Religião
Afro Brasileira. O Candomblé da Bahia – Rito Nagô. Tradução de Maria Isaura
Pereira de Queiroz (1918-2018). Capítulo III. A ESTRUTURA DO MUNDO IV.
Finalmente, é preciso pedir a permissão de Ossaim para a colheita, e pagá-lo.
Eis porque são deixadas junto à planta cortada algumas moedinhas ou um pedaço
de fumo de corda. Para cortar o ramo, o cipó, o galho enfolhado, é utilizada
uma faca especial, o obé. Ainda aqui encontramos certos enganos nas informações
publicadas. Barbosa Rodrigues designa a faca de Ossaim com o nome de abébé, em
lugar de obé. O abébé é um leque com o qual as divindades da água - Yemanjá ou
Oxun - gostam de se divertir, e nunca uma faca. O babalosaim não se limita a
colher as ervas, encarrega-se ainda de seu preparo. No entanto, enquanto
dispomos para Cuba ou Haiti de boas descrições de como são confeccionados os
"pacotes", no Brasil nada sabemos a respeito. A única informação que
possuímos é de que os cânticos dos axé também são entoados no interior dos
santuários, que as filhas de santo entoam o cântico da planta ei da divindade
correspondentes, à qual pertencem; por exemplo, as filhas de Ogun cantam o
cântico do axe de Ogun, as de Yemanjá o do axé de Yemanjá, etc.; e o coro de todas
as filhas de santo reunidas responde em uníssono: Axé biu axé meu axé mio.
Estas informações parecem indicar que o preparo das plantas dá lugar no Brasil,
como nas outras partes da América negra, a cerimônias especiais. Mas não
sabemos nem mesmo se esta preparação se faz ou não no pegi especial de Ossaim,
pois Ossaim é "santo do ar livre". A planta de candomblé que
apresentamos mostra bem para a Bahia este pegi separado dos outros, em pleno
campo. No Recife e em Porto Alegre-RS, Ossaim (ou Ossanhe) me foi sempre
indicado como uma das três principais divindades obrigatoriamente adoradas fora
da casa principal; as outras duas são Exú (ou Bara) e Oxossi (ou Ode). Um de
nossos informantes sublinhava que, para preparar os banhos e as lavagens, é
preciso que a erva esteja viva. Eis porque, ajuntava, a dos ervanários não pode
servir, ela perdeu a força (...) vendem-na "seca". É preciso também
esfregá-la, espremê-la, triturá-la com as mãos, e não com um pilão ou outro
instrumento; é preciso quebrá-la viva entre os dedos vivos. Naturalmente,
também, a preparação varia com a função que as plantas devem desempenhar. Já
dissemos que para o ritual da iniciação são necessárias 21 espécies de ervas, e
que, para cada espécie é precisa empregar 16 folhas. Este número de 16 pode ser
insuficiente para dar lugar ao êxtase; duplicam-no então, ou triplicam-no, mas
tratar-se sempre de um múltiplo de 16. Outras vezes, ao contrário, o êxtase é
por demais violento; utilizam-se então outras espécies de folhas, encarregadas
de atenuar a virtude das precedentes, de suavizar a selvageria do Orixá,
desencadeada no corpo de seu cavalo. Para a fabricação das pedras, dos ferros,
para a lavagem das contas, etc., só se empregam as folhas do santo que deve se
encarnar na pedra, no ferro, ou que devem fazer participar o colar à força da
mesma divindade. Por exemplo, se é uma pedra de Xangô que se quer
"fazer", ou se se lava o colar de contas vermelhas e brancas de um
filho de Xangô, só serão utilizadas as ervas ligadas a Xangô, isto é, o
puitoco, a manjerona, a nega nina etc., e nunca as que pertencem a Oxalá, como
a "neve branca", ou as que pertencem a Oxun, como o orêpêpê. Pode ser
também que, como em Cuba, o número de plantas varie com a divindade, 5 para
Oxun, 7 para Yemanjá, 8 para Obatalá, etc. Finalmente, se o babalosaim foi
chamado para cuidar de um doente com suas "ervas", empregará outras
espécies vegetais diferentes das que utiliza nos banhos de amasi ou na lavagem
da cabeça. Os folcloristas brasileiros se interessaram muito pela medicina
popular e publicaram diversos livros contendo listas de plantas medicinais; a
cidade da Bahia não foi esquecida. Mas (salvo Luís da Câmara Cascudo
(1898-1986) e Gonçalves Fernandes (1909-1986) para o catimbó, que escapa ao
objetivo de nosso trabalho, dadas suas origens ameríndias), todos partiram das
informações dadas pelos ervanários e outros comerciantes. É muito possível que
algumas dessas plantas medicinais sejam conhecidas dos babalosaim; é mesmo
verossímil que os sacerdotes de Ossaim forneçam ao mercado da Bahia plantas que
vão colher no mato e cuja virtude e modo de emprego conhecem (tisanas, pomadas,
cataplasmas, etc.). Mas mesmo no caso de se confundirem as plantas dos
ervanários e as dos Olosaim, as duas formas de medicina não se identificam; a primeira
é empírica, a segunda é religiosa. Que folhas são essas? Um babalosaim da Bahia
que se tomou de amizade por mim e que queria me transformar em aprendiz,
iniciara o aprendizado, mas a morte devia levá-lo pouco depois. Procurei, é
claro, completar a lista obtida, mas ao acaso, com dificuldade sempre e em
terreiros ou cidades diferentes. Voltaremos mais adiante a algumas destas
plantas; por enquanto, contentamo-nos em oferecer a lista por ordem alfabética:
Alecrim, em suas três formas: alecrim de caboclo (Baccharis sylvestris, Linné),
alecrim do campo (Lantana Microphilla, Martius), e alecrim do taboleiro (
Polygala paniculata, L.), usado nos banhos de iniciação. Nos banhos de amasi
dos filhos de Oxalá, usado sem distinção de espécie. Alevante - ver Bradamundo.
Alfavaquinha, ?, serve para os banhos de amasi dos filhos de Oxun. Segundo
outros informantes, serve também para lavar as pedras de Oxossi. Algodão -
planta consagrada a Oxalá, tanto na Bahia quanto no Recife-PE. Do mesmo modo em
Cuba. Serve para os banhos lustrais dos filhos desse santo. Aroeira - Schinus
Aroeira, Vellozo. Planta consagrada a Ogun. Utilizada também contra o
reumatismo, o artritismo, a sífilis. Ariorô, ?, em Porto Alegre-RS, planta
consagrada a Exú, terreiros oyo. Bradamundo, Amonum cardamon, Linné. O mesmo
que Alevante. Planta consagrada a Xangô e a sua mulher Yansan, na Bahia.
Consagrada a Exú em Porto Alegre-RS. Indicações terapêuticas: estranguria.
Utilizada para aromatizar os banhos de amasi. Bambus, consagrados aos Eguns na Bahia.
As casas dos mortos são algumas vezes feitas de bambus. Bananeira, Musa
paradísica ?, suas folhas são utilizadas na fabricação dos Exú em Porto
Alegre-RS. Em Cuba, a bananeira plátano é uma árvore de Xangô. Betis Cheiroso,
Piper Eucaliptifolium, Rudge. Pertence a Xangô e a sua mulher Yansan.
Indicações terapêuticas: sudorífero, estimulante, febrífugo. Bredo de Santo.
Antônio ou Pega Pinto, Boerhavia hirsuta, Wedd. Pertence a Oxossi. Indicações
terapêuticas: anasarca, febres intermitentes. Caicara, Croton, Euphorbiacea.
Planta consagrada a Oxossi. Indicações terapêuticas: dermatoses. Cafarana, ?,
planta consagrada a Ogun, no Recife-PE. Canela de Velho, Miconia Albicans,
Trin. Planta consagrada a Omolú. Indicações terapêuticas: perturbações
digestivas. Carrapateira (óleo de), Carica papaya. Em Recife-PE principalmente,
fabrica-se este óleo com as sementes do mamoeiro para "fixar" Exú ou
para regar o seu fetiche. Do ponto de vista terapêutico, serve para a cura das
adenites. Com estas sementes, são fabricados na Bahia uma espécie de rosários
que fazem secar o leite das mulheres ou desaparecer os papos. Casadinha, Susp.
Mikania, composta. Planta consagrada a Omolú e também chamada vulgarmente
Omolú. Indicações terapêuticas: perturbações estomacais. Caruru, feito com
quiabos, hibiscus esculentus. Nome africano: Fetri. Embora o caruru seja o
prato preferido de Xangô, em Porto Alegre-PE é relacionado com Exú.
Propriedades terapêuticas: emoliente, laxante. Cipreste, Cupressis pyramidalis.
Consagrado a Nanan, que devido à sua avançada idade, tem relações com a morte.
Consagrado aos mortos em Cuba. Propriedades terapêuticas: antiblenorrágico.
Dormideira, esta flor vermelha é consagrada a Yansan, no Recife. Espada de
Ogun, Sansevieria ceylanica, Willd. Função religiosa: banhos de amasi dos
filhos de Ogun. Parece ser utilizada também nos banhos de iniciação. Função
terapêutica: diurética. Erva Santa, Peltodon Ricano? Consagrada a Yansan, no
Recife. Folha da Costa, também chamada às vezes saio. Pryophillum Piematum. Nome
africano: odudú. Banhos de amasi dos filhos de Oxun. Segundo outros, também
para os filhos de Oxossi. Utilizada para a lavagem da cabeça no ritual de
"dar de comer à cabeça". Folha de Fogo, chamada algumas vezes também
folha de Yansan. Susp. Tournefortia, Borraginea. Banhos de amasi dos filhos de
Yansan. Consagrada também a Xangô. Indicações terapêuticas: febrífugo. Flor da
Fortuna, ?, erva de Exú em Porto Alegre-RS. Gameleira, Ficus doliaria, Mart. É
a árvore adorada sob o nome de Irôko. No Recife-PE, é relacionada com Nanan.
Todavia, as folhas da figueira comum são utilizadas na preparação dos Exú em
Porto Alegre-RS. Acredita-se que estas folhas produzam verrugas ou pústulas.
Guiné, Petiveria Tetranda, Gomes. Utilizada no ritual de iniciação, para lavar
as futuras yauô. As raízes servem para fazer amuletos ou exorcismos. Malmequer,
Weddelia paludosa. Consagrada a Oxun no Recife-PE. Indicações terapêuticas:
cicatrizante, antisséptica, contra hemorragias. Manacá, Brunfelsia Hopeana,
Hooker, Solanaceas. Consagrada a Nanan em Recife-PE. Depurativo, antiluético,
contra os reumatismos. Manjericão, Ocium basilicum, L. Labiée. Utilizado nos
banhos de purificação dos filhos de Oxalá. Indicações terapêuticas: febrífugo,
estimulante, contra as cefaleias. Manjerona, Origanum majorona. Consagrada a
Xangô para os banhos de amasi de seus filhos. Indicações terapêuticas:
cicatrizante, estimulante, muito usada na cura de feridas. Nega Mina, ?, para
os banhos de amasi dos filhos de Xangô. Neve Branca, ?, para os banhos de amasi
dos filhos de Oxalá. Orepepe para os banhos de amasi dos filhos de Oxun.
Urtiga, Urtica urens. Consagrada a Omolú. Indicações terapêuticas: diurético,
afecções renais, dermatoses. Palmas d'Oxalá. É evidente que a palmeira, devido
à sua beleza e utilidade, não podia ser consagrada senão ao maior dos deuses.
Suas palmas são empregadas nos banhos de amasi dos filhos de Oxalá. Puitoco, ?,
utilizado nos banhos lustrais dos filhos de Xangô. Tapete de Oxalá, Peltodon
sp. Labiaceas. Planta consagrada ao culto de Oxalá, como seu nome indica.
Indicações terapêuticas: cefaleias, má digestão. Uepepe ? entra na composição
dos banhos de folhas nos rituais de iniciação. Velame, Croton, talvez
campestris, Euphorbiacea. Pertence a Omolú. Um cântico recolhido por Edison Carneiro
nos terreiros bantos faz alusão a esta planta: Era um velho muito velho, morava
numa casa de palha. Na aldeia dele ,ele tinha velame e sanga e sanga e velame
no mélungu,. E o A. acrescenta: "Informam-me os negros que sanga, velame e
mélungu, são, respectivamente, as duas primeiras, plantas medicinais, a última,
o velame misturado com mel", Indicações terapêuticas: depurativo. Olhos de
Santa. Lúcia: Croton Antiriphiliticum. Planta que dá florzinha azuis
consagradas a Yemanjá. Indicações terapêuticas: oftalmia. 3 - A SOCIEDADE DOS
EGUN. Durante muito tempo acreditou-se que o culto dos antepassados tinha
desaparecido no Brasil, uma vez que a escravatura destruíra as estruturas
familiares tradicionais. Nina Rodrigues declara que somente os negros que tinham
vivido na África e tinham sido trazidos como escravos guardavam a lembrança de
que as almas "formavam uma maçonaria em que as mulheres não podiam tomar
parte e em que a alma aparecia e passeava pela cidade muito à sua
vontade", - declaração feita no primeiro livro que apareceu sobre os
candomblés. Mas somente muito mais tarde foi reconhecida a sua sobrevivência na
Bahia: "Em alguns destes candomblés funerários encontra-se ainda o
Egungun, grotesca aparição da alma do finado. Não passa de uma farsa combinada
entre os chefes e diretores de candomblé e pessoa de confiança que, vestida de
longas roupas brancas, vem responder a invocações que em momento oportuno lhe
são feitas. Nada mais curioso do que a ingênua credulidade dos circunstantes.
Alguns me garantiram ter visto o morto comparecer à festa, em geral à noite,
mas por vezes em pleno dia, comer, dançar e retirar-se como veio. É do mesmo
gênero a aparição de Orô, que, entre nós, só existe nos terreiros mais
afastados". A descrição de Manuel Querino (1851-1923) é ainda menos
definida: "Na véspera da missa de ano, à noite, o africano medium que não
exercia outra função na seita, (...) colocava no chão uma bacia com água e a
folha correspondente ao santo do morto, pronunciava algumas palavras cabalísticas
que eram repetidas pelas pessoas presentes. Com um pequeno cipó batia três
vezes no chão, o que equivale a invocar o espírito do morto. Acudindo ao
chamamento, o medium perguntava se o espírito fora chamado por Deus ou enviado
por alguém. Depois da resposta, o espírito fazia revelações, dava consultas e
conselhos, ditava ordens para serem cumpridas". Mas ninguém procurou levar
mais longe estas observações. No entanto, mesmo um estudo breve do mundo do
candomblé deveria ter chamado a atenção para a importância dos Egun. Pois não
existia nos terreiros mais antigos, ao lado da "casa dos Orixá", uma
"casa dos mortos"? E o padê de Exú não era, ao mesmo tempo, um padê
dos mortos? Quer dizer que toda cerimônia começa obrigatoriamente por uma saudação
a Exú, que exige as primeiras homenagens, e logo em seguida por outra aos
antepassados: Egun Aiyê Ishibo órun Yojuba re Mortos Mundo Forte ? céu eu me
inclino (diante) de vós que é, mais ou menos, a fórmula empregada na África
pelo próprio Egun, quando aparece, envergando sua tanga, a saudar um dos
Grandes, um personagem importante, encostando no chão o seu espanta-mosca:A
consulta ao babalaô não constitui senão uma das obrigações do casamento; mas,
no momento do nascimento, é necessário consultá-lo para conhecer o odu do recém-nascido.
No casamento, porém, não basta saber se Ifa está de acordo, é preciso também
verificar se os próprios antepassados aceitam aquelas núpcias. Segundo me
disseram, em certas seitas chega-se a levar oferendas ao túmulo familiar.
Nalguns terreiros, nos dias em que são sacrificados animais de quatro patas,
cantam-se no início da festa cânticos dirigidos aos fundadores do candomblé, e
assim o culto dos antepassados passa da família para a seita; mas trata-se
sempre da homenagem que se rende aos mortos. O Padre Brazil sustenta igualmente
que quando alguém está doente, deve fazer um sacrifício aos mortos e nós mesmos
já vimos, no primeiro capítulo, que a iniciação compreende um sacrifício aos
Egun. Todos estes fatos e outros mais deveriam ter levado os etnógrafos a se
interessar mais particularmente pelos Egun. Se não o fizeram, é porque a
pesquisa se apresenta como particularmente difícil. Efetivamente, quanto mais
avançamos em nosso estudo da hierarquia sacerdotal, mais nos chocamos contra a
lei do segredo. O culto dos Egun pertence, na Bahia, à Sociedade do Egun, e
esta sociedade, aqui como na África, é uma "sociedade secreta". De
duas uma: ou interroga-se exteriormente alguns dos membros, que não dão senão
poucas informações e logo se refugiam no silêncio, ou então penetra-se na
sociedade, mas fica-se prisioneiro da lei do segredo. A morte é a condenação de
todos os que violam os mistérios dos Egun. De modo que até o momento não
possuímos senão informações fragmentárias; uma descrição de cerimônia pública
no Rio de Janeiro antigo, as informações nem sempre exatas fornecidas ao
Protasius Frikel (1912-1978), e duas descrições de axêxê com aparição de
Egun. Início da página 170. Livro O
Candomblé da Bahia – Rito Nagô. Abraço. Davi.
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