quinta-feira, 3 de março de 2016

I. O Futuro do Cristianismo na Era Global.



Leonardo Boff (1938-  ). Que futuro está reservado a este tipo de Igreja latina, ocidental e extemporânea ao nosso tempo histórico? Isso depende do futuro que terá a cultura ocidental que ela ajudou a conformar. Seguramente, o futuro da humanidade não passará mais pelo Ocidente que mais e mais se torna um acidente. O cristianismo está hoje majoritariamente no Terceiro e Quarto Mundos. A despeito dos controles praticados pelas autoridades centrais do Vaticano, aqui está ocorrendo um vigoroso e novo ensaio de encarnação do cristianismo nas diferentes culturas. O cristianismo como um todo só terá significado sob duas condições: se todas as igrejas se reconhecerem reciprocamente como portadoras da mensagem de Jesus, sem nenhuma delas levantar a pretensão de exclusividade e excepcionalidade, e a partir desta pericórese (inter retro relação) das igrejas, juntas, dialogarem com as religiões do mundo, acolherem-se umas as outras, como caminhos espirituais habitados e animados pelo Espírito. Só assim haverá paz religiosa, que é um dos pressupostos importantes para a paz mundial. A segunda condição é de o cristianismo se desmitologizar, se desocidentalizar, se despatriarcalizar e se organizar em redes de comunidades que dialogam e se encarnam nas culturas locais, se acolhem  reciprocamente e formam juntas o grande caminho espiritual cristão que se soma aos demais caminhos espirituais e religiosos da humanidade. Todos alimentarão a chama sagrada da presença do Deus trindade no coração de cada pessoa e no universo. O cristianismo ajudará as pessoas a se religarem com a Natureza, à Mãe Terra e com Deus comunhão. Então o cristianismo, humildemente, poderá se apresentar em sua singularidade como uma entre outras fontes de religação entre os seres humanos, entre os povos, com a Natureza, com a Terra e com Deus. Fonte de toda vida, de todo o sentido e de todo o amor. Será por meio de seu testemunho da ressurreição iniciada em Jesus que alimentará a esperança de um grandioso fim para o Universo.  O cristianismo e sua contribuição civilizatória. Não obstante estes reducionismos, importa reconhecer, não se impediu que esse tipo de encarnação trouxesse uma inestimável contribuição à consciência política do Ocidente e a partir dele, para todo o mundo: a dignidade inviolável da pessoa humana, por pobre e miserável que apareça. Daí se derivaram os direitos universais, os ideais de igualdade, liberdade e fraternidade, e a própria ideia de democracia. Ao desdivinizar a Natureza, libertou-a para que pudesse ser estudada pela ciência e transformada pela técnica, embora por sua pregação e catequese não tenha sabido infundir aquele respeito necessário para que a tecnociência, feita com consciência e com senso ético, não servisse apenas aos objetivos da acumulação do mercado, mas à vida e à preservação de todo o cristão. O cristianismo se expressou melhor lá onde foi vivido, e continua sendo vivido como espiritualidade. Quer dizer, como um caminho de busca de perfeição pelo cultivo do amor a Deus, ao próximo, especialmente, aos esquecidos e últimos, e a todas as coisas da criação. Esta espiritualidade se rege menos por doutrinas do que pela escuta do Espírito que fala pelos sinais dos tempos, pelo encontro pessoal com o Cristo ressuscitado que penetra toda a matéria e a história, pelo seguimento de seu modo histórico de vida. Desde os primórdios, e até com velada crítica à Igreja imperial, surgiu, por todas as partes, mas começando no Egito e na Síria, o movimento monacal, dos anacoretas, dos cenobitas e até dos estilitas. A partir do século VI com São bento (480-547) se inaugurou a vida religiosa monacal. Surgiram as várias ordens e congregações, destacando-se entre todas as mendicantes com São Domingos (1170-1221), São Francisco de Assis (1182-1226) e os Servos de Maria no século XII e XIII. Modernamente pelos Irmãos e Irmãzinhas de Foucauld que se deixaram fascinar pela figura e mensagem evangélica de Jesus humilde e pobre. Em seu seio se viveu forte espiritualidade e se cultivaram as virtudes cristãs em grau eminente. Especialmente encarnaram os valores do Reino aquelas religiosas e religiosos que entregaram suas vidas aos pobres e oprimidos, aos deserdados deste mundo, aos abandonados nos interiores das florestas. Servindo-os generosamente, não raro com risco de vida e até de serem martirizados em nome dos direitos dos pobres e da justiça maior do Reino. Ou como Madre Teresa de Calcutá (1910-1997) que recolhia moribundos das ruas para que pudessem morrer com dignidade, cercados de pessoas e de orações. Estas figuras exemplares tornam o cristianismo crível e testemunham que o Reino está a caminho e que seus bens podem fazer histórica mesmo no meio de grandes contradições. Figuras exemplares de vida espiritual são os místicos cristãos. Nestes o Reino de Deus mostrou sua antecipação densa e eficaz. São e foram eles que mais vivenciaram o Deus Trindade como São João da Cruz (1542-1591), Santa Teresa d’Ávila (1515-1582), o Mestre Eckhart (1260-1382), São Francisco de Assis (1182-1226), São Boaventura (1728-1799), São Francisco de Sales (1567-1622), a Beata Ângela de Foligno (1248-1309), Perre Teilhard de Chardin (1881-1955) e Thomas Merton (1915-1968) entre tantos e tantas, a maioria anônimos, mas repletos pelo Espírito de Deus. Se há um campo no qual o cristianismo mostrou sua beleza e profundidade insuspeitada foi no campo da celebração. Os cristãos souberam celebrar o Mistério pascal e a vida e a obra de Jesus. Criaram  símbolos poderosos e músicas como o canto gregoriano, cuja beleza toca o profundo da alma. As missas polifônicas que nos elevam aos céus e suscitam os mais sublimes sentimentos de que a Trindade Santíssima se faz presente e sua graça pode ser saboreada. Muitas festas e celebrações se enraizaram na existência cristã como os ritos da Semana Santa, o Natal, a Páscoa, Pentecostes e Corpus Cristi. As grandes romarias de Canindé, de Aparecida do Norte (no Brasil); de Nossa Senhora de Guadalupe no México; de Lourdes (França); de Fátima (Portugal) e os lugares bíblicos em Israel. Outro campo de expressão do cristianismo, dos mais puros e belos, foi a música. Podemos dizer que nunca houve entre cristianismo e música qualquer conflito significativo. Música e experiência do sagrado, melodia e celebração da presença do Mistério possuem uma natureza afim. Como não se impactar com a Paixão segundo São Mateus de Bach, seu Magnificat, suas fugas? O Requiem de Mozart, a obra melodiosa de Palestrina, as missas graves e solenes do Padre José Maurício (1767-1830) do tempo do Império? Os Spirituals da música negra norte americana, as canções de grande beleza melódica e de conteúdo libertador das Comunidades Eclesiais de Base? A Missa Campesina da Nicarágua, as missas da Terra sem Males e dos Quilombolas, do grande cantor negro Milton Nascimento (1942-  ) e de Dom Pedro Casaldáliga (1928-  ), o profeta das minorias oprimidas, entre tantas outras músicas e de distintos gêneros? Do Livro Cristianismo o Mínimo do Mínimo.  Abraço. Davi.

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