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Por Rabino Gabriel Aboutboul. O CASAMENTO ENTRE O CÉU E A TERRA. A festa de Shavuot comemora
o momento da entrega da Torá e o casamento entre o Céu e a Terra. Até a
Revelação Divina no Monte Sinai, D’us era inatingível. A entrega da Torá marca
o momento em que D’us se revela a todo o povo judeu, sendo esse o momento em
que fomos capazes de conhecê-Lo. Com a entrega da Torá, nossa missão deixa de
ser atingir o Céu, mas sim trazer o Céu para a Terra. Na linguagem do Midrash:
D’us desejou ter uma moradia neste mundo inferior. E cabe a nós transformar
este nosso mundo em uma morada para Ele, pois, afinal, o objetivo maior é
transformar a Terra em um paraíso. Até a entrega da Torá existia um decreto
Divino que separava de forma irreconciliável o mundo material do mundo
espiritual. O ser humano buscava D’us por vários caminhos. Alguns acreditavam
que o caminho para se chegar mais perto do Altíssimo era viver de uma forma
espiritual, desconectando-se das coisas materiais e levando uma vida de
abstinência. Porém, por mais elevada que a pessoa fosse, havia um abismo entre
D’us Infinito e o ser humano finito – e esse abismo não podia ser cruzado pelo
ser humano. D’us o cruzou com a Revelação Divina no Monte Sinai. E assim está
expresso nas palavras que definem a Revelação de D’us no Monte Sinai: “E D’us
desceu ao Monte Sinai”. E quando isso ocorreu, o “Céu beijou a Terra” e o
decreto que separava o mundo espiritual do material foi eliminado. Pela
primeira e única vez na História, D’us Se revelou publicamente – a todo o Povo
Judeu. Em Shavuot, comemoramos o recebimento pelo Povo Judeu de um
código de leis morais e espirituais ditadas por D’us. O encontro do Céu e a
Terra. D’us, em sua eterna bondade, revelou no Monte Sinai como nos
conectarmos a Ele. Isso é feito através das mitzvot (plural,
em hebraico, de mitzvá). As mitzvot promulgadas
pelo Eterno fundamentam a responsabilidade do ser humano perante outros seres
humanos e Seu Criador. São leis espirituais que, uma vez trazidas à Terra,
assumiram forma física e cotidiana. O Eterno nos deu dois tipos de mitzvot:
as positivas e as negativas. As mitzvot positivas são as que
ditam o que devemos fazer: faça caridade, respeite pai e mãe, cumpra o Shabat
etc. As mitzvot negativas ditam o que não devemos fazer: não
mate, não roube, não cometa idolatria, não coma em Yom Kipur. Ao
todo são 613 mitzvot: 248 positivas e 365 negativas. A divisão
das mitzvot entre positivas (faça) e negativas (não faça) nos
ensina que, ao mesmo tempo em que precisamos nos preocupar em fazer o positivo,
precisamos também nos proteger do negativo. No mundo em que vivemos, as forças
negativas são maiores do que as positivas, e é por isso que existem mais mitzvot negativas
do que positivas. A palavra mitzvá é usualmente traduzida como
mandamento, porém, em hebraico, ela advém da palavra tsavta que
significa conexão ou ligação. O poder da mitzvá é justamente o
de conectar o ser humano, limitado, com o Infinito; de conectar o mundo
material ao espiritual, dotando o ser humano da capacidade de elevar os
elementos materiais desse mundo permeando-os de espiritualidade. Quando
transgredimos alguma dessas mitzvot nosso ato causa uma
desconexão de D’us. Através das mitzvot, D’us nos mostra como
podemos nos conectar a Ele e como podemos perder essa conexão. De acordo com
a Cabalá, nossas ações neste mundo causam transformações nas
esferas mais elevadas. A ação é o principal. No Judaísmo, ao contrário
de outras crenças, a ênfase está em nossas ações e não em nossas intenções ou
pensamentos. Na linguagem dos nossos Sábios: ma’assê hu’aicar. A
ação é o principal. O que isso significa? Significa que ter uma boa intenção ou
meditar sobre o bem de nada adianta se não praticarmos, de fato, o bem. O mundo
em que vivemos é chamado de mundo da ação, onde o que tem maior valor são os
nossos atos, as nossas atitudes, o nosso comportamento e a maneira pela qual
vivemos. Havia um chassid muito caridoso, seguidor do Rebe
Shneur Zalman, o primeiro Rebe de Lubavitch. Ele cumpria com muito zelo a mitzvá de
receber hóspedes em sua casa, em especial pessoas com menos recursos materiais.
Certa vez, angustiado, ele abordou o Rebe. E o questionou se ele estaria agindo
com todo o seu coração. O Rebe sorriu e lhe respondeu: “Seus hóspedes estão
satisfeitos? Mesmo se você não agiu com a melhor de suas intenções, o objetivo
foi alcançado. Essas pessoas estão sendo alimentadas e recebem a ajuda que, de
fato, precisam para poderem crescer material e espiritualmente”. Podemos
questionar nossas intenções, porém elas não devem nos impedir de fazer o bem. É
comum ouvir que o importante é ser um bom judeu no coração. O que está dentro
de nós é de grande valor, mas palavras, sentimentos e filosofias não bastam. Somente
ações podem transformar o mundo em que vivemos. Realmente, uma ação completa é
a que vem acompanhada de sentimento e conscientização. É quando nosso coração e
mente andam juntos. De acordo com a Cabalá, nossa intenção é
comparada a asas e elevam nossas ações a esferas mais elevadas. Faremos e
Ouviremos. O povo de Israel, reunido aos pés do Monte Sinai, prometeu
seguir os mandamentos da Lei Divina e afirmou, em uníssono: “Naassê
Venishmá”(Êxodo 24:7): “Faremos e ouviremos”. Dissemos ao Todo Poderoso: faremos
e depois buscaremos entender o que ouvimos, o que nos foi ordenado. Isso
ressalta a importância de buscar entender o Judaísmo, estudar seus preceitos e
não os seguir somente como um ato de fé. Uma das explicações para esse
versículo é que muitas vezes o entendimento só vem depois de realizarmos uma
ação. Quando fazemos algo, quando temos a experiência e depois buscamos
entender o que fizemos, o entendimento é mais profundo. Por exemplo, é difícil
“compreender”, em toda a acepção do termo, sem ter passado pela emoção de ouvir
a reza da Neilá, quando se aproxima o término do Yom Kipur,
ou ver um filho fazer Bar-mitzvá. Não conseguimos colocar em
palavras a conexão que sentimos ao colocar Tefilin ou ao
acender as velas de Shabat. Certas experiências, só conseguimos verdadeiramente
“entender” depois de tê-las vivido. Por isso, o Judaísmo é, acima de tudo,
experienciar e vivenciar nossas tradições. A Torá e os anjos. O Talmud
diz que quando Moshe subiu ao Céu para receber a Torá de D’us, ele discutiu com
os anjos. Os anjos disseram que a Torá lhes pertencia e reclamaram, pois como
um ser humano, com todas as suas imperfeições, poderia tomar posse da maior
riqueza Divina? Ao que Moshe lhes respondeu: “Anjos têm má ou boa inclinação?
Trabalham e precisam descansar no Shabat? Foram escravos no Egito? Têm pai e
mãe para respeitar?” E assim por diante. Moshe ganhou a discussão e trouxe a
Torá para a Terra. O chassidismo nos mostra o lado místico dessa conversa entre
Moshe e os anjos. Os anjos reivindicavam a Torá para os Céus e Moshe mostrou
que a Torá só tem valor na Terra. A Torá foi entregue a este nosso mundo, a
seres humanos, com todos seus desafios, suas falhas e suas dificuldades. Em uma
entrevista particular com o Rebe de Lubavitch, uma pessoa perguntou: “Por que
D’us precisa dos seres humanos? Os anjos cumprem a sua missão de uma maneira
tão perfeita. E os seres humanos, desde que estão aqui neste mundo, só causam
problemas”. A que o Rebe respondeu: “Existem paisagens muito bonitas no mundo e
pessoas que fotografam e pintam essas paisagens. O que tem mais valor, uma foto
ou uma pintura?” “A pintura”, respondeu a pessoa e o Rebe voltou a fazer uma
pergunta: “E o que é mais perfeito, a foto ou a pintura?” O Rebe então explicou
que mesmo que a foto seja mais perfeita, replicando de maneira precisa a
paisagem, ela é, em grande parte, fruto de uma máquina. A pintura, por sua vez,
envolve todo o esforço e dedicação de um artista. O artista coloca sua alma e
seu coração naquilo que está retratando. Por isso, a pintura tem maior valor.
Da mesma forma, os anjos são mais perfeitos. Mas o ser humano, com todas as
suas imperfeições, se esforça e trabalha para se transformar e transformar este
nosso mundo. D’us ama nossas imperfeições e conhece nossos dilemas e desafios.
E tudo o que alcançamos tem grande valor para Ele. Os três pilares do mundo.
Existem três pilares sobre os quais o mundo se sustenta: 1. O estudo da
Torá. 2. Avodá – as rezas1. 3. Os atos de bondade.
Esses três pilares fazem um paralelo com os três tipos de relacionamentos
humanos: entre o homem e D’us, entre o homem e ele próprio e entre o homem e os
outros seres humanos. Vejamos exemplos desses três pilares. O Estudo da
Torá. A Torá foi dada para o nosso bem: proíbe tudo o que faz mal à nossa
alma e pede que pratiquemos atos que fortaleçam nossa essência e nossa
ligação com D’us. Ao estudarmos a Torá, vemos o mundo pela verdade Divina.
A verdade Divina e a percepção humana muitas vezes diferem. Por exemplo: existe
uma lei no Shulchan Aruch, nosso código de leis, que para muitos
pode soar estranha. Ilustramos essa lei através da seguinte situação. Uma
pessoa está em casa, decide abrir um vinho Casher antigo e
inesperadamente um amigo aparece para visitá-lo. O impulso é dizer ao amigo,
“Como você veio me visitar, vou abrir esse vinho em honra de sua visita”. Isto
é proibido. De acordo com a Torá, fingir que se está fazendo pelo outro aquilo
que íamos fazer de qualquer maneira é como enganar e roubar. Chama-se gonev
dat habriyot, roubar a consciência daquela pessoa. Sem as diretrizes da
Torá, poderíamos considerar isso uma gentileza, um agrado ao amigo. Por
milênios os judeus foram chamados de preguiçosos por descansar no Shabat. Como
poderiam descansar durante 1/7 de sua existência? Hoje em dia, o mundo
reconhece a importância de um dia de descanso. O correto e o não correto nem
sempre seguem a lógica humana ou o tempo que que vivemos.Com o recebimento da
Torá, foi-nos dado o privilégio de ver o mundo e a nós mesmos de uma forma
Divina. O estudo da Torá alimenta nossa mente e nossa alma e o conhecimento
adquirido modifica nossa percepção. Quando um programa de computador processa
sempre os mesmos dados, ele nos fornece sempre o mesmo resultado. Nossa mente
funciona da mesma forma. Quando recebemos sempre as mesmas informações, nossa
percepção do mundo permanece inalterada. Quando adquirimos conhecimento Divino,
crescemos e mudamos nossa forma de ver o mundo. Modê Ani. Um dos três
pilares do mundo é a reza. Ao acordarmos pela manhã, nosso primeiro ato é
recitar: Modê ani lefanêcha, Mêlech chai vecayam, shehechezarta bi
nishmati bechemlá rabá emunatêcha. Sou grato a ti, Rei vivo e eterno,
por teres restaurado minha alma dentro de mim com misericórdia. Tua lealdade é
grande. Começamos o dia agradecendo a D’us por ter devolvido a alma ao nosso
corpo. Como está escrito no Zohar, obra fundamental da Cabalá,
durante o sono a alma se separa do nosso corpo, “recarrega” suas energias nos
Céus e retorna ao acordarmos. Mas o que é essa prática tão sagrada de recitar
o Modê ani? Mal abrimos os olhos, já agradecemos a D’us. Com
o Modê ani aprendemos a praticar a gratidão, um sentimento
importantíssimo em todos os âmbitos de nossa vida. Em hebraico, idioma
sagrado, Modê significa agradecer, mas também significa
reconhecer. Uma pessoa agradecida é alguém que reconhece o que os outros fazem
por ela. Todos os nossos relacionamentos – casamentos, relacionamento entre
pais e filhos, entre amigos etc. – melhorariam significativamente se
começássemos nosso dia agradecendo e reconhecendo o que os outros fazem por
nós. É interessante também notar que a frase faria mais sentido se ela fosse
escrita de maneira diferente Ani modê - eu agradeço, mas ela é
escrita da forma Modê ani – agradeço, eu. Perguntam os nossos
Sábios, por que as palavras se encontram nessa ordem? A razão é para que não
comecemos o dia com a palavra “eu” e sim com o ato de agradecer. “Eu” é a
palavra que mais falamos durante o dia. Quando o “eu” vem antes, podemos nos
tornar pessoas egoístas, só pensando em nós mesmos. O agradecer é o principal,
sendo assim é importante que venha antes do “eu”. A cada novo dia que nos é
concedido, acordamos com a consciência de que existe motivo para continuarmos neste
mundo, ou seja, ainda temos uma missão a cumprir. Se recebemos mais um dia não
foi por acaso. A Cabalá nos explica que cada um de nós é
insubstituível, cada um de nós tem sua missão específica e essa missão não pode
ser cumprida por outra pessoa. Não vivemos e não permanecemos neste mundo à
toa. Cabe a cada um de nós fazer a sua parte para transformar este mundo num
lugar melhor, mais justo, honesto, mais Divino e espiritual. Cabe-nos,
portanto, ajudar a transformar este mundo numa moradia própria para D’us, o
Todo Poderoso. Atos de Bondade. O terceiro pilar que sustenta o mundo
são os atos de bondade, guemilut chassadim. O mandamento de guemilut
chassadim inclui qualquer ato de bondade que é feito a outrem. Inclui
emprestar dinheiro ou objetos, ser hospitaleiro, alegrar noivas e noivos,
visitar os doentes, enterrar os mortos, consolar os enlutados e promover a paz
entre as pessoas. O Midrash revela que a prática de atos de
bondade é a pedra fundamental, o pilar sobre o qual se ergue todo o universo.
Um de nossos grandes Sábios, Rav Israel Salanter, dizia: Não existe ato mais
espiritual do que uma pessoa de carne e osso dar um pedaço de pão a outra
pessoa de carne e osso. Muitos acreditam que um ato espiritual significa um ato
desconectado do material, distante do mundo em que vivemos, um ato que esteja
ligado a anjos e almas. Na verdade, são os atos físicos e materiais os que são
os mais espirituais e que fazem a verdadeira diferença neste mundo. Quando
falamos de atos de bondade, falamos também em tzedacá, o mandamento
de ajudar os carentes, muito erroneamente traduzido como caridade. Tzedacá é
justiça social, a própria etimologia da palavra em hebraico significa justiça;
e não há nada mais justo do que alguém contribuir para o bem-estar de
outros. Parte do mandamento de tzedacá é dar o dízimo, dar uma
percentagem de seu dinheiro. O dízimo tem um poder muito grande que advém da
quantidade de energia e vida que colocamos na luta por nosso sustento. Muitas
pessoas “dão o sangue” para conseguir dinheiro e sustento, frequentemente
colocando o dinheiro acima da própria saúde. É interessante que o Talmud use
uma expressão similar para dinheiro e para a sangue. Damim,
dinheiro, vem da palavra dam, sangue (sangue no plural, damim).
É interessante que a mitzvá de tzedacá esteja
ligada a uma porcentagem e não a um valor fixo. Ao dar uma porcentagem que está
diretamente ligada ao todo, estamos elevando o todo. Quando uma pessoa
faz tzedacá, dando uma porcentagem daquele dinheiro para uma
instituição ou para alguém necessitado, ela está elevando toda a energia que
foi colocada naquele trabalho, tornando-o sagrado. A lição de dar tzedacá é
que não viemos para esse mundo só para receber, viemos para dar de nós mesmos.
Viemos para fazer uma diferença na vida das pessoas, para doar de nosso tempo,
nossa energia e uma porcentagem dos frutos do nosso trabalho. Israel é banhado
pelo Mar Morto e o Mar da Galileia. O Mar da Galileia é o maior lago de água
doce do país. Vemos peixes, pássaros e crianças brincando n’água. É um lugar
cheio de vida. Em contrapartida, no Mar Morto não há plantas nem peixes. Sua
alta salinidade não permite a existência de vida. Curiosamente, ambos são
alimentados pelo mesmo rio, o Rio Jordão. Só que no Mar da Galileia a água
continuamente entra e sai, existe um constante dar e receber de água, enquanto
no Mar Morto, toda água que entra é engolida. Só tem entrada e não saída, por
isso é um lago morto. Da mesma forma há dois tipos de pessoas na vida. Aquelas
que dão e que recebem, essas são pessoas cheias de vida. São pessoas que
entendem que não vieram a este mundo só para receber, mas também para fazer sua
contribuição, para deixar sua marca e fazer uma diferença na vida das outras
pessoas. E há pessoas que só sabem receber, que têm dificuldade de abrir a mão
para a próximo e não ajudam ninguém. Pessoas que infelizmente optam por engolir
tudo o que recebem. Sobre elas está escrito: os perversos na vida são chamados
de mortos. A sua fonte da vida perdeu o seu significado e sua razão de ser. A
lição clara para nós é que não viemos ao mundo para receber. Como
apreendemos, ma’assê hu’aicar, a ação é o principal. D’us deu a
cada um de nós a capacidade, a força e o poder de transformar o mundo para o
bem. Em vez de nos afastarmos do mundo, devemos preenchê-lo com boas ações,
seguindo as diretrizes que nos foram dadas no Monte Sinai, e unir o Céu à
Terra, transformando o mundo em um verdadeiro Jardim de D’us. Rabino Gabriel
Aboutboul é rabino da Sinagoga de Ipanema no Rio de Janeiro e palestrante. 1 A Tefilá,
palavra hebraica que é comumente traduzida como “oração”, corresponde à Avodá,
o serviço Divino. www.morasha.com.br.
Abraço. Davi
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