sexta-feira, 1 de abril de 2022

O DESAFIO DA VIDA

 

Teosofia. Publicação da Sociedade Teosófica do Brasil. Por Radha Burnier (1923-2013). O DESAFIO DA VIDA. Um fato que temos que enfrentar é que, em cada nível, a vida apresenta-nos um desafio. Em um nível não humano, dos animais, pássaros, insetos e peixes, o desafio é de mera sobrevivência. O desafio é individual e coletivo. Para o indivíduo o problema é o de prolongar sua vida tanto quanto possível. Coletivamente é perpetuar a espécie a que o indivíduo pertence e competir com sucesso com outras formas de vida. Um vasto projeto está em andamento através das forças da natureza no processo evolucionário, no qual o desafio ao indivíduo tem sua parte. Há crescimento da perfeição em todos os níveis da vida. Esse projeto – esse drama – é realizado por eras incontáveis pelo que, na Índia, chama-se sarga e pralaya. Os vastos ciclos de existência, que são como o dia e noite de Brahma. Conforme o indivíduo enfrenta seu desafio e vive durante seu particular período e conforme as espécies operam seus destinos sobre a terra, a consciência penetra na matéria. Ela floresce pela experiência e revela-se de muitas maneiras diferentes. Manifesta-se cada vez mais nas formas evoluídas de vida e mostra novos poderes extraordinários: há um aumento da sensibilidade por meio do desenvolvimento do cérebro e do sistema nervoso. Todo esse processo é da consciência que se revela e obtém domínio sobre a matéria. No estágio de vida não humano, o sentido está no próprio processo. Existe luta para achar alimento e sobreviver, mas não há esforço desesperado para isso. Há sofrimento, mas não existe tristeza, desespero nem infelicidade interna por não descobrir o significado da vida. A própria vida realiza-se. Tem seu próprio significado e alegria, e nesse estágio, é suficiente existir. Nenhum animal, pássaro ou peixe busca diversão ou cria distração para si como faz o homem. Por ser desafiada a sobreviver, cada criatura no estágio não humano está, não apenas contente, mas cheia de vitalidade e alegria de viver, relaxada e em paz consigo mesmo. Vários poderes físicos são desenvolvidos no processo de sobrevivência física. Assim, há a maravilhosa rapidez do leopardo, a força do elefante e agilidade do macaco. E na consciência coletiva do animal são formadas qualidades não físicas como ingenuidade e inteligência. O indivíduo animal pode não ser muito inteligente. Mas existe a inteligência da própria espécie que diz o que é necessário para sua existência. Por isso, o passarinho sabe como construir seu ninho, e os pássaros migratórios acham seu caminho através das vastas regiões não mapeadas do céu. No nível humano, o desafio da vida é encontrado de muitas maneiras diferentes – pelo desenvolvimento dos poderes da mente. Não meramente na consciência coletiva, mas na do indivíduo. Usando esses poderes que incluem todos os processos do pensamento racional – a capacidade para fazer inferência, relatar fatos e tirar conclusões baseadas em fatos. O homem domina seu ambiente e torna possível a conquista de todas as outras espécies. Cada forma de vida está a sua mercê, e, conforme suas conveniências, para atender a seu conforto, o meio ambiente também é parcialmente modificado por ele. Quando descobre o poder da mente, o poderoso mundo animal torna-se inadequado, deixando o homem em posição de exterminador de toda criatura na terra. Muitas espécies de animais desapareceram porque o homem destruiu seu habitat. Ele muda o curso dos rios, nivela o terreno e cria montanhas, modificando seus arredores como lhe apraz. E o homem, após vencer todos seus inimigos e dominar a natureza, enfrenta um novo desafio. O desejo de variar. A mente humana ampliou o sentido da sobrevivência física e das necessidades básicas de alimento e abrigo. O homem não fica mais satisfeito em meramente alimentar seu corpo. Ele perdeu o instinto animal de saber quando e quanto deve comer. O alimento tornou-se um grande problema e uma fantástica indústria. O homem não se satisfaz mais com alguns bons alimentos. Anseia por uma infindável variedade. Estabelece restaurantes e hotéis que preparam e apresentam os vários pratos que inventa e precisam de acessórios e recipientes de diferentes tipos e tamanhos. As indústrias que os produzem criam enormes organizações para direcionar a propaganda e a publicidade. Criam intensa competição e os males que vêm com ela. Da mesma forma, enquanto são necessárias moradias para sobrevivência individual a coletiva, o homem não fica satisfeito em simplesmente ter abrigo para seu corpo. Imagina que precisa ocupar uma vasta área – talvez um palácio com cem quartos – e coleciona objetos para ornamentá-lo. Projeta vários tipos de móveis, e gasta somas imensas na decoração do interior. O vestuário também é necessário para o corpo, mas o homem criou uma enorme esfera de atividades para materiais e tecidos. Inventou a moda e planeja ornamentos. De simples necessidades do corpo emergiram, como protuberâncias cancerosas, as grandes organizações – indústrias, mercados, bancos e meios de comunicação. O homem vive isolado em sua própria contradição, perdido e frustrado entre os objetos e organizações que ele mesmo criou. O homem não está mais preocupado com a simples perpetuação da espécie: sexo e alimento tornaram-se “experiência prazerosas”. O prazer tornou-se uma ideia – um pensamento em sua mente. E porque é uma ideia, o homem criou várias formas de prazer, e, uma vez mais, grandes indústrias para alimentá-la, inclusive cinemas, danceterias e revistas. No processo de buscar prazer, planejar diversões e distrações não há alegria, porque a alegria somente existe na tranquilidade interior. Assim, quando a mente está ansiosa para descobrir o prazer, quando fica tensa busca, perde a alegria que uma vida simples pode proporcionar. O aumento das necessidades humanas é a principal fonte de conflito no mundo. Porque essas necessidades (que no início eram alimento, abrigo e sexo). Agora se tornaram ideias na mente e base de tensão e conflito. Em nível nacional, levou a grandes guerras mundiais, ao protesto de populações, à crueldade e ao sofrimento que temos testemunhado por décadas e séculos. Na vida pessoal, quem não sofreu a dor causada por discussões entre irmãos, por amigos que saem, por marido e mulher que se sentem isolados um do outro? Por isso o Budha aconselhou o homem a compreender que o nascimento é dor. Que a morte é dor. E que viver é dor. E, nas condições presentes, criadas pela mente do homem, parece não haver solução para esse sofrimento. Desejos trazem conflitos. É esta a situação que a humanidade criou para si. Eliminou quase todas as antigas fontes de perigo, mas criou outras novas e terríveis, que não pode controlar porque são impulsionadas pelo instinto animal de sobrevivência. O próprio instinto de sobrevivência transformou-se em um perigo. Assim, já que o que quer que façamos é fonte de perigo, podemos dizer que a mente do homem chegou ao fim do caminho e não pode ir mais longe. Com a evolução mental, e ante o desafio que lhe é apresentado nos dias de hoje, ela se tornou impotente e obsoleta como força bruta. Na situação atual, enfrentamos um novo estágio, no qual o intelecto parece estar desamparado em face dos enormes desafios. Nessa situação, algumas pessoas perguntam, que outros poderes a vida tem em si? Há apenas o poder da mente, ou a vida, neste vasto processo, revela outros poderes antes negligenciados? A mente do homem está tão encantada consigo mesma que acreditou em sua invencibilidade e raramente enfrentou seriamente essa questão. Naturalmente existiram alguns indivíduos excepcionais que a examinaram com profundidade a fim de descobrir se a mente racional é tudo que pode mostrar como culminâncias de eras da evolução. E, se a mente quer descobrir o que a vida vai revelar mais adiante, deve também examinar a questão do desafio anterior, se realmente foi o da sobrevivência. O homem adquiriu um “reflexo de sobrevivência” de seu passado e ainda não conseguiu livrar-se desta compulsão imaginária. Mas a vida pressiona-o a buscar novos poderes da consciência que ainda estão ocultos nele e que, em tempo, assumirão a liderança, assim como a mente triunfou sobre a mera força física. No Bhagavad Gita, Arjuna enfrenta um dilema doloroso – deve decidir lutar ou fugir. Parece uma situação impossível porque sente que o que escolher estará errado. De um lado, seus instrutores, seus parentes a quem ama e com quem agora deve lutar. Do outro lado, há a lealdade a seu irmão e é precioso fazer o que for certo. E fica desesperado ao debater-se com a necessidade de escolha. A realidade do sofrimento. Talvez hoje esta seja a situação de todos nós. Enfrentamos crises que nos forçam a perguntar qual é o verdadeiro propósito da vida – se este propósito é a mera sobrevivência ou se é algo radicalmente diferente. Todos nós somos como estudantes relutantes. Não desejamos investigar a vida muito de perto, examinamos suas questões cruciais apenas quando enfrentamos uma crise. Mas, individualmente, ignorou as lições da natureza e suas leis, e a humanidade como um todo chegou ao ponto crítico ante o qual sua mente sente-se desamparada. É necessária grande criatividade para descobrir o significado da vida. O homem deve adquirir uma percepção inteiramente da que possui no momento, e que não pode ter enquanto sua mente, consciente ou inconscientemente, preocupar-se com a mera sobrevivência. Certamente atingimos o ponto em que devemos fazer uma meia volta! É hora de entrarmos no Nivriti-Marga (caminho de volta) e abandonar o primitivo desejo de sobrevivência e, como diz Helena P. Blavatsky (1831-1891), aprender o novo alfabeto no colo da mãe natureza. Para aprender esse novo alfabeto deve-se pôr de lado o conhecimento primitivo com que começou. Ilusão e realidade. A literatura da filosofia do Vedanta fala de diferentes níveis de realidade percebidos pela consciência. Somente quando passamos totalmente uma dimensão da realidade, é possível que fiquemos cientes de outra ainda maior. No que se refere à mente do homem, ele se preocupa apenas com sua sobrevivência e, em seu sentido ampliado, vive numa ilusão. No conhecido ensinamento do Vedanta, para o olhar atento, a corda enrolada é apenas uma corda, mas uma cobra para outros. As reações variam conforme os níveis de percepção. Quem tem um temperamento tímido fica apavorado e sai correndo. Quem tem uma natureza agressiva, não tenta escapar, mas tenta corajosamente matar a cobra e destruí-la. Essa é uma experiência de violência e, a outra, de medo, no entanto. Ambas são formas de reação que surgem do mesmo erro básico de percepção. Para aqueles que veem claramente e sabem que o objeto não é uma cobra, mas simplesmente uma corda, as duas formas de ação são impossíveis. E, por isso, quando há uma nova percepção, ações aceitas previamente não tem mais sentido. Quando um homem reconhece que não precisa mais se preocupar com a falsa percepção de sobrevivência, ele descobre uma nova maneira de ação e um novo significado da vida. Este “retorno” deve ser radical. Há quem busque novos valores e, ao mesmo tempo, agarre-se às antigas maneiras de agir. Buscam gurus e tentam várias técnicas de meditação, na esperança de descobrirem, por tais meios, o segredo da vida. Entretanto, a verdade sobre a vida nunca poderá ser descoberta enquanto as formas de ação que aceitam surgirem na mente que dá sentido à sobrevivência. Se a pessoa sonha, tem a experiência dos eventos do sonho. Quando acorda numa realidade diferente e percebe os fatos da vida de vigília, o sonho termina. Até que o sonho finde, ela não pode ter experiencia do estado de vigília. É impossível vivenciar, ao mesmo tempo, os eventos do sonho e do estado de vigília,  assim como importar-se com as ilusões ligadas ao processo de sobrevivência e com um novo entendimento que a vida pode oferecer. Os ensinamentos do Yoga afirmam que a mente deve estar completamente silenciosa para descobrir um novo significado. Para a mente renunciar a suas preocupações favoritas, e não se importar com o “me” e o “meu”, é preciso dar um fim ao sonho em que todos vivem. Essa é a transformação que deve ocorrer nos dias atuais, quando o homem deve reconhecer uma força universal trabalhando pelo bem de muitos e não para o bem de um ou de alguns indivíduos. A mente do homem deu uma importância exagerada a sua vontade pessoal, o que ele busca impor a todos com quem entra em contato. Mas essa vontade pessoal deve-se render a vida maior antes que seu sentido possa ser entendido. É esse, então, o desafio que a vida oferece – que o homem possa conscientemente aprender, entender e receber sua mensagem, assim como a vida não humana inconscientemente aprendeu a recebê-la. Foi dito que no vasto projeto em que a natureza está operando, há um movimento da perfeição inconsciente para a imperfeição consciente. E que da imperfeição consciente temos que avançar para a perfeição consciente. A perfeição consciente pode surgir apenas quando aprendemos a trabalhar em harmonia com o projeto da própria vida. A vida exige que a mente do homem renuncie a seus próprios desejos, seus impulsos, instintos e reflexos, para que um poder muito maior possa desabrochar e revelar-se. Não conforme a vontade do homem, mas em obediência às leis divinas e à vontade da natureza. Annie Besant (1847-1933) disse: “A primeira coisa que devemos compreender é que a natureza do desejo não é nosso Eu. Mas um instrumento modelado pelo Eu para seu uso. E, logo, que é um instrumento muito valioso que simplesmente está sendo mal-usado”. Abraço. Davi.

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