da lei islâmica em relação
ao budismo, como uma forma de ajudar e apoiar a harmonia religiosa islâmico
budista face à situação atual de grande afluência de migrantes Hui (chineses
muçulmanos) no Tibete. Uma comunidade de muçulmanos tem vivido no Tibete desde
o século XVII, bem integrada na comunidade predominantemente budista, e gozando
por tradição de especiais privilégios legais, concedidos pelo V Dalai Lama. No
entanto, a atual situação de grande estresse no Tibete, com a grande
transferência populacional das áreas da China Han, produziu compreensíveis
tensões. Os
professores sentiram que não havia nenhum problema do lado do islão em relação
à harmonia com os budistas, e citaram três razões. Certos eruditos islâmicos
modernos afirmaram que o Profeta Dhu'l Kifl – o "homem de Kifl" –
mencionado duas vezes no Quran [Alcorão] se refere a Budha, sendo
Kifl a interpretação árabe do nome do reino nativo de Budha, Kapilavastu. A
menção Quranic [alcorâ nica] da figueira, continuaram
eles, refere-se à árvore bodhi sob a qual Budha manifestou a sua iluminação. O Quran [Alcorão]
diz que os seguidores de Dhu'l Kifl são pessoas justas. Segunda; al-Biruni e
al-Shahrastani, dois eruditos islâmicos que visitaram a Índia nos séculos XI e
XII, respectivamente. E escreveram sobre as suas religiões, chamaram
"Profeta" o Budha, no contexto da explicitação de como os indianos
consideravam Budha. E terceira, os muçulmanos caxemirianos, que se
estabeleceram no Tibete a partir do século XVII, casaram com mulheres tibetanas
budistas dentro do contexto da Lei Islâmica.
Os professores explicaram que o islão
tolera todos os "povos do Livro", definido como povos que aceitam um
Deus criador. Porém, a Lei Islâmica, especificamente durante o domínio árabe de
Sindh, século VIII ao X, ampliou o conceito de "povos do Livro" aos
budistas dali, concedendo-lhes o mesmo estatuto e direitos que os cristãos e os
judeus tinham sob o domínio árabe. Eu salientei que os árabes muçulmanos, na
sua expansão à Ásia Central, no século VIII, primeiro tiveram contato com o budismo
no atual Uzbequistão e norte do Afeganistão. Ali, os textos budistas mais
extensamente usados encontravam-se traduzidos em turco antigo e, mais tarde, em
sogdiano. Nestas línguas, "Dharma" foi traduzido pela palavra
emprestada do grego "nom", que significa "lei". Os turcos e
os mongóis uigures foram buscar este termo ao sogdiano, e usaram-no também para
significar "livro". Assim, por toda a Ásia Central medieval, os
budistas, como "povos do Dharma", podem ter sido também entendidos
como "povos do Livro". Indonésia.
O Estado da Indonésia, na sua maior
parte muçulmano, oficialmente permite seis religiões – islamismo, catolicismo,
protestantismo, hinduísmo, budismo, e confucionismo – porque todas elas aceitam
um Deus criador. A fim de preencherem esses requisitos, os budistas da
Indonésia postulam Adibudha. O Budha primordial do Kalachakra Tantra,
como o criador. Os ensinamentos de Kalachakra tinham florescido na Indonésia,
especialmente durante o final do século X, conforme relatado por Atisha durante
a sua visita. Hoje em dia, há lá muito pouco conhecimento desses ensinamentos. Em
1988, durante uma excursão de palestras pela Indonésia, tive muitas conversas
com monges budistas sobre a questão de Deus no budismo. Uma vez que Adibudha
pode ser interpretado como a consciência primordial de luz clara, e como todas
as aparências do Samsara e Nirvana são o brincar ou a "criação" dessa
mente. Concluímos que não há razão para nos sentirmos desconfortáveis ao
dizermos que o budismo aceita um Deus criador. O fato do budismo afirmar que
Adibudha não é um ser individual separado, mas algo presente em cada ser
senciente (capaz de sentir ou perceber através dos sentidos), é apenas uma
questão de diferenças teológicas a respeito da natureza de Deus. Muitos
pensadores judeus, cristãos, islâmicos e hindus afirmam que Deus é abstrato e
está presente em todos os seres. Como os muçulmanos dizem: "Aláh tem
muitos nomes". Por
conseguinte, da minha experiência na Indonésia, concordei, com base em
Adibudha, que o budismo aceita um Deus criador, mas com a sua própria
interpretação. Assim que esta base comum foi estabelecida, pude facilmente
iniciar um diálogo confortável com os teólogos islâmicos na Turquia.
Convidaram-me a regressar mais tarde, nesse ano, à sua universidade para ensinar
o budismo e a relação entre o islamismo e o budismo ao corpo de estudantes e à
faculdade.
O Diálogo entre Sua Santidade o Dalai Lama e um Mestre Sufi da África Ocidental. Sua
Santidade o Dalai Lama tem tido contatos com líderes islâmicos por todo o mundo,
durante muitos anos. Depois do meu regresso da Turquia à Índia, acompanhei o
Dr. Tirmiziou Diallo (1938- ), o
hereditário líder religioso Sufi da Guiné, África Ocidental, a Dharamsala, para
o seu encontro com Sua Santidade. Nos dias que antecederam a audiência, ele e
eu debatemos ainda mais o significado de "povos do Livro". O Dr.
Diallo achou que se refere a pessoas que seguem a "Tradição
Primordial". Isto pode ser chamado a sabedoria de Aláh ou de Deus, ou da
profunda consciência primordial, como em termos budistas lhe sugeri. Assim, ele
prontamente aceitou que a tradição primordial de sabedoria foi revelada não só
por Moisés, Jesus e Maomé (ou Muhammad), como também ao Budha. Se os povos
seguirem esta inata tradição e sabedoria primordial, eles serão "povos do
Livro". Mas, se forem contra esta boa e sábia natureza básica da
humanidade e do Universo, elas não serão do "Livro". Nesse
sentido, então, é aceitável dizer-se que Budha era um profeta de Deus e isto
encaixa bem com a interpretação dos professores [universitários] turcos,
segundo a qual "povos do Livro" se refere àqueles que aceitam o Deus
criador. Adibudha, como mente de luz clara, é não só a profunda consciência
primordial, como o criador de todas as aparências. O Dr. Diallo ficou muito
feliz com esta conversa e citou um hadith (provérbio pessoal
de Maomé) mandando seus seguidores procurarem a sabedoria por todo o caminho
até à China. O
próprio Dr. Diallo seguiu os princípios deste hadith. Assistiu
ao último dia do discurso de Sua Santidade sobre Bodhicharyavatara (Engajando
no Comportamento do Bodhisattva), de Shantideva, incluindo o empoderamento
de Avalokiteshvara dado por Sua Santidade. Ele ficou especialmente comovido com
os votos do Bodhisattva. Nas tradições sufistas da África Ocidental, há também
um total compromisso na procura da perfeição que está para além de palavras, e
no servir de toda a criação.
No último dia da sua visita, o Dr.
Diallo teve a sua audiência privada com Sua Santidade. Vestido com elegantes
mantos brancos, o majestoso líder espiritual africano ficou tão comovido no
primeiro momento da presença de Sua Santidade, que começou a chorar. Sem pedir
ao seu assistente, como normalmente faria, Sua Santidade foi pessoalmente à sua
antecâmara e trouxe de lá um lenço, que ofereceu ao mestre sufista para limpar
as suas lágrimas. O Dr. Diallo ofereceu a Sua Santidade um tradicional turbante
muçulmano, que Sua Santidade sem hesitação usou durante o resto da audiência. Sua
Santidade abriu o diálogo explanando que se ambos, budistas e muçulmanos,
permanecessem flexíveis nos seus pensamentos, seria possível um diálogo aberto
e frutífero. O encontro foi extremamente caloroso e emocionalmente tocante. Sua
Santidade fez numerosas perguntas sobre a tradição de meditação sufista,
especificamente sobre as linhagens da África Ocidental que enfatizam a prática
do amor, compaixão e serviço. O Dr. Diallo tem vivido muitos anos no exílio, na
Alemanha, após a conquista comunista do seu país. Houve muitas coisas em comum
em que os dois compartilharam. Sua Santidade e o Dr. Diallo prometeram
continuar no futuro com o diálogo islâmico budista. Tornando a Visitar a Turquia. Nos
finais de 1995, tornei a visitar o Médio Oriente. Regressando à Faculdade
Islâmica Ilahiyet, da Universidade Marmara, Istambul, dei aulas aos acadêmicos
e estudantes universitários do Departamento de Filosofia. Este departamento
prepara professores de religião islâmica, assim como professores do ensino
secundário de islamismo e de outras religiões, incluindo o budismo para toda a
Turquia. Os professores estavam muito entusiasmados no estabelecimento de um
diálogo islâmico budista, e nós debatemos temas tais como a criação, revelação,
e a origem da ética. O islamismo postula Deus não como uma pessoa, mas como um
princípio criador abstrato, e algumas escolas de teologia islâmica postulam que
a criação não tem início. Falando em termos de mente de luz clara como o
criador sem início de aparências também sem início. E de Buda como um
revelador de verdades superiores, tivemos uma boa base para um diálogo animado
e amigável. A
entrevista que tinha dado nesta universidade, durante a minha anterior visita,
havia sido publicada numa revista muito popular entre os fundamentalistas
islâmicos locais. Lida não só na Turquia, mas por todas as Repúblicas Islâmicas
da Ásia Central. O coordenador universitário à minha visita disse que
publicaria, na mesma revista, uma tradução turca do escrito preparatório para a
palestra que desta vez dei sobre os princípios e a história do budismo.
Especialmente a sua história entre os povos turcos da Ásia Central, e a
situação atual do budismo por todo o mundo. Fui convidado não só a regressar a
esta faculdade islâmica para outras palestras no final de 1996. Como também a
ter reuniões semelhantes com líderes religiosos sufistas, em Konya, e com
acadêmicos e estudantes de outras universidades da Turquia. Egito. Depois
da Turquia fui ao Egito, onde havia sido convidado a ensinar na Universidade do
Cairo. O primeiro grupo com o qual me encontrei foi o dos académicos do Centro
de Estudos Asiáticos, da Faculdade de Economia e Ciência Política. Tinham-me
pedido que ensinasse sobre "O Impacto do Pensamento Budista no
Desenvolvimento Político e Econômico Asiático". Estavam especialmente
interessados em saber como os princípios budistas tinham contribuído para o
sucesso econômico das nações do "tigre asiático". A fim de poderem de
algum modo usar o islamismo como suporte a um semelhante fenômeno na
transformação do Egito num "tigre africano e do médio oriente".
Desejavam também compreender a Ásia e as suas religiões de forma a
estabelecerem melhores ligações políticas e econômicas com a região. Não
desejavam estar isolados sob o conceito incorreto de que todos os muçulmanos
são terroristas fundamentalistas e fanáticos.
Esta foi a primeira aula dada nesta
faculdade sobre o pensamento budista, e o interesse e entusiasmo foram enormes.
Pediram-me que submetesse um trabalho sobre as bases dos ensinamentos budistas,
apresentado de maneira facilmente compreensível numa perspectiva islâmica. Isso
para publicação, em inglês e em árabe, na sua Série de Monografias Asiáticas, distribuída
por todo o mundo de língua árabe. Isto foi publicado em Junho de 1996. No
dia seguinte, dei uma palestra sobre as bases dos ensinamentos budistas a
trezentos estudantes universitários do primeiro ano de um curso de filosofia
asiática na Faculdade das Artes. Foi seguida por uma palestra num seminário de
pós-graduados em filosofia. Os estudantes e o pessoal estavam tão sedentos de
informação sobre a Ásia quanto as pessoas do mundo ex comunista costumavam
estar. Contudo, isto não era em termos de uma busca espiritual como nos países
ex comunistas, mas mais em termos de estabelecer contato com o resto do mundo
através, da compreensão e respeito mútuos. Na manhã destas duas últimas
palestras, quinze diplomatas egípcios foram mortos numa explosão terrorista, na
Embaixada Egípcia no Paquistão. Houve um grande protesto na universidade pelos
estudantes. Havia uma enorme presença de militares e polícias, com veículos armados,
prisões e assim por diante, que tivemos de contornar a fim de entrarmos na
universidade. Apesar do que se estava passando fora do edifício da sala de
aulas, foi agradável verificar como havia tanto interesse no budismo. Jordânia. A
minha última paragem nessa excursão foi em Mafraq, Jordânia, onde tinha sido
convidado pela Universidade Al al-Bayt. Esta Universidade internacional,
construída na sua maior parte pelo Governo da Jordânia, foi inaugurada em 1994.
Tem dois mil estudantes, metade dos quais originários de outros países
muçulmanos, com alguns cristãos europeus e norte-americanos, e uma grande
equipe de funcionários estrangeiros. Foi fundada para aumentar a mútua
compreensão entre todas as sete tradições do islamismo e entre o islamismo e as
outras religiões do mundo. Eu encontrei-me com o Presidente da Universidade,
que estava de partida para o Japão, em Dezembro de 1995, como o apresentador
principal e organizador de uma conferência sobre a compreensão islâmico
budista. Ele expressou interesse em realizar tal conferência na Jordânia no
futuro. Convidou-me a regressar à Universidade no final de 1996, para
apresentar uma série de palestras sobre o budismo e o Tibete, a sua relação com
o islamismo, e para continuar com o diálogo. Ele deseja construir uma seção
budista na biblioteca da Universidade e pediu-me para preparar uma lista de
livros para esse efeito.
Tive um diálogo com o Corpo Docente do
Instituto Superior de Ciência Política Bayt al-Hikmah, da Universidade, sobre a
interação entre o islamismo e o budismo na antiga e moderna Ásia. Eles estão
principalmente focalizados na região da Malásia Indonésia, mas estão muito
interessados em aprender sobre outras regiões. Pediram informação sobre os
muçulmanos tibetanos para a sua base de dados pan islâmica e convidaram-me a
regressar para debater o papel da ética budista no desenvolvimento econômico.
Encontrei-me também com professores universitários visitantes de Marrocos e da
Síria, que estavam igualmente muito interessados num diálogo semelhante. Perspectivas Futuras. O
objetivo principal do diálogo islâmico budista, então, como o experienciei, é
educacional – para se aprender mais sobre as crenças e a cultura um do outro. A
Biblioteca de Obras e Arquivos Tibetanos, em Dharamsala, Índia, tem desempenhado
um papel principal no alcance deste objetivo. Iniciaram um programa de permuta
de jornais acadêmicos e livros com as várias Universidades dos países
islâmicos com que estabeleci contato. Do mesmo modo, estão estabelecendo
programas de cooperação com Instituições das Repúblicas Islâmicas da Ásia
Central, da ex União Soviética (Rússia), para pesquisas adicionais sobre a história da
interação entre budistas e muçulmanos nessa parte do mundo. As perspectivas de
maior contato e cooperação são vastas. http://www.berzinaches.com.br. Abraço. Davi.
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