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ESCRITURA E JUDAÍSMO. Se a Torá é a pedra angular do judaísmo, o Talmud é o
pilar central que se alça dos alicerces e sustenta todo o edifício espiritual e
intelectual. A TORÁ. Leopold Zunz (1794-1886), historiador da religião judaica
do século XIX, deu certa vez, uma caracterização muito feliz da Bíblia. Disse
que ela tinha servido de “pátria portátil para os judeus”. Ideia semelhante
tinha sido expressa nove séculos antes pelo rabino Saádia, (1720-1797) o Gaon
(Reitor) da Ieshivá (Academia) de Sura: ”Israel só é um povo graças à Torá”. Esse
fenômeno de uma Escritura que congrega em si a filosofia da crença religiosa, o
guia de conduta moral, e que, num passado não muito remoto, abrangia e
governava a totalidade da vida judaica, foi observado com admiração por
Heinrich Heine, o grande poeta alemão, apesar de livre-pensador convicto: “Os
judeus podem consolar-se de haver perdido Jerusalém, o Templo, a Arca da
Aliança, os vasos de ouro e os tesouros preciosos de Salomão. Tal perda é
insignificante em comparação com a Bíblia – o tesouro imperecível que salvaram.
Se não me engano, foi Maomé quem denominou os judeus de “O Povo do Livro” –
nome que conservaram até o dia de hoje e que é profundamente característico. Um
livro é a sua pátria, seu tesouro, seu governante, sua felicidade e sua
maldição. Vivem dentro dos limites pacíficos desse livro. Exercem ali seus
poderes inalienáveis. Ali não podem nem ser espezinhados nem desprezados”. Sem
a Bíblia é impossível imaginar que os judeus pudessem ter sobrevivido como povo
distinto ou como comunidade religiosa durante tantos séculos e através de
tantas vicissitudes. Uma interessante agadá relatada no Talmud, ilustra a
maneira pela qual o próprio povo concebia sua dedicação à Torá. Quando os
israelitas estavam reunidos ao pé do Monte Sinai, a fim de firmar a solene
Aliança com D’us, desceu de repente do céu, ficando miraculosamente suspenso
sobre suas cabeças, uma aparição do Livro e, ao lado dela, uma da Espada.
“Escolham!” ordenou a Bat Kol (a voz celestial). “Podem ter uma coisa ou outra,
mas não as duas - o Livro ou a Espada! Se escolherem o livro, devem renunciar à
Espada. Se escolherem a Espada, então o Livro perecerá”. O autor rabínico desse
episódio concluía então, exultante, que os israelitas tomaram uma decisão
memorável na história da humanidade: escolheram o Livro! “Em seguida, o Divino
- Abençoado seja!- disse a Israel: (Se respeitarem o que está escrito no Livro,
serão preservados da Espada, mas se não o respeitarem, a Espada os destruirá!)
O fato é que na história dos judeus, escrita com sangue e sofrimento em tão
grande proporção, tem sido precisamente a devoção ao Livro o que os levou
tantas vezes à destruição pela Espada, brandida não por eles, mas por seus
inimigos; mas o povo judeu sobreviveu a todos seus perseguidores. A palavra
hebraica para Bíblia é Tanach, composta pelas consoantes T-N-Ch, que
representam as 3 divisões das Escrituras: Torá (Pentateuco), Neviim (Profetas)
e Ketuvim (Escritos). De forma genérica, costuma-se designá-la por Torá, que em
hebraico significa “orientação”, correspondendo à sua relação com o povo: uma
orientação da vida. TALMUD E EXEGESE. Se a Torá é a pedra angular do judaísmo,
o Talmud é o pilar central que se alça dos alicerces e sustenta todo o edifício
espiritual e intelectual. Sob muitos aspectos, o Talmud é o mais importante
livro judaico, o principal suporte de criatividade e vida nacional. A palavra
Talmud deriva da raiz hebraica LMD. A raiz verbal LMD se aplica em hebraico
tanto a estudo (=lamed) quanto a ensino (= limed). De forma sintética, o Talmud
consiste na compilação das leis, tradições, comentários e interpretações
judaicas registrados pelos doutos na Babilônia e em Israel, abrangendo um
período de mais de 1000 anos (do século V AC ao V DC). Num mundo em constante
mutação, foi um instrumento de adaptação da religião judaica às circunstâncias
sempre cambiantes da vida do povo. Nenhuma outra obra expressa tantos aspectos
da essência do povo judeu e de seu caminho espiritual, nem teve influência
comparável sobre a teoria e prática da vida judaica, dando forma a seu conteúdo
espiritual e servindo de guia de conduta. O povo judeu sempre soube que sua
contínua sobrevivência e desenvolvimento dependem do estudo do Talmud, e os que
são hostis ao judaísmo também tiveram conhecimento desse fato. O livro foi
ultrajado, difamado e lançado às chamas inúmeras vezes na Idade Média e
igualmente submetido a indignidades similares no passado recente. Em certas
ocasiões o estudo talmúdico foi proibido por ser mais do que claro que uma
sociedade judaica que abandonasse esse estudo não tinha real possibilidade de
sobreviver. Enquanto a Bíblia se incorporou ao patrimônio da cultura universal
e se tornou um clássico da humanidade, o Talmud ficou como o clássico do povo
judeu. Israel, o povo do Livro, abraçou o Talmud, como o Livro do povo. Na
história cultural judaica a busca da verdade e da compreensão, em termos de
valores religiosos, raramente foi interrompida ao longo de três milênios. O
foco central dessa preocupação sempre foi “O Livro”. Em torno dele
desenvolvia-se uma atividade contínua de exame e reexame de seus textos
sagrados que os judeus veneravam como sendo a verdade divinamente revelada. Uma
área contígua de investigação e interpretação crítica, menos importante, mas
não desprezível, era a das Leis Orais da Tradição – a Mishná – depois que esse
código foi canonicamente fixado no século II, sob a chancela editorial do
patriarca da Judéia, Iehudá Ha-Nassi (135-217). Essas investigações do texto
resultaram num grande número de comentários escritos que se destinavam a
precisar melhor e mais profundamente o significado dos sagrados textos
hebraicos. O caráter relativamente não dogmático e aberto do pensamento
religioso judaico tornou possível esse trabalho de investigação erudita. Não
era raro que esses comentários provocassem discórdia e controvérsia por causa
da natureza presumivelmente “herética” das opiniões que continham, como o “Guia
dos Perplexos” de Maimônides (1138-1204) e as “Guerras do Senhor” de
Gersônides, que os detratores passaram a chamar de “A Guerra contra o Senhor”.
Apesar dessas exceções, a investigação da Torá admitia muitas diferenças de
opinião. A necessidade de esclarecer o texto bíblico e de conciliar aparentes
inconsistências e contradições por meio de um método de raciocínio que os
especialistas chamam de “exegese”, era a força motriz principal que estimulava
os devotos – a escrever e a estudar os comentários. Nos primeiros séculos que
se seguiram à destruição do templo no ano 70 DC, este aprofundamento, a busca
de esclarecimento e o desejo de uma síntese religiosa resultaram na criação da
monumental literatura da Guemará e do Midrash. Junto com a Mishná, da qual eram
comentários rebuscados, formaram a obra rabínica coletiva conhecida como
Talmud. As primeiras tentativas de uma abordagem científica ao exame textual da
Bíblia e do Talmud tiveram lugar nas academias de Sura, Pumbedita e Nehardea,
na Babilônia, no assim chamado período gaônico, nos vários séculos que
precederam a Idade Média. Depois, inúmeras escolas de exegese bíblica, seguindo
princípios diferentes, surgiram no Egito, em Tunis, Marrocos, na Espanha e na
Provença. Até na França e na Alemanha cristãs, onde os judeus estavam menos
avançados culturalmente, começou a despertar certo interesse nos setores, até
então desprezados, da filologia e da gramática, embora não chegasse a
resultados comparáveis aos dos sefaradim. Ashquenazim x Sefaradim: A história
judaica na Europa é uma história regional, dependendo de onde os judeus se
estabeleceram. Ao contrário do Oriente, onde o modelo era determinado por
decretos das academias babilônicas, cada comunidade tinha seu próprio caráter,
seus próprios rituais litúrgicos e costumes e, às vezes, sua própria variante
judaica da língua nativa. A principal divisão do judaísmo europeu era entre os
sefardim da Península Ibérica e os ashquenazim da Alemanha e norte da França. O
judaísmo ashquenazi desenvolveu-se no ambiente do cristianismo da Europa
ocidental, reagindo à queda do império romano. No começo da Idade Média,
enquanto os judeus da Itália, principalmente em Roma, viviam tranquilos,
sofreram os da França e da Espanha, para lá deportados em grande número pelos
romanos, atrozes perseguições. Como se recusavam a se converter ao
cristianismo, impôs-lhes, sob pena de expulsão, a conversão imediata. Alguns
submeteram-se à conversão aparente, aceitando o batismo mas conservando em seus
corações a fé no D´us de Israel. Outros preferiram emigrar para o sul da
França, longe de Paris e da influência de seus bispos, ou para a Alemanha, do
outro lado do Reno. Comunidade Judaica na França Medieval. Carlos Magno e os
judeus: Quando Carlos Magno (742-814) estendeu seu império sobre toda a Europa
central, reunindo sob seu poder a França, a Alemanha e a Itália, a condição dos
judeus nestes países começou a melhorar. Ele deteve a decadência urbana e o colapso
do governo central que resultara das invasões bárbaras. Por uma questão de
consciência política, ele e a dinastia carolíngia estimularam a imigração
judaica. Os mercadores judeus receberam tratamento preferencial devido a suas
conexões comerciais no Mediterrâneo e no Oriente. Alguns mercadores judeus, de
suas bases na França, empreenderam missões exploradoras através da Europa
oriental e das estepes da Rússia até o Oriente Médio, de onde continuaram para
a Índia e para a China. Homens de negócios judeus tratavam familiarmente com
reis e nobres da Europa ocidental durante os séculos X e XI; restrições
canônicas impostas aos judeus por sucessivos Conselhos da Igreja foram
desconsideradas por seus patrões reais tal era sua importância econômica. Assim,
judeus se estabeleceram em Troyes, Mainz, Worms, Speyer, Colônia e outras
cidades em desenvolvimento. O estudo da lei judaica era uma prioridade maior
nas comunidades asquenazitas. Desde o século X, cópias do Talmud podiam ser
encontradas fora das ieshivot da Babilônia, e isso facilitou a expansão e o
desenvolvimento da erudição rabínica onde quer que os judeus se estabelecessem.
As cidades renanas de Mainz e Worms, depois Troyes e Sens no norte da França,
tornaram-se conhecidos centros acadêmicos. Vida Cultural (geral x judaica): O
ambiente intelectual da Europa na Alta Idade Média estava longe de ser
estimulante. As dificuldades da vida econômica, os ideais militares dos
bárbaros e o analfabetismo da maioria da população impediam um florescimento
cultural semelhante ao do Oriente muçulmano. Além disto, a cultura estava
reservada ao clero e os judeus, evidentemente, não faziam parte dos que
poderiam ter acesso à mesma. Em meio à ignorância generalizada, o simples fato
de os judeus serem alfabetizados já lhes conferia uma enorme vantagem cultural.
À medida que as comunidades foram-se estruturando, as necessidades práticas
estimularam o surgimento de escolas e centros de estudos judaicos, onde se
estudava a Torá e o Talmud. O isolamento cultural em que viviam os judeus
impediu a integração que havia no califado. Nenhum deles se ocupou com
Geografia, Astronomia ou Gramática com o interesse que estes assuntos
despertavam entre os súditos do Califa; o estudo era restringido aos temas
judaicos. Surgiram notáveis eruditos nestas comunidades europeias, compensando
em profundidade o que lhes faltava em extensão. Rabeinu Guershom (960-1040) – (
A Luz da Diáspora) e Rashi (1040-1105): Dois rabinos desta época marcaram
profundamente a história do pensamento judaico: Guershom de Mainz e Shlomo ben Isaac
Rashi. Guershom ben Iehudá, que viveu no final do século X (965-1028), recebeu
o cognome de “Meor HaGolá”, A Luz da Diáspora, devido a seu saber, sua cultura.
É o primeiro erudito asquenazita conhecido e sua influência foi enorme. Nasceu
em Metz e foi educado na França. Foi chamado também de Guershom de Mainz,
porque estabeleceu e dirigiu a academia daquela cidade. A academia que fundou
em Mainz tornou-se um centro de estudos de excepcional importância. Como
comentador do Talmud, contribuiu para que as regras talmúdicas fossem
compreendidas e praticadas. Entre as mais famosas disposições legais (takanot)
a ele atribuídas estão: a que proibiu entre os judeus a poligamia, que eles de
há muito haviam abandonado na prática; a que exigia o consentimento da mulher
para o divórcio e a que garantia a inviolabilidade da correspondência privada.
O discípulo mais brilhante de Guershom foi um jovem da cidade francesa de
Troyes, chamado Shlomo ben Itzhak, mais conhecido pelo cognome Rashi.
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