Religião
Afrodescendente. Candomblé. Livro o Candomblé da Bahia – Rito Nagô. Tradução de
Maria Isaura Pereira de Queiroz (1918-2018). Universidade de São Paulo – USP.
INTRODUÇÃO. Considerando o instrumento indispensável para a economia de uma
grande propriedade agrícola, o negro africano, enquanto escravo, só interessou
ao brasileiro branco como mão-de-obra. Todavia, no fim do século XIX,
extinguia-se o trabalho servil. Urgia, pois, integrar o negro na comunidade
nacional e, para tal, era preciso primeiro conhecê-lo. Os primeiros estudos
sobre as sobrevivências religiosas africanas, datados de 1896, saíram sob a
forma de artigos na Revista Brasileira; eram da pena de um jovem médico baiano,
Nina Rodrigues (1862-1906). A partir dessa época e até sua morte, dedicou-se
inteiramente, o grande pesquisador à descrição e análise de tais
sobrevivências, publicando também em francês L' Animisme Fétichiste des Negres
Bahians (1900). Depois de sua morte, Homero Pires recolheu os diversos artigos
dispersos em numerosas publicações, formando um volume sob o título de Os
Africanos no Brasil. Ambos os livros se ressentem, sem dúvida, da época em que
foram escritos e preconceitos raciais deformam as melhores páginas. Nina
Rodrigues acreditava na inferioridade do negro e em sua incapacidade de se
integrar na sociedade ocidental. Como, médico legista e psiquiatra, não viu
mais que simples manifestações de histeria nos transes místicos e nas crises de
possessão que caracterizam o culto público dos africanos brasileiros. Por outro
lado, sua própria interpretação etnográfica da religião é construída segundo os
quadros de referência da ciência de seu tempo: no fim do século XIX, o
positivismo se implantara no Brasil, onde, como se sabe, desempenharia um papel
político de primeira plana; daí o título do primeiro de seus livros - "o
animismo fetichista". Apesar de todas estas falhas, as obras de Nina
Rodrigues, ainda vigora, não deixam de ser talvez as melhores publicadas sobre
o assunto, primeiro porque seus informantes pertenciam ao candomblé mais
tradicional, mais puramente africano de sua época, o candomblé do Gantois. Depois, porque suas descrições do culto, das
hierarquias sacerdotais, das representações coletivas do grupo negro, são fiéis
e sempre válidas. São sem dúvida livros incompletos, mas naquilo que descrevem,
livros seguros. Um pouco mais tarde, de 1916 a 1922, Manuel Querino, homem de
cor, escreveu também certo número de estudos sobre o negro da Bahia. Seu ponto
de vista era inteiramente oposto ao de Nina Rodrigues, cujos trabalhos, além do
mais, não parece ter conhecido. Queria antes de tudo mostrar a importância da
contribuição africana à civilização do Brasil e exaltar o valor desta
contribuição. Acusam-no às vezes de completa falta de cultura etnológica. Mas a
tez lhe permitia conhecer o que os negros escondiam de Nina Rodrigues; seu amor
pelos irmãos de cor fornecia-lhe, por outro lado, possibilidade de compreender
melhor certos aspectos de um culto em que os brancos procuravam antes de mais
nada o que havia de pitoresco. Buscando sensações exóticas; eis porque sua
contribuição, parece-me, não deve ser negligenciada. Em todo o caso, é superior
à do Padre Etienne Inácio Brazil, no trabalho "Le Fétichisme des Negres du
Brésil", publicado primeiramente em francês, na revista Anthropos, em
1908, e em português um ano depois. O Padre Brazil nada acrescenta de novo às
publicações de Nina Rodrigues, que segue muito de perto, à parte alguns erros
de grafia. Não parece ter tido contatos muito íntimos com os fiéis dos
candomblés, pois de outra forma não teria transformado a religião deles numa
espécie de idolatria. Para fazer trabalho etnográfico, não basta descrever os
ritos ou citar os nomes das divindades; é preciso também compreender o
significado dos mitos ou dos ritos. Qualquer erro de psicologia pode corromper
gravemente o valor dos fatos descritos, e foi o que aconteceu ao Padre Brazil. Daí
a importância da obra de Arthur Ramos. Este último considerou-se continuador de
Nina Rodrigues e, a partir de 1932, começou a publicar uma série de artigos e
de livros sobre as sobrevivências africanas no Brasil. Se nos detivermos apenas
no material recolhido, não trazem eles talvez muitos elementos novos sobre os
candomblés da Bahia, em comparação com os que já tinham sido divulgados. Seu
mérito está antes de mais nada no método. Arthur Ramos desprendeu-se de todo e
qualquer preconceito; quer de raça, quer de religião. Ensinou aos africanistas
brasileiros o valor da objetividade científica. Também trouxe sem dúvida uma
interpretação, efetuada através de teorias psicanalíticas. Mas teve o grande
cuidado de separar radicalmente a descrição dos fatos da interpretação que
deles dá em seguida, à parte. Conseguiu também despertar em muitos jovens o
interesse por tais pesquisas e, pelo menos durante o período que vai de 1933 a
1940, pôs em moda o estudo das sobrevivências africanas na civilização
brasileira. Mostrou a necessidade de não separa nem das descobertas feitas
pelos etnógrafos, tanto na África quanto noutras partes da América, em das
teorias gerais da antropologia cultural norte-americana. Seus discípulos, à
frente dos quais colocamos Édson Carneiro, foram levados a continuar o
trabalho, efetuando novas pesquisas de campo, e trouxeram mais dados que
completam a imagem da vida nos candomblés. Entretanto, Melville J. Herskovits
(1895-1963), executando o plano de sua pesquisa geral sobre os africanos do Novo
Mundo, chegava ao Brasil em 1942, fixando-se na Bahia. Embora não tenha
publicado ainda senão parte do material então recolhido. Tal viagem foi de
importância capital para o problema que nos ocupa. Com efeito, recolocava ele a
vida religiosa no conjunto da vida social ou da vida cotidiana do negro
brasileiro. E a interpretava a um tempo através de sua teoria da aculturação, e
de uma concepção funcionalista da cultura. A renovação da concepção africanista
que trazia, fixou-se na obra de Octávio da Costa Eduardo, que estudou os negros
do Maranhão, e na do Doutor René Ribeiro, cujo trabalho é sobre os Xangô do
Recife. Não negamos o interesse de todos estes estudos. Nossa tese principal
foi consagrada ao problema das transformações, das interpretações e das metamorfoses
resultantes do contato entre civilizações. Embora tenham os traços das
"culturas" africanas sofrido modificações, não deixa em verdade o
candomblé de constituir um sistema harmonioso e coerente de representações
coletivas e de gestos rituais. Pode a religião africana subsistir porque
responde a certas funções ou a certas necessidades. Isso não impede que o
candomblé tenha sua estrutura e que esta estrutura mereça estudo paciente e
especial. Assim pois, neste trabalho, não nos preocupa a busca da origem
africana deste ou daquele traço, nem o possível sincretismo deles com os da
civilização luso-brasileira. Indicamos ao leitor, quanto a esse ponto, nossa
tese principal. Estudaremos o candombe como realidade autônoma, sem referência
à história ou ao transplante da cultura de uma para outra parte do mundo. Não
nos preocuparemos também com o enquadramento das descrições em sistemas de
conceitos tomados à etnografia tradicional ou à antropologia cultural. Não
porque os desdenhemos, mas porque nos parece mais útil abrir horizontes do que
caminhar por sendas já percorridas. Foi em 1944 que pela primeira vez tomamos
contato com os candomblés, e na reportagem então produzida, dizíamos: "A
filosofia do candomblé não é uma filosofia bárbara, e sim um pensamento sutil
que ainda não foi decifrado" (Imagens do Nordeste místico, pág. 134). Foi
ao estudo deste "pensamento sutil" que nos dedicamos neste trabalho.
É sempre difícil abandonar preconceitos e etnocentrismos. O próprio negro
brasileiro ao estudar religião africana de seu país, aceita o ponto de vista do
branco sobre a superioridade da civilização ocidental. Tende-se
inconscientemente a admitir que o candomblé não pode fundamentar ou postular
uma filosofia do universo, e uma concepção do homem, diferentes sem dúvida das
nossas, mas tão ricas e complexas quanto estas. A pretexto que os fiéis de tais
religiões pertencem em geral as camadas mais baixas da população – empregadas,
lavadeiras, proletários. Os
funcionalistas - um Rene Ribeiro no Brasil, um Louis Prince Mars (1906-2000) no
Haiti, - já prestaram grande serviço contra os que difamam os cultos ditos
"populares". Demonstrando sua utilidade para a saúde mental e para a
adaptação dos homens na sociedade a que pertencem. Mas é preciso mostrar ainda
que tais cultos não são um tecido de superstições que, pelo contrário,
subentendem uma cosmologia, uma psicologia e uma teodiceia. Enfim, que o
pensamento africano é um pensamento culto. Quando, em 1944, fomos pela primeira
vez à Bahia, nada sabíamos dos trabalhos de Marcel Griaule (1898-1956). Foi
somente após a guerra que deles tomamos conhecimento. Constituíram para nós um
encorajamento precioso, pois confirmavam nossa convicção primeira.
Infelizmente, não pudemos avançar tanto quanto ele no estudo do pensamento
africano. O mundo dos candomblés é um mundo secreto, no qual só se entra pouco
a pouco, e a tentativa que agora oferecemos aos futuros pesquisadores é antes
um esboço do que uma síntese definitiva. Reconhecemos de bom grado. Mas
tornava-se necessário reagir imediatamente contra um preconceito pejorativo que
ameaçava desnaturar a descrição dos fatos etnográficos. Que impedia, na
realidade, a compreensão do verdadeiro significado das cerimônias e dos gestos,
apresentando-os antes como uma espécie de caricatura e de degradação.
Encontramos nesta tentativa dois obstáculos principais. O primeiro provém dos
informantes. A lei do segredo existe. Mas os chefes do culto, que muitas vezes
tiveram de sofrer perseguições policiais, hesitam sobre os limites do segredo.
Compreendemos muito bem que recusem desvendar certas sequências do ritual de
iniciação, que recusem a penetração em sociedades secretas como a dos Eguns.
Compreendemos menos que ocultem o mundo dos mitos. Muitos fogem a divulgá-los
porque têm sido de tal modo enganados que temem ver se voltar contra eles
mesmos uma palavra por demais confiante que deixaram escapar. Há, todavia um
meio de ultrapassar este primeiro obstáculo. A religião do candomblé, embora
africana, não é religião só de negros. Penetram no culto não somente mulatos,
mas também brancos e até estrangeiros. É preciso dissociar completamente
religião e cor da pele. É possível ser africano, sem ser negro. A penetração no
mundo dos candomblés se opera por meio de uma série de iniciações progressivas,
de cerimônias especializadas, abertas àqueles que são chamados pelos deuses,
qualquer que seja sua origem étnica, e é à medida que se vai penetrando no
interior do santuário que os mistérios vão sendo apreendidos. São
principalmente os sacerdotes que têm a noção do valor do tempo. É o tempo que
amadurece o conhecimento das coisas. O ocidental tudo quer saber desde o
primeiro instante, eis porque, no fundo, nada compreende. Como dizia um dos
meus informantes: "Toda a semana, todo o mês, ensinarei ao senhor algo de
novo, pouco a pouco (..) " Assim devagarinho, a poder de paciência, de
amizade recíproca, a filosofia africana vai se desvendando, por etapas. Se
ainda não se tornou conhecida, ou se é insuficientemente conhecida, foi porque
toda a atenção se tem voltado quase unicamente para o culto público. Foi porque
o preconceito inconsciente da inferioridade mental do negro desviou os
pesquisadores do mundo mental e da epistemologia afro-americana. Mas o segundo
obstáculo é a tendência para reinterpretar através da mentalidade ocidental os
dados recolhidos. O Padre Plácide Tempels (1906-1977) não conseguiu evitá-lo
estudando a Africa. Sentiu realmente que os Bantos possuíam uma filosofia, mas
em lugar de apresentá-la em sua originalidade, repensou-a nos quadros do
tomismo. Devemos sempre nos manter de sobreaviso. É de ordem metodológica o
mérito da obra de Lucien Lévy-Bruhl (1857-1939): ensinou-nos justamente esta
vigilância. Até agora, a única tentativa que se aproxima da nossa é o artigo
que o Padre Protáscio Frikel (1912-1974) escreveu, numa revista franciscana, a
respeito das concepções que os negros formulam sobre a imortalidade e o destino
das almas dos mortos. Infelizmente, o artigo chega a conclusões errôneas porque
o autor compreendeu mal uma palavra de seu informante, Manoel. Este, falando a
respeito da adivinhação de Ifa, que se faz com 21 búzios, designou o processo
com o nome de Oká lelogún (Okâ designa em yoruba o algarismo 21) e Frikel
compreendeu Oba Mélégun ( Oba significando Rei e Egum, mortos). Com este ponto
de partida, teceu toda uma filosofia sobre Ifa, dando-o como Rei dos Mortos, o
que não tem nada absolutamente que ver com o pensamento autêntico dos
africanos. Que, ao contrário, o reinterpreta através de uma filosofia do
Ocidente, o panteísmo. Sempre nos pareceu preferível não oferecer senão
conclusões modestas, mas verificadas, em lugar de tentativas mais ambiciosas e
sem fundamento seguro. Resta-nos dizer algo a respeito da ortografia que
achamos melhor adotar para os nomes africanos. Se nossa tarefa fosse a do
etnógrafo que procura descobrir as fontes exatas de todos os africanismos da
Bahia. Acreditamos seria indispensável utilizar as regras formuladas pelo
Instituto Internacional de Línguas e Civilizações Africanas, a fim de possibilitar
comparação mais segura. Mas como tomamos o candomblé como realidade autônoma,
que pode certamente compreender elementos de diversas origens, mas não obstante
forma um conjunto coerente que pode ser estudado em si mesmo. Como esta
realidade é uma realidade brasileira, achamos melhor seguir, como mais adaptado
ao nosso objetivo, a ortografia fonética dos autores nacionais. Livro O
Candomblé da Bahia – Rito Nagô. Abraço. Davi
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