Leonardo
Boff (1938- ). Que futuro está reservado
a este tipo de Igreja latina, ocidental e extemporânea ao nosso tempo
histórico? Isso depende do futuro que terá a cultura ocidental que ela ajudou a
conformar. Seguramente, o futuro da humanidade não passará mais pelo Ocidente
que mais e mais se torna um acidente. O cristianismo está hoje majoritariamente
no Terceiro e Quarto Mundos. A despeito dos controles praticados pelas
autoridades centrais do Vaticano, aqui está ocorrendo um vigoroso e novo ensaio
de encarnação do cristianismo nas diferentes culturas. O cristianismo como um
todo só terá significado sob duas condições: se todas as igrejas se
reconhecerem reciprocamente como portadoras da mensagem de Jesus, sem nenhuma
delas levantar a pretensão de exclusividade e excepcionalidade, e a partir
desta pericórese (inter retro relação) das igrejas, juntas, dialogarem com as
religiões do mundo, acolherem-se umas as outras, como caminhos espirituais
habitados e animados pelo Espírito. Só assim haverá paz religiosa, que é um dos
pressupostos importantes para a paz mundial. A segunda condição é de o
cristianismo se desmitologizar, se desocidentalizar, se despatriarcalizar e se
organizar em redes de comunidades que dialogam e se encarnam nas culturas
locais, se acolhem reciprocamente e
formam juntas o grande caminho espiritual cristão que se soma aos demais
caminhos espirituais e religiosos da humanidade. Todos alimentarão a chama
sagrada da presença do Deus trindade no coração de cada pessoa e no universo. O
cristianismo ajudará as pessoas a se religarem com a Natureza, à Mãe Terra e
com Deus comunhão. Então o cristianismo, humildemente, poderá se apresentar em
sua singularidade como uma entre outras fontes de religação entre os seres
humanos, entre os povos, com a Natureza, com a Terra e com Deus. Fonte de toda
vida, de todo o sentido e de todo o amor. Será por meio de seu testemunho da
ressurreição iniciada em Jesus que alimentará a esperança de um grandioso fim
para o Universo. O cristianismo e sua
contribuição civilizatória. Não obstante estes reducionismos, importa
reconhecer, não se impediu que esse tipo de encarnação trouxesse uma
inestimável contribuição à consciência política do Ocidente e a partir dele,
para todo o mundo: a dignidade inviolável da pessoa humana, por pobre e
miserável que apareça. Daí se derivaram os direitos universais, os ideais de
igualdade, liberdade e fraternidade, e a própria ideia de democracia. Ao
desdivinizar a Natureza, libertou-a para que pudesse ser estudada pela ciência
e transformada pela técnica, embora por sua pregação e catequese não tenha
sabido infundir aquele respeito necessário para que a tecnociência, feita com
consciência e com senso ético, não servisse apenas aos objetivos da acumulação
do mercado, mas à vida e à preservação de todo o cristão. O cristianismo se
expressou melhor lá onde foi vivido, e continua sendo vivido como
espiritualidade. Quer dizer, como um caminho de busca de perfeição pelo cultivo
do amor a Deus, ao próximo, especialmente, aos esquecidos e últimos, e a todas
as coisas da criação. Esta espiritualidade se rege menos por doutrinas do que
pela escuta do Espírito que fala pelos sinais dos tempos, pelo encontro pessoal
com o Cristo ressuscitado que penetra toda a matéria e a história, pelo
seguimento de seu modo histórico de vida. Desde os primórdios, e até com velada
crítica à Igreja imperial, surgiu, por todas as partes, mas começando no Egito
e na Síria, o movimento monacal, dos anacoretas, dos cenobitas e até dos
estilitas. A partir do século VI com São bento (480-547) se inaugurou a vida
religiosa monacal. Surgiram as várias ordens e congregações, destacando-se
entre todas as mendicantes com São Domingos (1170-1221), São Francisco de Assis
(1182-1226) e os Servos de Maria no século XII e XIII. Modernamente pelos
Irmãos e Irmãzinhas de Foucauld que se deixaram fascinar pela figura e mensagem
evangélica de Jesus humilde e pobre. Em seu seio se viveu forte espiritualidade
e se cultivaram as virtudes cristãs em grau eminente. Especialmente encarnaram
os valores do Reino aquelas religiosas e religiosos que entregaram suas vidas
aos pobres e oprimidos, aos deserdados deste mundo, aos abandonados nos
interiores das florestas. Servindo-os generosamente, não raro com risco de vida
e até de serem martirizados em nome dos direitos dos pobres e da justiça maior
do Reino. Ou como Madre Teresa de Calcutá (1910-1997) que recolhia moribundos
das ruas para que pudessem morrer com dignidade, cercados de pessoas e de
orações. Estas figuras exemplares tornam o cristianismo crível e testemunham
que o Reino está a caminho e que seus bens podem fazer histórica mesmo no meio
de grandes contradições. Figuras exemplares de vida espiritual são os místicos
cristãos. Nestes o Reino de Deus mostrou sua antecipação densa e eficaz. São e
foram eles que mais vivenciaram o Deus Trindade como São João da Cruz
(1542-1591), Santa Teresa d’Ávila (1515-1582), o Mestre Eckhart (1260-1382),
São Francisco de Assis (1182-1226), São Boaventura (1728-1799), São Francisco
de Sales (1567-1622), a Beata Ângela de Foligno (1248-1309), Perre Teilhard de
Chardin (1881-1955) e Thomas Merton (1915-1968) entre tantos e tantas, a
maioria anônimos, mas repletos pelo Espírito de Deus. Se há um campo no qual o
cristianismo mostrou sua beleza e profundidade insuspeitada foi no campo da
celebração. Os cristãos souberam celebrar o Mistério pascal e a vida e a obra
de Jesus. Criaram símbolos poderosos e
músicas como o canto gregoriano, cuja beleza toca o profundo da alma. As missas
polifônicas que nos elevam aos céus e suscitam os mais sublimes sentimentos de
que a Trindade Santíssima se faz presente e sua graça pode ser saboreada.
Muitas festas e celebrações se enraizaram na existência cristã como os ritos da
Semana Santa, o Natal, a Páscoa, Pentecostes e Corpus Cristi. As grandes
romarias de Canindé, de Aparecida do Norte (no Brasil); de Nossa Senhora de
Guadalupe no México; de Lourdes (França); de Fátima (Portugal) e os lugares
bíblicos em Israel. Outro campo de expressão do cristianismo, dos mais puros e
belos, foi a música. Podemos dizer que nunca houve entre cristianismo e música
qualquer conflito significativo. Música e experiência do sagrado, melodia e
celebração da presença do Mistério possuem uma natureza afim. Como não se
impactar com a Paixão segundo São Mateus de Bach, seu Magnificat, suas fugas? O
Requiem de Mozart, a obra melodiosa de Palestrina, as missas graves e solenes
do Padre José Maurício (1767-1830) do tempo do Império? Os Spirituals da música
negra norte americana, as canções de grande beleza melódica e de conteúdo
libertador das Comunidades Eclesiais de Base? A Missa Campesina da Nicarágua,
as missas da Terra sem Males e dos Quilombolas, do grande cantor negro Milton
Nascimento (1942- ) e de Dom Pedro Casaldáliga
(1928- ), o profeta das minorias
oprimidas, entre tantas outras músicas e de distintos gêneros? Do Livro
Cristianismo o Mínimo do Mínimo. Abraço.
Davi.
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