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Texto de Allan Kardec (1804-1869). Livro O Céu e o Inferno. Capítulo 6. A DOUTRINA DAS PENAS
ETERNAS. Origem da doutrina das penas eternas. Argumentos a favor das
penas eternas. Impossibilidade material das penas eternas. A doutrina das
penas eternas fez sua época. O profeta bíblico Ezequiel contra a eternidade
das penas e o pecado original. Origem da doutrina das penas eternas 1. A crença
na eternidade das penas perde terreno dia a dia, de modo que, sem ser profeta,
pode prever-se o fim próximo. Tais e de tal ordem poderosos e peremptórios têm
sido os argumentos a ela opostos, que nos parece quase supérfluo ocuparmo-nos
de tal doutrina de ora em diante, deixando que por si mesma se extinga. Não se
pode contestar, porém, que, apesar de caduca, ainda constitui o baluarte dos
adversários das ideias novas, o ponto que defendem com mais obstinação,
convictos aliás da vulnerabilidade que ela apresenta, e não menos convictos das
consequências dessa queda. Por este lado, a questão merece sério exame. 2. A
doutrina das penas eternas teve sua razão de ser, como a do inferno material,
enquanto o temor podia constituir um freio para os homens pouco adiantados
intelectual e moralmente. Na impossibilidade de apreenderem as nuanças tantas
vezes delicadas do bem e do mal, bem como o valor relativo das atenuantes e
agravantes, os homens não se impressionariam, então, a não ser pouco ou mesmo
nada com a ideia das penas morais. Tampouco compreenderiam a temporalidade
dessas penas e a justiça decorrente das suas gradações e proporções. 3. Quanto
mais próximo do estado primitivo, mais material é o homem. O senso moral é o
que de mais tardio nele se desenvolve, razão pela qual também não pode fazer de
Deus, dos seus atributos e da vida futura, senão uma ideia muito imperfeita e
vaga. Assimilando-o à sua própria natureza, Deus não passa para ele de um soberano
absoluto, tanto mais terrível quanto invisível, como um rei despótico que,
fechado no seu palácio, jamais se mostrasse aos súditos. Deus só é então
poderoso pela força material, porque eles não compreendem o poder espiritual.
Só o concebem armado com o raio, ou no meio de relâmpagos e tempestades,
semeando de passagem a destruição, a ruína, semelhantemente aos guerreiros
invencíveis. Um Deus de mansuetude e cordura não seria um Deus, porém um ser
fraco e sem meios de se fazer obedecer. A vingança implacável, os castigos
terríveis, eternos, nada tinham de incompatíveis com a ideia que se fazia de
Deus, não lhes repugnavam à razão. Implacável também ele, homem, nos seus
ressentimentos, cruel para os inimigos e inexorável para os vencidos, Deus, que
lhe era superior, deveria ser ainda mais terrível. Para tais homens eram
precisas crenças religiosas assimiladas à sua natureza rústica. Uma religião
toda espiritual, toda amor e caridade não podia aliar-se à brutalidade dos
costumes e das paixões. Não censuremos, pois, a Moisés sua legislação
draconiana, apenas bastante para conter o povo indócil, nem o haver feito de
Deus um Deus vingativo. A época assim o exigia, essa época em que a doutrina de
Jesus não encontraria eco e até se anularia. 4. À medida que o Espírito se
desenvolvia, o véu material ia-se dissipando pouco a pouco, e os homens
habilitavam-se a compreender as coisas espirituais. Mas isso não aconteceu
senão lenta e gradualmente. Por ocasião de sua vinda, já Jesus pôde proclamar
um Deus clemente, falando do seu reino, não deste mundo, e acrescentando:
«Amai-vos uns aos outros e fazei bem aos que vos odeiam” (Lucas 6,27), ao passo
que os antigos diziam: “olho por olho, dente por dente”. Ora, quais eram os
homens que viviam no tempo de Jesus? Seriam
almas novamente criadas e encarnadas? Mas se assim fosse, Deus teria criado
para o tempo de Jesus almas mais adiantadas que para o tempo de Moisés? E daí o
que teria decorrido para estas últimas? Consumir-se-iam por toda a eternidade
no embrutecimento? O mais comezinho bom senso repele essa suposição. Não; essas
almas eram as mesmas que viviam sob o império das leis mosaicas e que tinham
adquirido, em várias existências, o desenvolvimento suficiente à compreensão de
uma doutrina mais elevada, assim como hoje mais adiantadas se encontram para
receber um ensino ainda mais completo. 5. O Cristo não pôde, no entanto,
revelar aos seus contemporâneos todos os mistérios do futuro. Ele próprio o
disse: Muitas outras coisas vos diriam se estivésseis em estado de as
compreender, e eis por que vos falo em parábolas. Sobretudo no que diz respeito
à moral, isto é, aos deveres do homem, foi o Cristo muito explícito porque,
tocando na corda sensível da vida material, sabia fazer-se compreender; quanto
a outros pontos, limitou-se a semear sob a forma alegórica os germens que
deveriam ser desenvolvidos mais tarde. A doutrina das penas e recompensas
futuras pertence a esta última ordem de ideias. Sobretudo, em relação às penas,
Ele não poderia romper bruscamente com as ideias preconcebidas. Vindo traçar
aos homens novos deveres, substituir o ódio e a vingança pelo amor do próximo e
pela caridade, o egoísmo pela abnegação, era já muito; além disso, não podia
racionalmente enfraquecer o temor do castigo reservado aos prevaricadores, sem
enfraquecer ao mesmo tempo a ideia do dever. Se o Cristo prometia o reino dos
Céus aos bons, esse reino estaria interdito aos maus, e para onde iriam eles?
Ademais, seria necessária a inversão da natureza para que inteligências ainda
muito rudimentares pudessem ser impressionadas de feição a identificarem-se com
a vida espiritual, levando-se em conta a circunstância de Jesus se dirigir ao
povo, à parte menos esclarecida da sociedade, que não podia prescindir de
imagens de alguma sorte palpáveis, e não de ideias sutis. Eis a razão por que
Jesus não entrou em minúcias supérfluas a este respeito; nessa época não era
preciso mais do que opor uma punição à recompensa. 6. Se Jesus ameaçou os
culpados com o fogo eterno, também os ameaçou de serem lançados na Geena. Ora,
que vem a ser a Geena? Nada mais nada menos que um lugar nos arredores de
Jerusalém, um monturo onde se despejavam as imundícies da cidade. Dever-se-ia
interpretar isso também ao pé da letra? Entretanto era uma dessas figuras
enérgicas de que Ele se servia para impressionar as massas. O mesmo se dá com o
fogo eterno. E se tal não fora o seu pensar, Jesus estaria em contradição,
exaltando a clemência e misericórdia de Deus, pois clemência e inexorabilidade
são sentimentos antagônicos, que se anulam. Desconhecer-se-ia, pois, o sentido
das palavras de Jesus, atribuindo-lhes a sanção do dogma das penas eternas,
quando todo o seu ensino proclamou a mansidão do Criador. No Pai-nosso Jesus nos
ensina a dizer: “Perdoai-nos, Senhor, as nossas faltas, assim como nós
perdoamos aos nossos devedores” (Lucas 11,4; Mateus 6,12). Pois se o culpado
não devesse esperar algum perdão, inútil seria pedi-lo. Esse perdão é, porém,
incondicional? É uma remissão pura e simples da pena em que se incorre? Não; a
medida desse perdão subordina-se ao modo pelo qual se haja perdoado, o que
equivale dizer que não seremos perdoados desde que não perdoemos. Deus, fazendo
do esquecimento das ofensas uma condição absoluta, não podia exigir do homem
fraco o que Ele, onipotente, não fizesse. O Pai Nosso é um protesto cotidiano
contra a eterna vingança de Deus. 7. Para homens que só possuíam da
espiritualidade da alma uma ideia confusa, o fogo material nada tinha de
improcedente, mesmo porque já participava da crença pagã, quase universalmente
propagada. Igualmente a eternidade das penas nada tinha que pudesse repugnar a
homens desde muitos séculos submetidos à legislação do terrível Jeová. No
pensamento de Jesus o fogo eterno não podia passar, portanto, de simples
figura, pouco lhe importando fosse essa figura interpretada à letra, desde que
ela servisse de freio às paixões humanas. Sabia Ele ademais que o tempo e o
progresso se incumbiriam de explicar o sentido alegórico, mesmo porque, segundo
a sua predição, o Espírito de Verdade viria esclarecer aos homens todas as
coisas. O caráter essencial das penas irrevogáveis é a ineficácia do
arrependimento, e Jesus nunca disse que o arrependimento não mereceria a graça
do Pai. Ao contrário, sempre que se lhe deparou ensejo, Ele falou de um Deus
clemente, misericordioso, solícito em receber o filho pródigo que voltasse ao
lar paterno; inflexível, sim, para o pecador obstinado, porém, pronto sempre a
trocar o castigo pelo perdão do culpado sinceramente arrependido. Este não é,
por certo, o traço de um Deus sem piedade. Também convém assinalar que Jesus
nunca pronunciou contra quem quer que fosse, mesmo contra os maiores culpados,
a condenação irremissível. 8. Todas as religiões primitivas, revestindo o
caráter dos povos, tiveram deuses guerreiros que combatiam à frente dos
exércitos. O Jeová dos hebreus facultava-lhes mil modos de exterminar os
inimigos; recompensava-os com a vitória ou punia-nos com a derrota. Tal ideia a
respeito de Deus levava a honrá-lo ou apaziguá-lo com sangue de animais ou de
homens, e daí os sacrifícios sangrentos que representavam papel tão saliente em
todas as religiões da Antiguidade. Os judeus tinham abolido os sacrifícios
humanos; os cristãos, apesar dos ensinamentos do Cristo, por muito tempo
julgaram honrar o Criador votando, aos milhares, às chamas e às torturas, os
que denominavam hereges, o que constituía sob outra forma verdadeiros
sacrifícios humanos, pois que os promoviam para a maior glória de Deus, e com
acompanhamento de cerimônias religiosas. Hoje, ainda invocam o Deus dos
exércitos antes do combate, glorificam-no após a vitória, e quantas vezes por
causas as mais injustas e anticristãs. 9. Quão tardo é o homem em desfazer-se
dos seus hábitos, prejuízos e primitivas ideias! Quarenta séculos nos separam
de Moisés, e a nossa geração cristã ainda vê traços de antigos usos bárbaros,
senão consagrados, ao menos aprovados pela Religião atual! Foi preciso a
poderosa opinião dos não ortodoxos para acabar com as fogueiras e fazer
compreender a verdadeira grandeza de Deus. À falta de fogueiras, porém,
prevalecem ainda as perseguições materiais e morais, tão radicada está no homem
a ideia da crueldade divina. Nutrido por sentimentos inculcados desde a
infância, poderá o homem estranhar que o Deus que lhe apresentam, lisonjeado
por atos bárbaros, condene a eternas torturas e veja sem piedade o sofrimento
dos culpados? Sim, são filósofos, ímpios como querem alguns, que se hão
escandalizado vendo o nome de Deus profanado por atos indignos dele. São eles
que o mostram aos homens na Doutrina das penas eternas plenitude da sua
grandeza, despojando-o de paixões e baixezas atribuídas por uma crença menos
esclarecida. Neste ponto a Religião tem ganho em dignidade o que tem perdido em
prestígio exterior, porque se homens há devotados à forma, maior é o número dos
sinceramente religiosos pelo sentimento, pelo coração. Ao lado destes, porém,
quantos não têm sido levados, sem mais reflexão, a negarem toda a Providência!
O modo por que a Religião tem estacionado, em antagonismo com os progressos da
razão humana, sem saber conciliá-los com as crenças, degenerou em deísmo para
uns, em ceticismo absoluto para outros, sem esquecermos o panteísmo, isto é, o
homem fazendo-se deus ele próprio, à falta de um mais perfeito. Argumentos a
favor das penas eternas. 10. Voltemos ao dogma das penas eternas. Eis o
principal argumento invocado em seu favor: “É doutrina sancionada entre os
homens que a gravidade da ofensa é proporcionada à qualidade do ofendido. O
crime de lesa-majestade, por exemplo, o atentado à pessoa de um soberano, sendo
considerado mais grave do que o fora em relação a qualquer súdito, é, por isso
mesmo, mais severamente punido. E sendo Deus muito mais que um soberano, pois é
Infinito, deve ser infinita a ofensa a Ele, como infinito o respectivo castigo,
isto é, eterno.” Refutação: Toda refutação é um raciocínio que deve ter seu
ponto de partida, uma base sobre a qual se apoie, premissas, enfim. Tomemos
essas premissas aos próprios atributos de Deus: — único, eterno, imutável,
imaterial, onipotente, soberanamente justo e bom, infinito em todas as
perfeições. É impossível conceber Deus de outra maneira, visto como, sem a
infinita perfeição, poder-se-ia conceber outro ser que lhe fosse superior. Para
que seja único acima de todos os seres, faz-se mister que ninguém possa
excedê-lo ou sequer igualá-lo em qualquer coisa. Logo, é necessário que seja de
todo infinito. E porque são infinitos, os atributos divinos não sofrem aumento
nem diminuição, sem o que não seriam infinitos e Deus perfeito tampouco. Se se
tirasse a menor parcela de um só dos seus atributos, não haveria mais Deus, por
isso que poderia coexistir um ser mais perfeito. O infinito de uma qualidade exclui a possibilidade da existência de outra
qualidade contrária que pudesse diminuí-la ou anulá-la. Um ser infinitamente
bom não pode ter a menor parcela de maldade, nem o ser infinitamente mal pode
ter a menor parcela de bondade. Assim também um objeto não seria de um negro
absoluto com a mais leve nuança de branco, e vice-versa. Estabelecido este
ponto de partida, oporemos aos argumentos supra os seguintes: 11. Só um ser
infinito pode fazer algo de infinito. O homem, finito nas virtudes, nos conhecimentos,
no poderio, nas aptidões e na existência terrestre, não pode produzir senão
coisas limitadas. Se o homem pudesse ser infinito no mal que faz, sê-lo-ia
igualmente no bem, igualando-se, então, a Deus. Se o homem, porém, fosse
infinito no bem não praticaria o mal, pois o bem absoluto é a exclusão de todo
o mal. Admitindo-se que uma ofensa temporária à Divindade pudesse ser infinita,
Deus, vingando-se por um castigo infinito, seria logo infinitamente vingativo;
e sendo Deus infinitamente vingativo não pode ser infinitamente bom e
misericordioso, visto como um destes atributos exclui o outro. Se não for
infinitamente bom não é perfeito; e não sendo perfeito deixa de ser Deus. Se
Deus é inexorável para o culpado que se arrepende, não é misericordioso; e se
não é misericordioso, deixa de ser infinitamente bom. E por que daria Deus aos
homens uma lei de perdão, se Ele próprio não perdoasse? Resultaria daí que o
homem que perdoa aos seus inimigos e lhes retribui o mal com o bem, seria
melhor que Deus, surdo ao arrependimento dos que o ofendem, negando-lhes por
todo o sempre o mais ligeiro carinho. Achando-se em toda parte e tudo vendo,
Deus deve ver também as torturas dos condenados; e se Ele se conserva
insensível aos gemidos por toda a eternidade, será eternamente impiedoso; ora,
sem piedade, não há bondade infinita. 12. A isto se responde que o pecador
arrependido, antes da morte, tem a misericórdia de Deus, e que mesmo o maior
culpado pode receber essa graça. Quanto a isto não há dúvida, e compreende-se que
Deus só perdoe ao arrependido, mantendo-se inflexível para com os obstinados;
mas se Ele é todo misericordioso para a alma arrependida antes da morte, por
que deixará de o ser para quem se arrepende depois dela? Por Doutrina das penas
eternas 69 que a eficácia do arrependimento só durante a vida, um breve
instante, e não na eternidade que não tem fim? Circunscritas a um dado tempo, a
bondade e Misericórdia divinas teriam limites, e Deus não seria infinitamente
bom. 13. Deus é soberanamente justo. A soberana justiça não é inexorável
absolutamente, nem leva a complacência ao ponto de deixar impunes todas as
faltas; ao contrário, pondera rigorosamente o bem e o mal, recompensando um e
punindo outro equitativa e proporcionalmente, sem se enganar jamais na aplicação.
Se por uma falta passageira, resultante sempre da natureza imperfeita do homem
e muitas vezes do meio em que vive, a alma pode ser castigada eternamente, sem
esperança de clemência ou de perdão, não há proporção entre a falta e o castigo
— não há justiça. Reconciliando-se com Deus, arrependendo-se, e pedindo para
reparar o mal praticado, o culpado deve subsistir para o bem, para os bons
sentimentos. Se, porém, o castigo é irrevogável, esta subsistência para o bem
não frutifica, e um bem não considerado significa injustiça. Entre os homens, o
condenado que se corrige tem por comutada e às vezes mesmo perdoada a sua pena;
e, assim, haveria mais equidade na justiça humana que na divina. Se a pena é
irrevogável, inútil será o arrependimento, e o culpado, nada tendo a esperar de
sua correção, persiste no mal, de modo que Deus não só o condena a sofrer
perpetuamente, mas ainda a permanecer no mal por toda a eternidade. Nisso não
há nem bondade nem justiça. 14. Sendo em tudo infinito, Deus deve abranger o passado
e o futuro; deve saber, ao criar uma alma, se ela virá a falir, assaz
gravemente, para ser eternamente condenada. Se o não souber, a sua sabedoria
deixará de ser infinita, e Ele deixará de ser Deus. Sabendo-o, cria
voluntariamente uma alma desde logo votada ao eterno suplício, e, nesse caso,
deixa de ser bom. Uma vez que Deus pode conferir a graça ao pecador
arrependido, tirando-o do inferno, deixam de existir penas eternas, e o juízo
dos homens está revogado. 15. Conseguintemente, a doutrina das penas eternas
absolutas conduz à negação, ou, pelo menos, ao enfraquecimento de alguns
atributos de Deus, sendo incompatível com a perfeição absoluta, donde resulta
este dilema: Ou Deus é perfeito e não há penas eternas, ou há penas eternas e
Deus não é perfeito. 16. Também se invoca a favor do dogma da eternidade das
penas o seguinte argumento: “A recompensa conferida aos bons, sendo eterna,
deve ter por corolário a eterna punição. Justo é proporcionar a punição à
recompensa.” Refutação: Deus criou as almas para fazê-las felizes ou
desgraçadas? Evidentemente a felicidade da criatura deve ser o fito do Criador,
ou Ele não seria bom. Ela atinge a felicidade pelo próprio mérito, que,
adquirido, não mais o perde. O contrário seria a sua degeneração. A felicidade
eterna é, pois, a consequência da sua imortalidade. Antes, porém, de chegar à
perfeição, tem lutas a sustentar, combates a travar com as más paixões. Não
tendo sido criada perfeita, mas suscetível de o ser, a fim de que tenha o
mérito de suas obras, a alma pode cair em faltas, que são consequentes à sua
natural fraqueza. E se por esta fraqueza fora eternamente punida, era caso de
perguntar por que não a criou Deus mais forte? A punição é antes uma
advertência do mal já praticado, devendo ter por fim reconduzi-la ao bom
caminho. Se a pena fosse irremissível, o desejo de melhorar seria supérfluo;
nem o fim da criação seria alcançado, porquanto haveria seres predestinados à
felicidade ou à desgraça. Se uma alma se arrepende, pode regenerar-se, e
podendo regenerar-se pode aspirar à felicidade. E Deus seria justo se lhe
recusasse os respectivos meios? Sendo o bem o fim supremo da Criação, a
felicidade, que é o seu prêmio, deve ser eterna; e o castigo, como meio de
alcançá-la, temporário. A noção mais comezinha da justiça humana prescreve que
se não pode castigar perpetuamente quem se mostra desejoso de praticar o bem.
17. Um último argumento a favor das penas eternas é este: “O temor das penas
eternas é um freio; anulado este, o homem, por nada temer, entregar-se-ia a
todos os excessos.” Refutação: Esse raciocínio procederia se a temporalidade
das penas importasse, de fato, na supressão de toda sanção penal. A felicidade
ou infelicidade futura é consequência rigorosa da Justiça de Deus, pois a
identidade de condições para o bom e para o mau seria a negação dessa justiça.
E não sendo eterno, nem por isso o castigo deixa de ser temeroso, e tanto maior
será o temor quanto maior a convicção. Esta, por sua vez, tanto mais profunda
será, quanto mais racional a procedência do castigo. Uma penalidade, em que se
não crê, não pode ser um freio, e a eternidade das penas está nesse caso. A
crença nessa penalidade, já o afirmamos, teve a sua utilidade, a sua razão de
ser em dada época; hoje, não somente deixa de impressionar os ânimos, mas até
produz descrentes. Antes de a preconizar como necessidade, fora mister
demonstrar a sua realidade. Seria preciso, além disso, inferir a sua eficácia
relativamente aos que a preconizam e se esforçam por demonstrá-la. E,
desgraçadamente, entre esses, muitos provam pelos atos que nada temem das penas
eternas. Assim, impotente para reprimir os próprios, que império poderá exercer
sobre os descrentes e refratários? Impossibilidade material das penas eternas
18. Até aqui, só temos combatido o dogma das penas eternas com o raciocínio.
Demonstremo-lo agora em contradição com os fatos positivos que observamos,
provando-lhe a impossibilidade. Por este dogma a sorte das almas,
irrevogavelmente fixada depois da morte, é, como tal, um travão definitivo
aplicado ao progresso. Ora, a alma progride ou não? Eis a questão: Se progride,
a eternidade das penas é impossível. E poder-se-á duvidar desse progresso,
vendo a variedade enorme de aptidões morais e intelectuais existentes sobre a
Terra, desde o selvagem ao homem civilizado, aferindo a diferença apresentada
por um povo de um a outro século? Se se admite não ser das mesmas almas, é
força admitir que Deus criou almas em todos os graus de adiantamento, segundo
os tempos e lugares, favorecendo umas e destinando outras à perpétua
inferioridade — o que seria incompatível com a justiça, que, aliás, deve ser
igual para todas as criaturas. 19. É incontestável que a alma atrasada moral e
intelectualmente, como a dos povos bárbaros, não pode ter os mesmos elementos
de felicidade, as mesmas aptidões para gozar dos esplendores do Infinito, como
a alma cujas faculdades estão largamente desenvolvidas. Se, portanto, estas
almas não progredirem, não podem em condições mais favoráveis gozar na
eternidade senão de uma felicidade, por assim dizer, negativa. Para estar de
acordo com a rigorosa justiça, chegaremos, pois, à conclusão de que as almas
mais adiantadas são as atrasadas de outro tempo, com progressos posteriormente
realizados. Aqui, então, atingimos a questão magna da pluralidade das
existências como meio único e racional de resolver a dificuldade. Façamos
abstração, porém, dessa questão e consideremos a alma sob o ponto de vista de
uma única existência. 20. Figuremos um rapaz de 20 anos, desses que comumente
se encontram, ignorante, viciado por índole, cético, negando-se a sua alma e a
Deus, entregue à desordem e cometendo toda sorte de malvadeza. Esse rapaz
encontra-se, depois, num meio favorável, melhor; trabalha, instrui-se,
corrige-se gradualmente e acaba por tornar-se crente e piedoso. Eis aí um
exemplo palpável do progresso da alma durante a vida, exemplo que se reproduz
todos os dias. Esse homem morre em avançada idade, como um santo, e
naturalmente certa se lhe torna a salvação; mas qual seria a sua sorte se um
acidente lhe pusesse termo à existência, trinta ou quarenta anos mais cedo? Ele
estava nas condições exigidas para ser condenado, e, se o fosse, todo o
progresso se lhe tornaria impossível. E assim, segundo a doutrina das penas
eternas, teremos um homem salvo somente pela circunstância de viver mais tempo,
circunstância, aliás, fragilíssima, uma vez que um acidente qualquer poderia
tê-la anulado fortuitamente. Desde que sua alma pôde progredir em um tempo
dado, por que razão não mais poderia progredir depois da morte, se uma causa
alheia à sua vontade a tivesse impedido de fazê-lo durante a vida? Por que lhe
recusaria Deus os meios de regenerar-se na outra vida, concedendo-lhes nesta?
Neste caso, o arrependimento veio, posto que tardio, mas se desde o momento da
morte se impusesse irrevogável condenação, esse arrependimento seria
infrutífero por todo o sempre, como destruídas seriam as aptidões dessa alma
para o progresso, para o bem. 21. O dogma da eternidade absoluta das penas é,
portanto, incompatível com o progresso das almas, ao qual opõe uma barreira
insuperável. Esses dois princípios destroem-se, e a condição indeclinável da
existência de um é o aniquilamento do outro. Qual dos dois existe de fato? A
lei do progresso é evidente: não é uma teoria, é um fato corroborado pela
experiência: é uma Lei da natureza, divina, imprescritível. E, pois, que esta
lei existe inconciliável com a outra, é porque a outra não existe. Se o dogma
das penas eternas existisse verdadeiramente, Santo Agostinho (354-430), Paulo e
tantos outros jamais teriam visto o Céu, caso morressem antes de realizar o
progresso que lhes trouxe a conversão. A esta última asserção respondem que a
conversão dessas santas personagens não é um resultado do progresso da alma,
porém, da graça que lhes foi concedida e de que foram tocadas. Porém, isto é
simples jogo de palavras. Se esses santos praticaram o mal e depois o bem, é
que melhoraram; logo, progrediram. E por que lhes teria Deus concedido como
especial favor a graça de se corrigirem? Sim, por que a eles, e não a outros?
Sempre, sempre a doutrina dos privilégios, incompatível com a Justiça de Deus e
com seu igual amor por todas as criaturas. Segundo a Doutrina Espírita, de
acordo mesmo com as palavras do Evangelho, com a lógica e com a mais rigorosa justiça,
o homem só merece por suas obras, durante esta vida e depois da morte, nada
devendo ao favoritismo: Deus o recompensa pelos esforços e pune pela
negligência, isto por tanto tempo quanto nela persistir. 22. A crença na
eternidade das penas prevaleceu salutarmente enquanto os homens não tiveram ao
seu alcance a compreensão do poder moral. É o que sucede com as crianças
durante certo tempo contidas pela ameaça de seres quiméricos com os quais são
intimidadas; chegadas ao período do raciocínio, repelem por si mesmas essas
quimeras da infância, tornando-se absurdo o querer governá-las por tais meios.
Se os que as dirigem pretendessem incutir-lhes ainda a veracidade de tais
fábulas, certo decairiam da sua confiança. É isso que se dá hoje com a
humanidade, saindo da infância e abandonando, por assim dizer, os cueiros. O
homem não é mais passivo instrumento vergado à força material, nem o ente
crédulo de outrora que tudo aceitava de olhos fechados. 23. A crença é um ato
de entendimento que, por isso mesmo, não pode ser imposta. Se, durante certo
período da humanidade, o dogma da eternidade das penas se manteve inofensivo e
benéfico mesmo, chegou o momento de tornar-se perigoso. Imposto como verdade
absoluta, quando a razão o repele, ou o homem quer acreditar e procura uma
crença mais racional, afastando-se dos que o professam, ou, então, descrê
absolutamente de tudo. Quem quer que estude o assunto, calmamente, verá que, em
nossos dias, o dogma da eternidade das penas tem feito mais ateus e
materialistas do que todos os filósofos. As ideias seguem um curso
incessantemente progressivo, e absurdo é querer governar os homens desviando-os
desse curso; pretender contê-los, retroceder ou simplesmente parar enquanto o
curso avança, é condenar e perder os homens. Seguir ou deixar de seguir essa
evolução é uma questão de vida ou de morte para as religiões como para os
governos. Este fatalismo é um bem ou um mal? Para os que vivem do passado,
vendo-o aniquilar-se, será um mal, mas para os que vivem pelo futuro é uma lei
do progresso, de Deus em suma. E contra uma Lei de Deus é inútil toda revolta,
impossível a luta. Para que, pois, sustentar a todo o transe uma crença que se
dissolve em desuso, fazendo mais danos que benefícios à Religião? Ah! contrista
dizê-lo, mas uma questão material domina aqui a questão religiosa. Esta crença
tem sido grandemente explorada pela ideia de que com dinheiro se abrem as
portas do Céu, livrando das do inferno. As quantias por estes meios
arrecadadas, outrora e ainda hoje, são incalculáveis, e verdadeiramente
fabuloso o imposto prévio pago ao temor da eternidade. E sendo facultativo tal
imposto, a renda é sempre proporcional à crença; extinta esta, improdutivo será
aquele. De bom grado cede a criança o bolo a quem lhe promete afugentar o
lobisomem, mas se a criança já não acreditar em lobisomens, guardará o bolo.
24. A Nova Revelação, dando noções mais sensatas da vida futura e provando que
podemos, cada um de nós, promover a felicidade pelas próprias obras, deve
encontrar tremenda oposição, tanto mais viva por estancar uma das mais rendosas
fontes de receita. E assim tem sido, sempre que uma nova descoberta ou invento
abala costumes inveterados e preestabelecidos. Quem vive de antigos e custosos
costumes sempre os defendem, alegando a superioridade e excelência deles, e
assim desabonam as novidades, por melhores que sejam. Acreditar-se, por
exemplo, que a imprensa, apesar dos benefícios prestados à sociedade, tenha
sido aclamada pela classe dos copistas? Não, certamente eles deveriam
profligá-la. O mesmo se tem dado em relação a maquinismos, caminho de ferro e
centenárias de outras descobertas e aplicações. Aos olhos dos incrédulos o
dogma da eternidade das penas afigura-se futilidade da qual se riem; para o
filósofo esse dogma tem uma gravidade social pelos abusos que acoroçoa, ao
passo que o homem verdadeiramente religioso tem a dignidade da Religião
interessada na destruição dos abusos que tal dogma origina, e da sua causa,
enfim. Ezequiel contra a eternidade das penas e o pecado original. A quem
pretenda encontrar na Bíblia a justificação da eternidade das penas, pode-se
opor os textos contrários que a tal respeito não comportam ambiguidades. As
seguintes palavras de Ezequiel são a mais explícita negação, não somente das
penas irremissíveis, mas da responsabilidade que o pecado do pai do gênero
humano acarretasse à sua raça: 1. O Senhor novamente me falou e disse: — 2.
Donde vem o uso desta parábola entre vós e consagrada proverbialmente em
Israel: Os pais, dizeis, comeram uvas verdes, e os dentes dos filhos ficaram
estragados? — 3. Por mim juro, disse o Senhor Deus, que essa parábola não
passará mais entre vós, como provérbio em Israel: — 4. Pois todas as almas me
pertencem; a do filho está comigo como a do pai; a alma que tiver pecado morrerá
ela própria. 5. Se um homem for justo. 6. Se proceder segundo a equidade e a
justiça; — 7. Se não magoar nem oprimir ninguém; se entregar ao seu devedor o
penhor que este lhe houver dado; se não tomar nada do bem de outrem por
violência; se dá o seu pão a quem tem fome; se veste os que estão nus; — 8. Se
não se presta à usura e não percebe mais do que tem dado; se desvia sua mão da
iniquidade e promove um juízo conciliatório entre dois que contendem; — 9. Se
caminha segundo a pauta dos meus preceitos e observa as minhas ordens para
obrar conforme a verdade, esse homem é justo e viverá mui certamente, disse o
Senhor Deus. Se esse homem tem um filho que dê em ladrão, e derrame sangue, ou
que cometa algumas destas faltas; — 13. Esse filho morrerá mui certamente, pois
tem praticado todas essas ações detestáveis, e seu sangue permanecerá sobre a
terra. 14. Se esse homem tem um filho que, vendo todos os crimes por seu pai
cometidos, se aterrorize e evite imitá-lo; — 17. Este não morrerá por causa da
iniquidade de seu pai, mas viverá mui certamente. — 18. Seu pai, que tinha
oprimido os outros por calúnias e que tinha praticado ações criminosas no meio
do seu povo, morreu por causa da sua própria iniquidade. 19. Se dizes: Por que
o filho não tem suportado a iniquidade de seu pai? É porque o filho tem obrado
segundo a equidade e a justiça; tem guardado todos os meus preceitos; e porque
os tem praticado viverá mui certamente. 20. A alma que tem pecado morrerá ela
mesma: o filho não sofrerá pela iniquidade do pai e o pai não sofrerá pela
iniquidade do filho; a justiça do justo verterá sobre ele mesmo, a impiedade do
ímpio verterá sobre ele. 21. Se o ímpio fez penitência de todos os pecados que
tem cometido, se observou todos os meus preceitos, se obra segundo a equidade e
a justiça, ele viverá certamente e não morrerá. — 22. Eu não me lembrarei mais
de todas as iniquidades que ele tenha cometido; viverá nas obras de justiça que
houver praticado. 23. É que Eu quero a morte do ímpio? — disse o Senhor Deus —,
e não quero antes que se converta e desgarre do mau caminho que trilha?
(Ezequiel 18) Dizei-lhes estas palavras: Eu juro por mim mesmo que não quero a
morte do ímpio, mas que o ímpio se converta, que abandone o mau caminho e que
viva. (Ezequiel 33,11). www.febnet.org.br.
Livro O Céu e o Inferno. Abraço. Davi
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