Teosofia. Publicação da Sociedade Teosófica do Brasil. Por Radha Burnier (1923-2013). O DESAFIO DA VIDA. Um fato que
temos que enfrentar é que, em cada nível, a vida apresenta-nos um desafio. Em
um nível não humano, dos animais, pássaros, insetos e peixes, o desafio é de
mera sobrevivência. O desafio é individual e coletivo. Para o indivíduo o
problema é o de prolongar sua vida tanto quanto possível. Coletivamente é
perpetuar a espécie a que o indivíduo pertence e competir com sucesso com
outras formas de vida. Um vasto projeto está em andamento através das forças da
natureza no processo evolucionário, no qual o desafio ao indivíduo tem sua
parte. Há crescimento da perfeição em todos os níveis da vida. Esse projeto –
esse drama – é realizado por eras incontáveis pelo que, na Índia, chama-se
sarga e pralaya. Os vastos ciclos de existência, que são como o dia e noite de
Brahma. Conforme o indivíduo enfrenta seu desafio e vive durante seu particular
período e conforme as espécies operam seus destinos sobre a terra, a
consciência penetra na matéria. Ela floresce pela experiência e revela-se de
muitas maneiras diferentes. Manifesta-se cada vez mais nas formas evoluídas de
vida e mostra novos poderes extraordinários: há um aumento da sensibilidade por
meio do desenvolvimento do cérebro e do sistema nervoso. Todo esse processo é
da consciência que se revela e obtém domínio sobre a matéria. No estágio de
vida não humano, o sentido está no próprio processo. Existe luta para achar
alimento e sobreviver, mas não há esforço desesperado para isso. Há sofrimento,
mas não existe tristeza, desespero nem infelicidade interna por não descobrir o
significado da vida. A própria vida realiza-se. Tem seu próprio significado e
alegria, e nesse estágio, é suficiente existir. Nenhum animal, pássaro ou peixe
busca diversão ou cria distração para si como faz o homem. Por ser desafiada a
sobreviver, cada criatura no estágio não humano está, não apenas contente, mas
cheia de vitalidade e alegria de viver, relaxada e em paz consigo mesmo. Vários
poderes físicos são desenvolvidos no processo de sobrevivência física. Assim,
há a maravilhosa rapidez do leopardo, a força do elefante e agilidade do
macaco. E na consciência coletiva do animal são formadas qualidades não físicas
como ingenuidade e inteligência. O indivíduo animal pode não ser muito
inteligente. Mas existe a inteligência da própria espécie que diz o que é
necessário para sua existência. Por isso, o passarinho sabe como construir seu
ninho, e os pássaros migratórios acham seu caminho através das vastas regiões
não mapeadas do céu. No nível humano, o desafio da vida é encontrado de muitas
maneiras diferentes – pelo desenvolvimento dos poderes da mente. Não meramente
na consciência coletiva, mas na do indivíduo. Usando esses poderes que incluem
todos os processos do pensamento racional – a capacidade para fazer inferência,
relatar fatos e tirar conclusões baseadas em fatos. O homem domina seu ambiente
e torna possível a conquista de todas as outras espécies. Cada forma de vida
está a sua mercê, e, conforme suas conveniências, para atender a seu conforto,
o meio ambiente também é parcialmente modificado por ele. Quando descobre o
poder da mente, o poderoso mundo animal torna-se inadequado, deixando o homem
em posição de exterminador de toda criatura na terra. Muitas espécies de
animais desapareceram porque o homem destruiu seu habitat. Ele muda o curso dos
rios, nivela o terreno e cria montanhas, modificando seus arredores como lhe
apraz. E o homem, após vencer todos seus inimigos e dominar a natureza,
enfrenta um novo desafio. O desejo de variar. A mente humana ampliou o sentido
da sobrevivência física e das necessidades básicas de alimento e abrigo. O
homem não fica mais satisfeito em meramente alimentar seu corpo. Ele perdeu o
instinto animal de saber quando e quanto deve comer. O alimento tornou-se um
grande problema e uma fantástica indústria. O homem não se satisfaz mais com
alguns bons alimentos. Anseia por uma infindável variedade. Estabelece
restaurantes e hotéis que preparam e apresentam os vários pratos que inventa e
precisam de acessórios e recipientes de diferentes tipos e tamanhos. As
indústrias que os produzem criam enormes organizações para direcionar a
propaganda e a publicidade. Criam intensa competição e os males que vêm com
ela. Da mesma forma, enquanto são necessárias moradias para sobrevivência
individual a coletiva, o homem não fica satisfeito em simplesmente ter abrigo
para seu corpo. Imagina que precisa ocupar uma vasta área – talvez um palácio
com cem quartos – e coleciona objetos para ornamentá-lo. Projeta vários tipos
de móveis, e gasta somas imensas na decoração do interior. O vestuário também é
necessário para o corpo, mas o homem criou uma enorme esfera de atividades para
materiais e tecidos. Inventou a moda e planeja ornamentos. De simples
necessidades do corpo emergiram, como protuberâncias cancerosas, as grandes
organizações – indústrias, mercados, bancos e meios de comunicação. O homem
vive isolado em sua própria contradição, perdido e frustrado entre os objetos e
organizações que ele mesmo criou. O homem não está mais preocupado com a
simples perpetuação da espécie: sexo e alimento tornaram-se “experiência
prazerosas”. O prazer tornou-se uma ideia – um pensamento em sua mente. E
porque é uma ideia, o homem criou várias formas de prazer, e, uma vez mais,
grandes indústrias para alimentá-la, inclusive cinemas, danceterias e revistas.
No processo de buscar prazer, planejar diversões e distrações não há alegria,
porque a alegria somente existe na tranquilidade interior. Assim, quando a
mente está ansiosa para descobrir o prazer, quando fica tensa busca, perde a
alegria que uma vida simples pode proporcionar. O aumento das necessidades
humanas é a principal fonte de conflito no mundo. Porque essas necessidades
(que no início eram alimento, abrigo e sexo). Agora se tornaram ideias na mente
e base de tensão e conflito. Em nível nacional, levou a grandes guerras
mundiais, ao protesto de populações, à crueldade e ao sofrimento que temos
testemunhado por décadas e séculos. Na vida pessoal, quem não sofreu a dor
causada por discussões entre irmãos, por amigos que saem, por marido e mulher
que se sentem isolados um do outro? Por isso o Budha aconselhou o homem a
compreender que o nascimento é dor. Que a morte é dor. E que viver é dor. E,
nas condições presentes, criadas pela mente do homem, parece não haver solução
para esse sofrimento. Desejos trazem conflitos. É esta a situação que a
humanidade criou para si. Eliminou quase todas as antigas fontes de perigo, mas
criou outras novas e terríveis, que não pode controlar porque são impulsionadas
pelo instinto animal de sobrevivência. O próprio instinto de sobrevivência
transformou-se em um perigo. Assim, já que o que quer que façamos é fonte de
perigo, podemos dizer que a mente do homem chegou ao fim do caminho e não pode
ir mais longe. Com a evolução mental, e ante o desafio que lhe é apresentado
nos dias de hoje, ela se tornou impotente e obsoleta como força bruta. Na
situação atual, enfrentamos um novo estágio, no qual o intelecto parece estar
desamparado em face dos enormes desafios. Nessa situação, algumas pessoas
perguntam, que outros poderes a vida tem em si? Há apenas o poder da mente, ou
a vida, neste vasto processo, revela outros poderes antes negligenciados? A
mente do homem está tão encantada consigo mesma que acreditou em sua
invencibilidade e raramente enfrentou seriamente essa questão. Naturalmente
existiram alguns indivíduos excepcionais que a examinaram com profundidade a
fim de descobrir se a mente racional é tudo que pode mostrar como culminâncias
de eras da evolução. E, se a mente quer descobrir o que a vida vai revelar mais
adiante, deve também examinar a questão do desafio anterior, se realmente foi o
da sobrevivência. O homem adquiriu um “reflexo de sobrevivência” de seu passado
e ainda não conseguiu livrar-se desta compulsão imaginária. Mas a vida
pressiona-o a buscar novos poderes da consciência que ainda estão ocultos nele
e que, em tempo, assumirão a liderança, assim como a mente triunfou sobre a
mera força física. No Bhagavad Gita, Arjuna enfrenta um dilema doloroso – deve
decidir lutar ou fugir. Parece uma situação impossível porque sente que o que
escolher estará errado. De um lado, seus instrutores, seus parentes a quem ama
e com quem agora deve lutar. Do outro lado, há a lealdade a seu irmão e é
precioso fazer o que for certo. E fica desesperado ao debater-se com a
necessidade de escolha. A realidade do sofrimento. Talvez hoje esta seja a
situação de todos nós. Enfrentamos crises que nos forçam a perguntar qual é o
verdadeiro propósito da vida – se este propósito é a mera sobrevivência ou se é
algo radicalmente diferente. Todos nós somos como estudantes relutantes. Não
desejamos investigar a vida muito de perto, examinamos suas questões cruciais
apenas quando enfrentamos uma crise. Mas, individualmente, ignorou as lições da
natureza e suas leis, e a humanidade como um todo chegou ao ponto crítico ante
o qual sua mente sente-se desamparada. É necessária grande criatividade para
descobrir o significado da vida. O homem deve adquirir uma percepção
inteiramente da que possui no momento, e que não pode ter enquanto sua mente,
consciente ou inconscientemente, preocupar-se com a mera sobrevivência.
Certamente atingimos o ponto em que devemos fazer uma meia volta! É hora de
entrarmos no Nivriti-Marga (caminho de volta) e abandonar o primitivo desejo de
sobrevivência e, como diz Helena P. Blavatsky (1831-1891), aprender o novo
alfabeto no colo da mãe natureza. Para aprender esse novo alfabeto deve-se pôr
de lado o conhecimento primitivo com que começou. Ilusão e realidade. A
literatura da filosofia do Vedanta fala de diferentes níveis de realidade
percebidos pela consciência. Somente quando passamos totalmente uma dimensão da
realidade, é possível que fiquemos cientes de outra ainda maior. No que se
refere à mente do homem, ele se preocupa apenas com sua sobrevivência e, em seu
sentido ampliado, vive numa ilusão. No conhecido ensinamento do Vedanta, para o
olhar atento, a corda enrolada é apenas uma corda, mas uma cobra para outros.
As reações variam conforme os níveis de percepção. Quem tem um temperamento
tímido fica apavorado e sai correndo. Quem tem uma natureza agressiva, não
tenta escapar, mas tenta corajosamente matar a cobra e destruí-la. Essa é uma
experiência de violência e, a outra, de medo, no entanto. Ambas são formas de
reação que surgem do mesmo erro básico de percepção. Para aqueles que veem
claramente e sabem que o objeto não é uma cobra, mas simplesmente uma corda, as
duas formas de ação são impossíveis. E, por isso, quando há uma nova percepção,
ações aceitas previamente não tem mais sentido. Quando um homem reconhece que
não precisa mais se preocupar com a falsa percepção de sobrevivência, ele
descobre uma nova maneira de ação e um novo significado da vida. Este “retorno”
deve ser radical. Há quem busque novos valores e, ao mesmo tempo, agarre-se às
antigas maneiras de agir. Buscam gurus e tentam várias técnicas de meditação,
na esperança de descobrirem, por tais meios, o segredo da vida. Entretanto, a
verdade sobre a vida nunca poderá ser descoberta enquanto as formas de ação que
aceitam surgirem na mente que dá sentido à sobrevivência. Se a pessoa sonha,
tem a experiência dos eventos do sonho. Quando acorda numa realidade diferente
e percebe os fatos da vida de vigília, o sonho termina. Até que o sonho finde,
ela não pode ter experiencia do estado de vigília. É impossível vivenciar, ao
mesmo tempo, os eventos do sonho e do estado de vigília, assim como importar-se com as ilusões ligadas
ao processo de sobrevivência e com um novo entendimento que a vida pode
oferecer. Os ensinamentos do Yoga afirmam que a mente deve estar completamente
silenciosa para descobrir um novo significado. Para a mente renunciar a suas
preocupações favoritas, e não se importar com o “me” e o “meu”, é preciso dar
um fim ao sonho em que todos vivem. Essa é a transformação que deve ocorrer nos
dias atuais, quando o homem deve reconhecer uma força universal trabalhando
pelo bem de muitos e não para o bem de um ou de alguns indivíduos. A mente do
homem deu uma importância exagerada a sua vontade pessoal, o que ele busca
impor a todos com quem entra em contato. Mas essa vontade pessoal deve-se
render a vida maior antes que seu sentido possa ser entendido. É esse, então, o
desafio que a vida oferece – que o homem possa conscientemente aprender,
entender e receber sua mensagem, assim como a vida não humana inconscientemente
aprendeu a recebê-la. Foi dito que no vasto projeto em que a natureza está
operando, há um movimento da perfeição inconsciente para a imperfeição
consciente. E que da imperfeição consciente temos que avançar para a perfeição
consciente. A perfeição consciente pode surgir apenas quando aprendemos a
trabalhar em harmonia com o projeto da própria vida. A vida exige que a mente
do homem renuncie a seus próprios desejos, seus impulsos, instintos e reflexos,
para que um poder muito maior possa desabrochar e revelar-se. Não conforme a
vontade do homem, mas em obediência às leis divinas e à vontade da natureza.
Annie Besant (1847-1933) disse: “A primeira coisa que devemos compreender é que
a natureza do desejo não é nosso Eu. Mas um instrumento modelado pelo Eu para
seu uso. E, logo, que é um instrumento muito valioso que simplesmente está
sendo mal-usado”. Abraço. Davi.
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