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Texto de Allan Kardec (1804-1869). IGUALDADE E FRATERNIDADE. "A
liberdade é filha da fraternidade e da igualdade. Os homens que vivam como
irmãos, com direitos iguais, animados do sentimento de benevolência recíproca,
praticarão entre si a justiça, não procurarão causar danos uns aos outros e
nada, por conseguinte, terão que temer uns dos outros. A liberdade nenhum
perigo oferecerá, porque ninguém pensará em abusar dela em prejuízo de seus
semelhantes (...)" Allan Kardec. Liberdade, Igualdade, Fraternidade: estas três palavras constituem, por
si sós, o programa de toda uma ordem social que realizaria o mais absoluto
progresso da Humanidade, se os princípios que elas exprimem pudessem receber
integral aplicação. Vejamos quais os obstáculos que, no estado atual da
sociedade, se lhes opõem e, ao lado do mal, procuremos o remédio. A
fraternidade, na rigorosa acepção do termo, resume todos os deveres dos homens,
uns para com os outros. Significa: devotamento, abnegação, tolerância,
benevolência, indulgência. Ë, por excelência, a caridade evangélica e a
aplicação da máxima: "Proceder para com os outros, como quereríamos que os
outros procedessem para conosco." O oposto do egoísmo. A fraternidade
diz: "Um por todos e todos por um." O egoísmo diz: "Cada
um por si." Sendo estas duas qualidades a negação uma da outra, tão
impossível é que um egoísta proceda fraternalmente para com os seus
semelhantes, quanto a um avarento ser generoso, quanto a um indivíduo de
pequena estatura atingir a de um outro alto. Ora, sendo o egoísmo a chaga
dominante da sociedade, enquanto ele reinar soberanamente, impossível será o
reinado da fraternidade verdadeira. Cada um a quererá em seu proveito; não
quererá, porém, praticá-la em proveito dos outros, ou, se o fizer, será depois
de se certificar de que não perderá coisa alguma. Considerada do
ponto de vista da sua importância para a realização da felicidade social, a
fraternidade está na primeira linha: é a base. Sem ela, não poderiam existir a
igualdade, nem a liberdade séria. A igualdade decorre da fraternidade e a
liberdade é consequência das duas outras. Com efeito, suponhamos
uma sociedade de homens bastante desinteressados, bastante bons e benévolos
para viverem fraternalmente, sem haver entre eles nem privilégios, nem direitos
excepcionais, pois de outro modo não haveria fraternidade. Tratar a alguém de
irmão é tratá-lo de igual para igual; é querer quem assim o trate, para ele, o
que para si próprio quereria. Num povo de irmãos, a igualdade será a
consequência de seus sentimentos, da maneira de procederem, e se estabelecerá
pela força mesma das coisas. Qual, porém, o inimigo da igualdade? O orgulho,
que faz queira o homem ter em toda parte a primazia e o domínio, que vive de
privilégios e exceções, poderá suportar a igualdade social, mas não a fundará
nunca e na primeira ocasião a desmantelará. Ora, sendo também o orgulho uma das
chagas da sociedade, enquanto não for banido, oporá obstáculo à verdadeira
igualdade. A liberdade, dissemo-lo, é filha da fraternidade e
da igualdade. Falamos da liberdade legal e não da liberdade natural, que, de
direito, é imprescritível para toda criatura humana, desde o selvagem até o
civilizado. Os homens que vivam como irmãos, com direitos iguais, animados do
sentimento de benevolência recíproca, praticarão entre si a justiça, não
procurarão causar danos uns aos outros e nada, por conseguinte, terão que temer
uns dos outros. A liberdade nenhum perigo oferecerá, porque ninguém pensará em
abusar dela em prejuízo de seus semelhantes. Mas, como poderiam o egoísmo, que
tudo quer para si, e o orgulho, que incessantemente quer dominar, dar a mão à
liberdade que os destronaria? O egoísmo e o orgulho são, pois, os inimigos da
liberdade, como o são da igualdade e da fraternidade. A liberdade
pressupõe confiança mútua. Ora, não pode haver confiança entre pessoas
dominadas pelo sentimento exclusivista da personalidade. Não podendo cada uma
satisfazer-se a si própria senão à custa de outrem, todas estarão
constantemente em guarda umas contra as outras. Sempre receosas de perderem o a
que chamam seus direitos, a dominação constitui a condição mesma da existência
de todas, pelo que armarão continuamente ciladas à liberdade e a cercearão
quanto puderem. Aqueles três princípios são, pois, conforme acima
dissemos, solidários entre si e se prestam mútuo apoio; sem a reunião deles o
edifício social não estaria completo. O da fraternidade não pode ser praticado
em toda a pureza, com exclusão dos dois outros, porquanto, sem a igualdade e a
liberdade, não há verdadeira fraternidade. A liberdade sem a fraternidade é
rédea solta a todas as más paixões, que desde então ficam sem freio; com a
fraternidade, o homem nenhum mau uso faz da sua liberdade: é a ordem; sem a
fraternidade, usa da liberdade para dar curso a todas as suas torpezas: é a
anarquia, a licença. Por isso é que as nações mais livres se veem obrigadas a
criar restrições à liberdade. A igualdade, sem a fraternidade,
conduz aos mesmos resultados, visto que a igualdade reclama a liberdade; sob o
pretexto de igualdade, o pequeno rebaixa o grande, para lhe tomar o lugar, e se
torna tirano por sua vez; tudo se reduz a um deslocamento de despotismo. Seguir-se-á
daí que, enquanto os homens não se acharem imbuídos do sentimento de
fraternidade, será necessário tê-los em servidão? Dar-se-á sejam inaptas as
instituições fundadas sobre os princípios de igualdade e de liberdade?
Semelhante opinião fora mais que errônea; seria absurda. Ninguém
espera que uma criança se ache com o seu crescimento completo para lhe ensinar
a andar. Quem, ao demais, os tem sob tutela? Serão homens de ideias elevadas e
generosas, guiados pelo amor do progresso? Serão homens que se aproveitem da
submissão dos seus inferiores para lhes desenvolver o senso moral e elevá-los
pouco a pouco à condição de homens livres? Não; são, em sua maioria, homens
ciosos do seu poder, a cuja ambição e cupidez outros homens servem de
instrumentos mais inteligentes do que animais e que, então, em vez de
emancipá-los, os conservam, por todo o tempo que for possível, subjugados e na ignorância. Mas,
esta ordem de coisas muda de si mesma, pelo poder irresistível do progresso. A
reação é não raro violenta e tanto mais terrível, enquanto o sentimento da
fraternidade, imprudentemente sufocado, não logra interpor o seu poder
moderador; a luta se empenha entre os que querem tomar e os que querem reter;
daí um conflito que se prolonga às vezes por séculos. Afinal, um equilíbrio
fictício se estabelece; há qualquer coisa de melhor. Sente-se, porém, que as
bases sociais não estão sólidas; a cada passo o solo treme, por isso que ainda
não reinam a liberdade e a igualdade, sob a égide da fraternidade, porque o
orgulho e o egoísmo continuam empenhados em fazer se malogrem os esforços dos
homens de bem. Todos vós que sonhais com essa idade de ouro para a
Humanidade trabalhai, antes de tudo, na construção da base do edifício, sem
pensardes em lhe colocar a cúpula; ponde nas primeiras fiadas a fraternidade na
sua mais pura acepção. Mas, para isso, não basta decretá-la e inscrevê-la numa
bandeira; faz-se mister que ela esteja no coração dos homens e não se muda o
coração dos homens por meio de ordenações. Do mesmo modo que para fazer que um
campo frutifique, é necessário se lhe arranquem os pedrouços e os tocos, aqui
também é preciso trabalhar sem descanso por extirpar o vírus do orgulho e do
egoísmo, pois que aí se encontra a causa de todo o mal, o obstáculo real ao
reinado do bem. Eliminai das leis, das instituições, das religiões, da educação
até os últimos vestígios dos tempos de barbárie e de privilégios, bem como
todas as causas que alimentam e desenvolvem esses eternos obstáculos ao
verdadeiro progresso, os quais, por assim dizer, bebemos com o leite e
aspiramos por todos os poros na atmosfera social. Somente então os homens
compreenderão os deveres e os benefícios da fraternidade e também se firmarão
por si mesmos, sem abalos, nem perigos, os princípios complementares, os da
igualdade e da liberdade. Será possível a destruição do orgulho e
do egoísmo? Responderemos alto e terminantemente: SIM. Do contrário, forçoso
seria determinar um ponto de parada ao progresso da Humanidade. Que o homem
cresce em inteligência, é fato incontestável; terá ele chegado ao ponto
culminante, além do qual não possa ir? Quem ousaria sustentar tão absurda tese?
Progride ele em moralidade? Para responder a esta questão, basta se comparem as
épocas de um mesmo país. Por que teria ele atingido o limite do progresso moral
e não o do progresso intelectual? Sua aspiração por uma melhor ordem de coisas
é indício da possibilidade de alcançá-la. Aos que são progressistas cabe
acelerar esse movimento por meio do estudo e da utilização dos meios mais
eficientes. (Do livro "Obras Póstumas", 38, Allan Kardec)
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