terça-feira, 26 de novembro de 2019

APRESENTAÇÃO II


Religião Afrodescendente. Candomblé. Livro O Candomblé da Bahia – Rito Nagô. Tradução de Maria Isaura Pereira de Queiroz (1918-2018). Capítulo I. APRESENTAÇÃO II. Universidade de São Paulo – USP. Em seguida, "a cabeça, os intestinos, as asas e as patas são cozidas no azeite de dendê, com camarões e cebolas, mas sem sal", e este prato é depositado, juntamente com outros alimentos, diante dos tambores, onde ficarão um dia inteiro para que tenham tempo suficiente para "comer". Compreende-se por que razão os instrumentos apresentam algo de divino, que impede sejam vendidos ou emprestados sem cerimônias especiais de dessacralização ou de consagração, interessando-nos saber que somente por meio da música fazem baixar os deuses na carne dos fiéis. Eis porque, uma vez terminado o padê de Exú, a cerimônia prossegue com o toque musical dos tambores que, sozinhos, sem acompanhamento de cânticos nem de danças, falam aos Orixá e pedem lhes que venham da África para o Brasil. Em geral, os etnógrafos não têm prestado muita atenção a este diálogo preliminar dos tambores e das divindades. Creio que seu estudo revelaria a existência, na Bahia, de fenômenos análogos aos que Fernando Ortiz tão bem analisou para Cuba, onde, como se sabe, a religião é igual, isto é, yoruba. Mas não são apenas os três tambores que têm o poder de evocar a vinda dos Orixá; os agidavi também, isto é, as varetas com as quais são batidos e que, antes de serem utilizados, dormiram "junto dos deuses", no santuário, para se impregnarem de força sagrada; ou, mais exatamente sem dúvida, para entrarem em correspondência com os Orixá. O agôgô (corruptela de akoko, que quer dizer tempo, hora, em língua yoruba), sino simples ou duplo, algumas vezes mero pedaço de metal batido por outro pedaço de metal, desempenha também papel importante no candomblé. Quando as possessões estão custando para se produzir, sacerdote ou sacerdotisas agitam o aja junto ao ouvido das filhas de santo que dançam e não é raro que, importunada por esse ruído agudo e alucinante, a divindade se decida a montar em seu cavalo. Infelizmente, não sabemos se este último instrumento de música sofre uma preparação religiosa análoga à dos tambores ou dos simples agidavi. As danças preliminares. Em seguida são chamados os deuses, numa certa ordem que varia de candomblé para candomblé, mas que, por ocasião das festas públicas, são muitas vezes a mesma em santuários determinados. Esta ordem é conhecida como xiré: começa obrigatoriamente por Exu para terminar por Oxalá, que é o Senhor do céu e o mais elevado dos Orixá. Mas com exceção do primeiro e do último termo do xiré, reina a maior variedade na ordem dos termos intermediários; quando muito poder-se-ia dizer que, nas manifestações, muitas vezes se começa pelas divindades mais jovens ou mais violentas, como Ogun, para ir progressivamente para as mais velhas ou as mais calmas. Cada divindade recebe um mínimo de três cânticos; e ainda me lembro do protesto dos fiéis, uma noite em que não sei por que razão um dos seus deuses só recebeu dois, em lugar dos três cânticos regulamentares. O número de três não é, porém, senão um mínimo; pode-se cantar quantidade maior de cânticos. Nos candomblés bantos, as palavras são geralmente portuguesas, mas nos candomblés yoruba ou dahomeanos, os cânticos são "na língua", isto é, em africano, o idioma variando naturalmente de acordo com a origem étnica da "nação" egba, fon, etc. Para empregar um termo wagneriano, constituem, juntamente com os ritmos sonoros dos tambores que os acompanham outros tantos, motivos destinados a atrair os Orixá. Os cânticos, todavia, não são apenas cantados, são também dançados", pois constituem a evocação de certos episódios da história dos deuses, são fragmentos de mitos, e o mito deve ser representado ao mesmo tempo que falado para adquirir todo o poder evocador. Ao gesto juntando-se à palavra, a força da imitação mimética auxiliando o encantamento da palavra, os Orixá não tardam a montar em seus cavalos à medida que vão sendo chamados. Pode acontecer, porém, que a cerimônia prossiga durante muito tempo sem que haja possessões. Neste caso, os tambores fazem soar o toque adarrum, que não é acompanhado de cânticos, pois trata-se de chamar desta vez, não apenas uma, mas todas as divindades ao mesmo tempo. Seu ritmo cada vez mais rápido, cada vez mais implorante, acaba por abrir os músculos, as vísceras, as cabeças à penetração do deus que se esperou durante tanto tempo. Produzida a “crise” de possessão, as ekedy encarregadas de velar os filhos e filhas de santo, retiram-lhe o casaco se se trata de um homem, ou, em se tratando de mulher, o xale que a poderia estrangular no caso de convulsões, e antes de mais nada, os sapatos. O gesto é altamente simbólico: trata-se de despojar o indivíduo de sua personalidade brasileira para que retome à condição de africano. Os sapatos tiveram importância capital na vida do negro americano. Foram o sinal da sua libertação; quando um escravo era alforriado, seu primeiro cuidado era comprar um par de sapatos para se igualar ao branco, embora muitas vezes não os calçasse, pois, seus pés habituados a andar nus não os suportavam. Trazia-os, porém, suspensos ao pescoço pelo amarrilho, ou levava-os na mão; em casa, colocava-os bem à vista sobre um móvel, em lugar de honra. Quando o Orixá baixa, o negro é recolocado na condição de africano, de participante da vida tribal de seus pais; então pisará com seus pés nus a terra, que é também uma deusa. A violência da “crise” varia segundo as circunstâncias, o temperamento do indivíduo, a natureza do deus que o possui. No caso de certas faltas, pode mesmo tomar a forma de castigo. Se é muito violenta, o sacerdote ou sacerdotisa que dirige o culto, babalorixá ou ialorixá, coloca a mão na nuca do cavalo para acalmá-lo, ou assopra-lhe no ouvido. As ekedy então auxiliam o indivíduo, que titubeia sob o abraço divino, a sair do salão de dança para ir ou para o pegi, onde estão as pedras dos Orixa, ou para um quarto vizinho; se caiu ao chão, carregam-no como um corpo morto, ainda agitado por movimentos convulsivos. O êxtase tomará ali forma mais calma, não desaparecendo, terminando somente com os últimos cânticos. O fiel é revestido com as roupas litúrgicas de sua divindade, colocam-lhe nas mãos os objetos simbólicos da nova posição, espada de Ogum, arco de Oxossi, xaxara (membro viril) de Omolú, abébé (leque) de Oxun, paxoro (vara de ferro) de Oxalá. Cada integrante da confraria só pode receber o deus ao qual está ligado pelos ritos de iniciação. Certo número de casos excepcionais, podem, todavia, suceder, e deles diremos algumas palavras. Há alguns Orixá que não "baixam", como por exemplo Xangô Dada em Porto Alegre, ou Orunmila, na Bahia; nesse caso, a pessoa que lhe foi consagrada recebe uma divindade da mesma família; é esta a ocasião única em que é permitida a possessão por divindade diferente daquela a que se pertence de direito. Pode também acontecer que um Orixá turbulento ou ciumento monte cavalo que não é o seu, embora o caso seja muito raro (nunca assisti a nenhum). O sacerdote deve então despachá-lo imediatamente, mandá-lo embora. Exú não se encarna nunca embora por vezes tenha filhos; conhecemos pelo menos uma filha de Exu e citaram-nos nomes de outros. Mas a possessão de Exú se diferencia da dos outros Orixá pelo seu frenesi, seu caráter patológico, anormal, sua violência destruidora.Se quisermos uma comparação, é um pouco a diferença que fazem os católicos entre o êxtase divino e a possessão demoníaca. Se Exú ataca um membro do candomblé, é preciso, pois, despachá-lo também, afugentá-lo imediatamente. Mas, com exceção destes casos aberrantes que, afirmamos outra vez, são extremamente raros, a função desta parte do ritual que descrevemos tem realmente por objetivo a possessão dos homens pelos seus deuses. Por outro lado, nem todos os iniciados são possuídos. Não falamos das mulheres menstruadas, que não devem nem mesmo assistir à festa pois as divindades têm horror ao sangue catamenial; se uma delas ousa desobedecer, imediatamente os tambores o reconhecem, pois, sua simples presença perturba o toque musical. Porém as que estão grávidas ou de luto, mesmo presentes, nunca são "montadas" pelo seu Orixá. Numerosos membros de outros terreiros ou de outras seitas comparecem como visitantes ou como curiosos às cerimônias tradicionais dos grandes candomblés. Não é de bom-tom e é mesmo muito mal visto para os de fora caírem então em transe. O êxtase só é permitido no enquadramento do santuário onde foi feita a iniciação. Acontece, no entanto, às filhas de santo em visita, sentirem o apelo insistente da divindade desabrochar no íntimo; bebem então grandes copos de água gelada, que têm o poder de impedir que se produza a possessão. Um último caso pode finalmente se dar: o de pessoa não iniciada, que veio assistir às danças somente pelo prazer do espetáculo, e que bruscamente se vê presa também da crise de possessão. Diz-se neste caso que a pessoa foi atacada por um santo bruto, o que significa simplesmente que a crise não foi controlada, orientada pela coletividade. É então conduzida para o interior do santuário, a fim de ser iniciada e de se tornar uma filha de santo. Com efeito, a iniciação não tem outro objetivo senão socializar a crise para que daí por diante se processe segundo os padrões africanos. A dança dos deuses. Depois de um intervalo, durante o qual às vezes é servido um lanche aos convidados importantes, filhas e filhos de santo retornam ao salão de dança. Mas não são mais, nesse momento, apenas filhos e filhas de santo, são os próprios deuses encarnados que vêm se misturar um momento aos adeptos brasileiros. O ritmo da cerimônia não se modifica; têm lugar as mesmas evocações dos Orixá em ordem determinada, sempre com o mesmo mínimo de três cânticos regulamentares, com os mesmos leit-motiv (estado de espírito) wagnerianos, diante de um público cheio de fervor e respeito. Os gestos, porém, adquirem maior beleza, os passos de dança alcançam estranha poesia. Não são mais costureirinhas, cozinheiras, lavadeiras que rodopiam ao som dos tambores nas noites baianas; eis Omolú recoberto de palha, Xangô vestido de vermelho e branco, Yemanjá penteando seus cabelos de algas. Os rostos se metamorfosearam em máscaras, perderam as rugas do trabalho cotidiano, desaparecidos os estigmas dessa vida de todos os dias, feita de preocupações e de miséria; Ogun guerreiro brilha no fogo da cólera, Oxun é roda feita de volúpia carnal. Por um momento, confundiram-se África e Brasil; aboliu-se o oceano, apagou-se o tempo da escravidão. Eis presentes aqui os Orixá, saudando os tambores, fazendo ika ou dobale diante dos sacerdotes supremos, dançando, muitas vezes revelando o futuro ou dando conselhos. Não existem mais fronteiras entre natural e sobrenatural; o êxtase realizou a comunhão desejada. 7. Ritos de saída e de comunhão. O êxtase só chega ao fim quando forem cantados os cânticos de unló, cujo objetivo é justamente mandar embora os Orixá. Estes são entoados na ordem inversa das invocações, começando pelas divindades chamadas em último lugar para terminar por aquelas que vieram primeiro; à medida que a litania de nomes vai se desenrolando, as pálpebras fechadas vão se abrindo, o rosto perde a máscara da divindade, a personalidade normal reaparece. O último cântico tem lugar no pegí, como se o desejo fosse de que a força mística, que tinha rompido as amarras, regresse às pedras banhadas de sangue, aos pedaços de ferro que estão "comendo" a oferenda alimentar. E este último cântico, ao contrário dos precedentes, segue a ordem do xiré: atáu ecúô é di bom jeú Exú vai unló é di bom jeô atáu ecúô é di bom jeô Ogum vai un Oxum Emanjá Xangô Orixalá. Todavia, antes que todos se separem, um repasto de comunhão permitirá unir divindades, membros da confraria e aqueles dos espectadores que ainda permaneceram no recinto. As filhas de santo trazem, em pratos da cor de seus Orixá, um pouco do alimento, parte do qual fora colocado no pegí: branco para Oxalá, azul para Yemanjá, violeta para Nanan (...). Sentam-se em torno de uma toalha posta no próprio chão, sobre a qual depositaram o alimento sagrado. Cada qual toma um bocado do prato de seu deus, com as duas mãos em forma de concha, e engole-o com um movimento da boca que vai do punho à ponta dos dedos. Depois, oferece um bocado do prato aos filhos dos outros Orixá, de modo a cimentar a solidariedade do grupo por meio da partilha de alimentos. O resto, sobre folhas de bananeira, é oferecido aos espectadores que estão de pé em torno das filhas de santo sentadas no chão, os diferentes alimentos dos múltiplos Orixá fraternalmente misturados nesta espécie de bandeja vegetal; é obrigat6rio comer com a mão. Não se deve confundir este repasto, que é uma comunhão, com a colação algumas vezes servida aos convidados importantes entre a dança de chamada e a dança dos deuses. Trata-se aqui de algo muito diferente, de uma tríplice solidariedade a realizar, antes do regresso ao mundo profano: primeiro, entre o divino e o humano; depois, entre os membros da confraria que pertencem a divindades diferentes; e às vezes rivais; finalmente, também, entre a confraria e os não-iniciados, para que um pouco da África, que se perdeu e tornou a encontrar, nestes penetre igualmente. O grupo dos fiéis ultrapassa a confraria dos filhos e filhas de santo. A entrada num candomblé se faz progressivamente e há graus de incorporação, o mais baixo dos quais é o simbolizado pela lavagem do colar. A. Cada membro da seita tem um colar que lhe é pr6prio, cujas contas são da cor da divindade à que pertence: brancas para Oxalá, alternadamente brancas e vermelhas para Xangô, verdes para Oxossi, amarelas para Oxun (...). Mas o colar não tem valor por si mesmo, deve sofrer previamente determinada preparação, deve ser "lavado". O indivíduo que deseje, pois, participar da vida de um candomblé, deve começar por consultar o babalaô ou adivinho, que interrogará por ele o colar de Ifa ou os búzios, a fim de descobrir o nome do Orixá que é o "dono de sua cabeça". Basta, em seguida, fabricar o colar correspondente ao seu Orixá, ou mesmo comprá-lo simplesmente no mercado municipal, levando-o ao babaloríxá ou à ialorixá do terreiro ao qual quer pertencer, e que o lavarão. Manuel Raimundo Querino (1851-1923) fornece descrição da cerimônia: imersão do colar em bacia cheia d'água, trituração de folhas ligadas à divindade em questão (como veremos, cada deus tem, com efeito, suas folhas especiais), lavagem das contas com "sabão da Costa", isto é, da costa africana (sabão negro e mole), transmissão do colar à pessoa que deve usá-lo, com as respectivas recomendações sobre as futuras obrigações, e finalmente festa íntima com cânticos e refeição. A descrição, porém, é incompleta e deixa mesmo escapar o essencial. Para que o colar tenha valor, é preciso: 1) que tenha ficado uma noite inteira sobre a peara do deus a que pertence e que o sangue de uma ave morta em sacrifício, juntamente com as ervas apropriadas, tenha lavado ao mesmo tempo pedra e colar. Mas não basta ainda: é preciso mais que 2) a esta primeira participação se junte uma segunda, entre pedra, colar e cabeça do indivíduo que celebra o ritual. Digo "cabeça" e não "indivíduo" porque a cabeça é considerada a moradia do Orixá. Lavar-se-á então a cabeça, e muitas vezes também o corpo inteiro, com a água e as ervas que serviram para a lavagem de colar e pedra. Assim entram em contato os membros do trinômio, deus, homem e colar, permitindo a passagem da corrente mística entre o primeiro e o último, por intermédio do segundo. Eis por que o colar só tem valor para o proprietário. Se este o perde e outro pessoa o usa, não terá nenhum poder para esta, pois não foi posto em participação, nem direta, nem indireta, com a cabeça dela. Continuar Página 35 segundo parágrafo. Livro O Candomblé da Bahia – Rito Nagô. Abraço. Davi

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