quinta-feira, 21 de novembro de 2019

INTRODUÇÃO


Religião Afrodescendente. Candomblé. Livro o Candomblé da Bahia – Rito Nagô. Tradução de Maria Isaura Pereira de Queiroz (1918-2018). Universidade de São Paulo – USP. INTRODUÇÃO. Considerando o instrumento indispensável para a economia de uma grande propriedade agrícola, o negro africano, enquanto escravo, só interessou ao brasileiro branco como mão-de-obra. Todavia, no fim do século XIX, extinguia-se o trabalho servil. Urgia, pois, integrar o negro na comunidade nacional e, para tal, era preciso primeiro conhecê-lo. Os primeiros estudos sobre as sobrevivências religiosas africanas, datados de 1896, saíram sob a forma de artigos na Revista Brasileira; eram da pena de um jovem médico baiano, Nina Rodrigues (1862-1906). A partir dessa época e até sua morte, dedicou-se inteiramente, o grande pesquisador à descrição e análise de tais sobrevivências, publicando também em francês L' Animisme Fétichiste des Negres Bahians (1900). Depois de sua morte, Homero Pires recolheu os diversos artigos dispersos em numerosas publicações, formando um volume sob o título de Os Africanos no Brasil. Ambos os livros se ressentem, sem dúvida, da época em que foram escritos e preconceitos raciais deformam as melhores páginas. Nina Rodrigues acreditava na inferioridade do negro e em sua incapacidade de se integrar na sociedade ocidental. Como, médico legista e psiquiatra, não viu mais que simples manifestações de histeria nos transes místicos e nas crises de possessão que caracterizam o culto público dos africanos brasileiros. Por outro lado, sua própria interpretação etnográfica da religião é construída segundo os quadros de referência da ciência de seu tempo: no fim do século XIX, o positivismo se implantara no Brasil, onde, como se sabe, desempenharia um papel político de primeira plana; daí o título do primeiro de seus livros - "o animismo fetichista". Apesar de todas estas falhas, as obras de Nina Rodrigues, ainda vigora, não deixam de ser talvez as melhores publicadas sobre o assunto, primeiro porque seus informantes pertenciam ao candomblé mais tradicional, mais puramente africano de sua época, o candomblé do Gantois.  Depois, porque suas descrições do culto, das hierarquias sacerdotais, das representações coletivas do grupo negro, são fiéis e sempre válidas. São sem dúvida livros incompletos, mas naquilo que descrevem, livros seguros. Um pouco mais tarde, de 1916 a 1922, Manuel Querino, homem de cor, escreveu também certo número de estudos sobre o negro da Bahia. Seu ponto de vista era inteiramente oposto ao de Nina Rodrigues, cujos trabalhos, além do mais, não parece ter conhecido. Queria antes de tudo mostrar a importância da contribuição africana à civilização do Brasil e exaltar o valor desta contribuição. Acusam-no às vezes de completa falta de cultura etnológica. Mas a tez lhe permitia conhecer o que os negros escondiam de Nina Rodrigues; seu amor pelos irmãos de cor fornecia-lhe, por outro lado, possibilidade de compreender melhor certos aspectos de um culto em que os brancos procuravam antes de mais nada o que havia de pitoresco. Buscando sensações exóticas; eis porque sua contribuição, parece-me, não deve ser negligenciada. Em todo o caso, é superior à do Padre Etienne Inácio Brazil, no trabalho "Le Fétichisme des Negres du Brésil", publicado primeiramente em francês, na revista Anthropos, em 1908, e em português um ano depois. O Padre Brazil nada acrescenta de novo às publicações de Nina Rodrigues, que segue muito de perto, à parte alguns erros de grafia. Não parece ter tido contatos muito íntimos com os fiéis dos candomblés, pois de outra forma não teria transformado a religião deles numa espécie de idolatria. Para fazer trabalho etnográfico, não basta descrever os ritos ou citar os nomes das divindades; é preciso também compreender o significado dos mitos ou dos ritos. Qualquer erro de psicologia pode corromper gravemente o valor dos fatos descritos, e foi o que aconteceu ao Padre Brazil. Daí a importância da obra de Arthur Ramos. Este último considerou-se continuador de Nina Rodrigues e, a partir de 1932, começou a publicar uma série de artigos e de livros sobre as sobrevivências africanas no Brasil. Se nos detivermos apenas no material recolhido, não trazem eles talvez muitos elementos novos sobre os candomblés da Bahia, em comparação com os que já tinham sido divulgados. Seu mérito está antes de mais nada no método. Arthur Ramos desprendeu-se de todo e qualquer preconceito; quer de raça, quer de religião. Ensinou aos africanistas brasileiros o valor da objetividade científica. Também trouxe sem dúvida uma interpretação, efetuada através de teorias psicanalíticas. Mas teve o grande cuidado de separar radicalmente a descrição dos fatos da interpretação que deles dá em seguida, à parte. Conseguiu também despertar em muitos jovens o interesse por tais pesquisas e, pelo menos durante o período que vai de 1933 a 1940, pôs em moda o estudo das sobrevivências africanas na civilização brasileira. Mostrou a necessidade de não separa nem das descobertas feitas pelos etnógrafos, tanto na África quanto noutras partes da América, em das teorias gerais da antropologia cultural norte-americana. Seus discípulos, à frente dos quais colocamos Édson Carneiro, foram levados a continuar o trabalho, efetuando novas pesquisas de campo, e trouxeram mais dados que completam a imagem da vida nos candomblés. Entretanto, Melville J. Herskovits (1895-1963), executando o plano de sua pesquisa geral sobre os africanos do Novo Mundo, chegava ao Brasil em 1942, fixando-se na Bahia. Embora não tenha publicado ainda senão parte do material então recolhido. Tal viagem foi de importância capital para o problema que nos ocupa. Com efeito, recolocava ele a vida religiosa no conjunto da vida social ou da vida cotidiana do negro brasileiro. E a interpretava a um tempo através de sua teoria da aculturação, e de uma concepção funcionalista da cultura. A renovação da concepção africanista que trazia, fixou-se na obra de Octávio da Costa Eduardo, que estudou os negros do Maranhão, e na do Doutor René Ribeiro, cujo trabalho é sobre os Xangô do Recife. Não negamos o interesse de todos estes estudos. Nossa tese principal foi consagrada ao problema das transformações, das interpretações e das metamorfoses resultantes do contato entre civilizações. Embora tenham os traços das "culturas" africanas sofrido modificações, não deixa em verdade o candomblé de constituir um sistema harmonioso e coerente de representações coletivas e de gestos rituais. Pode a religião africana subsistir porque responde a certas funções ou a certas necessidades. Isso não impede que o candomblé tenha sua estrutura e que esta estrutura mereça estudo paciente e especial. Assim pois, neste trabalho, não nos preocupa a busca da origem africana deste ou daquele traço, nem o possível sincretismo deles com os da civilização luso-brasileira. Indicamos ao leitor, quanto a esse ponto, nossa tese principal. Estudaremos o candombe como realidade autônoma, sem referência à história ou ao transplante da cultura de uma para outra parte do mundo. Não nos preocuparemos também com o enquadramento das descrições em sistemas de conceitos tomados à etnografia tradicional ou à antropologia cultural. Não porque os desdenhemos, mas porque nos parece mais útil abrir horizontes do que caminhar por sendas já percorridas. Foi em 1944 que pela primeira vez tomamos contato com os candomblés, e na reportagem então produzida, dizíamos: "A filosofia do candomblé não é uma filosofia bárbara, e sim um pensamento sutil que ainda não foi decifrado" (Imagens do Nordeste místico, pág. 134). Foi ao estudo deste "pensamento sutil" que nos dedicamos neste trabalho. É sempre difícil abandonar preconceitos e etnocentrismos. O próprio negro brasileiro ao estudar religião africana de seu país, aceita o ponto de vista do branco sobre a superioridade da civilização ocidental. Tende-se inconscientemente a admitir que o candomblé não pode fundamentar ou postular uma filosofia do universo, e uma concepção do homem, diferentes sem dúvida das nossas, mas tão ricas e complexas quanto estas. A pretexto que os fiéis de tais religiões pertencem em geral as camadas mais baixas da população – empregadas, lavadeiras, proletários.  Os funcionalistas - um Rene Ribeiro no Brasil, um Louis Prince Mars (1906-2000) no Haiti, - já prestaram grande serviço contra os que difamam os cultos ditos "populares". Demonstrando sua utilidade para a saúde mental e para a adaptação dos homens na sociedade a que pertencem. Mas é preciso mostrar ainda que tais cultos não são um tecido de superstições que, pelo contrário, subentendem uma cosmologia, uma psicologia e uma teodiceia. Enfim, que o pensamento africano é um pensamento culto. Quando, em 1944, fomos pela primeira vez à Bahia, nada sabíamos dos trabalhos de Marcel Griaule (1898-1956). Foi somente após a guerra que deles tomamos conhecimento. Constituíram para nós um encorajamento precioso, pois confirmavam nossa convicção primeira. Infelizmente, não pudemos avançar tanto quanto ele no estudo do pensamento africano. O mundo dos candomblés é um mundo secreto, no qual só se entra pouco a pouco, e a tentativa que agora oferecemos aos futuros pesquisadores é antes um esboço do que uma síntese definitiva. Reconhecemos de bom grado. Mas tornava-se necessário reagir imediatamente contra um preconceito pejorativo que ameaçava desnaturar a descrição dos fatos etnográficos. Que impedia, na realidade, a compreensão do verdadeiro significado das cerimônias e dos gestos, apresentando-os antes como uma espécie de caricatura e de degradação. Encontramos nesta tentativa dois obstáculos principais. O primeiro provém dos informantes. A lei do segredo existe. Mas os chefes do culto, que muitas vezes tiveram de sofrer perseguições policiais, hesitam sobre os limites do segredo. Compreendemos muito bem que recusem desvendar certas sequências do ritual de iniciação, que recusem a penetração em sociedades secretas como a dos Eguns. Compreendemos menos que ocultem o mundo dos mitos. Muitos fogem a divulgá-los porque têm sido de tal modo enganados que temem ver se voltar contra eles mesmos uma palavra por demais confiante que deixaram escapar. Há, todavia um meio de ultrapassar este primeiro obstáculo. A religião do candomblé, embora africana, não é religião só de negros. Penetram no culto não somente mulatos, mas também brancos e até estrangeiros. É preciso dissociar completamente religião e cor da pele. É possível ser africano, sem ser negro. A penetração no mundo dos candomblés se opera por meio de uma série de iniciações progressivas, de cerimônias especializadas, abertas àqueles que são chamados pelos deuses, qualquer que seja sua origem étnica, e é à medida que se vai penetrando no interior do santuário que os mistérios vão sendo apreendidos. São principalmente os sacerdotes que têm a noção do valor do tempo. É o tempo que amadurece o conhecimento das coisas. O ocidental tudo quer saber desde o primeiro instante, eis porque, no fundo, nada compreende. Como dizia um dos meus informantes: "Toda a semana, todo o mês, ensinarei ao senhor algo de novo, pouco a pouco (..) " Assim devagarinho, a poder de paciência, de amizade recíproca, a filosofia africana vai se desvendando, por etapas. Se ainda não se tornou conhecida, ou se é insuficientemente conhecida, foi porque toda a atenção se tem voltado quase unicamente para o culto público. Foi porque o preconceito inconsciente da inferioridade mental do negro desviou os pesquisadores do mundo mental e da epistemologia afro-americana. Mas o segundo obstáculo é a tendência para reinterpretar através da mentalidade ocidental os dados recolhidos. O Padre Plácide Tempels (1906-1977) não conseguiu evitá-lo estudando a Africa. Sentiu realmente que os Bantos possuíam uma filosofia, mas em lugar de apresentá-la em sua originalidade, repensou-a nos quadros do tomismo. Devemos sempre nos manter de sobreaviso. É de ordem metodológica o mérito da obra de Lucien Lévy-Bruhl (1857-1939): ensinou-nos justamente esta vigilância. Até agora, a única tentativa que se aproxima da nossa é o artigo que o Padre Protáscio Frikel (1912-1974) escreveu, numa revista franciscana, a respeito das concepções que os negros formulam sobre a imortalidade e o destino das almas dos mortos. Infelizmente, o artigo chega a conclusões errôneas porque o autor compreendeu mal uma palavra de seu informante, Manoel. Este, falando a respeito da adivinhação de Ifa, que se faz com 21 búzios, designou o processo com o nome de Oká lelogún (Okâ designa em yoruba o algarismo 21) e Frikel compreendeu Oba Mélégun ( Oba significando Rei e Egum, mortos). Com este ponto de partida, teceu toda uma filosofia sobre Ifa, dando-o como Rei dos Mortos, o que não tem nada absolutamente que ver com o pensamento autêntico dos africanos. Que, ao contrário, o reinterpreta através de uma filosofia do Ocidente, o panteísmo. Sempre nos pareceu preferível não oferecer senão conclusões modestas, mas verificadas, em lugar de tentativas mais ambiciosas e sem fundamento seguro. Resta-nos dizer algo a respeito da ortografia que achamos melhor adotar para os nomes africanos. Se nossa tarefa fosse a do etnógrafo que procura descobrir as fontes exatas de todos os africanismos da Bahia. Acreditamos seria indispensável utilizar as regras formuladas pelo Instituto Internacional de Línguas e Civilizações Africanas, a fim de possibilitar comparação mais segura. Mas como tomamos o candomblé como realidade autônoma, que pode certamente compreender elementos de diversas origens, mas não obstante forma um conjunto coerente que pode ser estudado em si mesmo. Como esta realidade é uma realidade brasileira, achamos melhor seguir, como mais adaptado ao nosso objetivo, a ortografia fonética dos autores nacionais. Livro O Candomblé da Bahia – Rito Nagô. Abraço. Davi

Nenhum comentário:

Postar um comentário