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Texto de Allan Kardec (1804-1869). Livro O Céu e o Inferno. Primeira Parte. Capítulo 1. O
PORVIR E O NADA. Vivemos pensamos e operamos — eis o que é positivo;
e que morremos, não é menos certo. Mas, deixando a Terra, para onde vamos? Que
seremos após a morte? Estaremos melhor ou pior? Existiremos ou não? Ser ou não
ser, tal a alternativa. Para sempre ou para nunca mais; ou tudo ou nada: Viveremos
eternamente ou tudo se aniquilará de vez? É uma tese, essa, que se impõe. Todo
homem experimenta a necessidade de viver, de gozar, de amar e ser feliz. Dizei
ao moribundo que ele viverá ainda; que a sua hora é retardada; dizei-lhe
sobretudo que será mais feliz do que porventura o tenha sido, e o seu coração
rejubilará. De que serviriam, então, essas aspirações de felicidade, se um leve
sopro pudesse dissipá-las? Haverá algo de mais desesperador do que esse
pensamento da destruição absoluta? Afeições caras, inteligência, progresso,
saber laboriosamente adquiridos, tudo despedaçado, tudo perdido! De nada nos
serviria, portanto, qualquer esforço na repressão das paixões, de fadiga para
nos ilustrarmos, de devotamento à causa do progresso, desde que de tudo isso
nada aproveitássemos, predominando o pensamento de que amanhã mesmo, talvez, de
nada nos serviria tudo isso. Se assim fora, a sorte do homem seria cem vezes
pior que a do bruto, porque este vive inteiramente do presente na satisfação
dos seus apetites materiais, sem aspiração para o futuro. Diz-nos uma secreta
intuição, porém, que isso não é possível. Pela crença em o nada, o homem
concentra todos os seus pensamentos, forçosamente, na vida presente.
Logicamente não se explicaria a preocupação de um futuro que se não espera.
Esta preocupação exclusiva do presente conduz o homem a pensar em si, de
preferência a tudo: é, pois, o mais poderoso estímulo ao egoísmo, e o incrédulo
é consequente quando chega à seguinte conclusão: Gozemos enquanto aqui estamos;
gozemos o mais possível, pois que conosco tudo se acaba; gozemos depressa,
porque não sabemos por quanto tempo existiremos. Ainda consequente é esta outra
conclusão, aliás mais grave para a sociedade: Gozemos apesar de tudo, gozemos
de qualquer modo, cada qual por si; a felicidade neste mundo é do mais astuto.
E se o respeito humano contém a alguns seres, que freio haverá para os que nada
temem? Acreditam estes últimos que as leis humanas não atingem senão os ineptos
e assim empregam todo o seu engenho no melhor meio de a elas se esquivarem. Se
há doutrina insensata e antissocial, é, seguramente, o niilismo que rompe os
verdadeiros laços de solidariedade e fraternidade, em que se fundam as relações
sociais. Suponhamos que, por uma circunstância qualquer, todo um povo adquire a
certeza de que em oito dias, num mês, ou num ano será aniquilado; que nem um só
indivíduo lhe sobreviverá, como de sua existência não sobreviverá nem um só
traço: Que fará esse povo condenado, aguardando o extermínio? Trabalhará pela
causa do seu progresso, da sua instrução? Entregar-se-á ao trabalho para viver?
Respeitará os direitos, os bens, a vida do seu semelhante? Submeter-se-á a
qualquer lei ou autoridade por mais legítima que seja, mesmo a paterna? Haverá
para ele, nessa emergência, qualquer dever? Certo que não. Pois bem! O que se
não dá coletivamente, a doutrina do niilismo realiza todos os dias
isoladamente, individualmente. E se as consequências não são desastrosas tanto
quanto poderiam ser, é, em primeiro lugar, porque na maioria dos incrédulos há
mais jactância que verdadeira incredulidade, mais dúvida que convicção —
possuindo eles mais medo do nada do que pretendem aparentar — o qualificativo
de espíritos fortes lisonjeia a vaidade e o amor-próprio; em segundo lugar, porque
os incrédulos absolutos se contam por ínfima minoria, e sofrem, malgrado eles,
a ascendência da opinião contrária e são mantidos por uma força material. Se um
dia, porém, a incredulidade absoluta chegar a ser o pensamento da maioria, aí
então a sociedade se dissolverá. Eis ao que tende a propagação da doutrina
niilista. Fossem, porém, quais fossem as suas consequências, uma vez que se
impusesse como verdadeira, seria preciso aceitá-la, e nem sistemas contrários,
nem a ideia dos males resultantes poderiam obstar-lhe a existência. Forçoso é
dizer que, a despeito dos melhores esforços da Religião, o ceticismo, a dúvida,
a indiferença ganha terreno dia a dia. Se a Religião se mostra impotente para
sustar a incredulidade, é que lhe falta alguma coisa na luta. Se por outro lado
a Religião se condenasse à imobilidade, estaria, em dado tempo, dissolvida. O
que lhe falta neste século de positivismo, em que se procura compreender antes
de crer, é, sem dúvida, a sanção de suas doutrinas por fatos positivos, assim como
a concordância das mesmas com os dados positivos da Ciência. Dizendo ela ser
branco o que os fatos dizem ser negro, é preciso optar entre a evidência e a fé
cega. É nestas circunstâncias que o Espiritismo vem opor um dique à difusão da
incredulidade, não somente pelo raciocínio, não somente pela perspectiva dos
perigos que ela acarreta, mas pelos fatos materiais, tornando visíveis e
tangíveis a alma e a vida futura. Todos somos livres na escolha das nossas
crenças; podemos crer em alguma coisa ou em nada crer, mas aqueles que procuram
fazer prevalecer no espírito das massas, da juventude principalmente, a
negação. Um moço de 18 anos, afetado de uma enfermidade do coração, foi
declarado incurável. A Ciência havia dito: “Pode morrer dentro de oito dias ou
de dois anos, mas não irá além”. Sabendo-o, o moço para logo abandonou os
estudos e entregou-se a excessos de todo o gênero. Quando se lhe ponderava o
perigo de uma vida desregrada, respondia: “Que me importa, se não tenho mais de
dois anos de vida? De que me serviria fatigar o espírito? Gozo o pouco que me
resta e quero divertir-me até o fim”. — Eis a consequência lógica do niilismo.
Se este moço fora espírita, teria dito: “A morte só destruirá o corpo, que
deixarei como fato usado, mas o meu Espírito viverá. Serei na vida futura
aquilo que eu próprio houver feito de mim nesta vida; do que nela puder
adquirir em qualidades morais e intelectuais nada perderei, porque será outro
tanto de ganho para o meu adiantamento; toda a imperfeição de que me livrar
será um passo a mais para a felicidade. A minha felicidade ou infelicidade
depende da utilidade ou inutilidade da presente existência. É portanto de meu
interesse aproveitar o pouco tempo que me resta, e evitar tudo o que possa
diminuir-me as forças.” Qual destas doutrinas é preferível? apoiando-se na
autoridade do seu saber e no ascendente da sua posição, semeiam na sociedade
germens de perturbação e dissolução, incorrendo em grande responsabilidade. Há
uma doutrina que se defende da pecha de materialista porque admite a existência
de um princípio inteligente fora da matéria: é a da absorção no Todo Universal.
Segundo esta doutrina, cada indivíduo assimila ao nascer uma parcela desse
princípio, que constitui sua alma, e dá-lhe vida, inteligência e sentimento. Pela
morte, esta alma volta ao foco comum e perde-se no infinito, qual gota d’água
no oceano. Incontestavelmente esta doutrina é um passo adiantado sobre o puro
materialismo, visto como admite alguma coisa, quando este nada admite. As
consequências, porém, são exatamente as mesmas. Ser o homem imerso em o nada ou
no reservatório comum, é para ele a mesma coisa; aniquilado ou perdendo a sua
individualidade, é como se não existisse; as relações sociais nem por isso
deixam de romper-se, e para sempre. O que lhe é essencial é a conservação do
seu eu; sem este, que lhe importa ou não subsistir? O futuro afigura-se sempre
nulo, e a vida presente é a única coisa que o interessa e preocupa. Sob o ponto
de vista das consequências morais, esta doutrina é, pois, tão insensata, tão
desesperadora, tão subversiva como o materialismo propriamente dito. Pode-se,
além disso, fazer esta objeção: todas as gotas d’água tomadas ao oceano se
assemelham e possuem idênticas propriedades como partes de um mesmo todo; por
que, pois, as almas tomadas ao grande oceano da inteligência universal tão
pouco se assemelham? Por que o gênio e a estupidez, as mais sublimes virtudes e
os vícios mais ignóbeis? Por que a bondade, a doçura, a mansuetude ao lado da
maldade, da crueldade, da barbaria? Como podem ser tão diferentes entre si as
partes de um mesmo todo homogêneo? Dir-se-á que é a educação que a modifica?
Neste caso donde vêm as qualidades inatas, as inteligências precoces, os bons e
maus instintos independentes de toda a educação e tantas vezes em desarmonia
com o meio no qual se desenvolvem? Não resta dúvida de que a educação modifica
as qualidades intelectuais e morais da alma, mas aqui ocorre uma outra
dificuldade: Quem dá a esta a educação para fazê-la progredir? Outras almas que
por sua origem comum não devem ser mais adiantadas. Além disso, reentrando a
alma no Todo Universal donde saiu, e havendo progredido durante a vida,
leva-lhe um elemento mais perfeito. Daí se infere que esse Todo se encontraria,
pela continuação, profundamente modificado e melhorado. Assim, como se explica
saírem incessantemente desse Todo almas ignorantes e perversas? Nesta doutrina,
a fonte universal de inteligência que abastece as almas humanas é independente
da Divindade; não é precisamente o panteísmo. O panteísmo propriamente dito
considera o princípio universal de vida e de inteligência como constituindo a
Divindade. Deus é concomitantemente Espírito e matéria; todos os seres, todos
os corpos da natureza compõem a Divindade, da qual são as moléculas e os elementos
constitutivos; Deus é o conjunto de todas as inteligências reunidas; cada
indivíduo, sendo uma parte do todo, é Deus ele próprio; nenhum ser superior e
independente rege o conjunto; o universo é uma imensa república sem chefe, ou
antes, onde cada qual é chefe com poder absoluto. A este sistema podem opor-se
inumeráveis objeções, das quais são estas as principais: não se podendo
conceber divindade sem infinita perfeição, pergunta-se como um todo perfeito
pode ser formado de partes tão imperfeitas, tendo necessidade de progredir?
Devendo cada parte ser submetida à lei do progresso, força é convir que o
próprio Deus deve progredir; e se Ele progride constantemente, deveria ter
sido, na origem dos tempos, muito imperfeito. E como pôde um ser imperfeito, formado
de ideias tão divergentes, conceber leis tão harmônicas, tão admiráveis de
unidade, de sabedoria e previdência quais as que regem o universo? Se todas as
almas são porções da Divindade, todos concorreram para as Leis da natureza;
como sucede, pois, que elas murmurem sem cessar contra essas leis que são obra
sua? Uma teoria não pode ser aceita como verdadeira senão com a condição de
satisfazer a razão e dar conta de todos os fatos que abrange; se um só fato lhe
trouxer um desmentido, é que não contém a verdade absoluta. Sob o ponto de
vista moral, as consequências são igualmente ilógicas. Em primeiro lugar é para
as almas, tal como no sistema precedente, a absorção num todo e a perda da
individualidade. Dado que se admita, consoante a opinião de alguns panteístas,
que as almas conservem essa individualidade, Deus deixaria de ter vontade única
para ser um composto de miríades de vontades divergentes. Além disso, sendo
cada alma parte integrante da Divindade, deixa de ser dominada por um poder
superior; não incorre em responsabilidade por seus atos bons ou maus; soberana,
não tendo interesse algum na prática do bem, ela pode praticar o mal
impunemente. Ademais, estes sistemas não satisfazem nem a razão nem a aspiração
humanas; deles decorrem dificuldades insuperáveis, pois são impotentes para
resolver todas as questões de fato que suscitam. O homem tem, pois, três
alternativas: o nada, a absorção ou a individualidade da alma antes e depois da
morte. É para esta última crença que a lógica nos impele irresistivelmente,
crença que tem formado a base de todas as religiões desde que o mundo existe. E
se a lógica nos conduz à individualidade da alma, também nos aponta esta outra
consequência: a sorte de cada alma deve depender das suas qualidades pessoais,
pois seria irracional admitir que a alma atrasada do selvagem, como a do homem
perverso, estivesse no nível da do sábio, do homem de bem. Segundo os
princípios de justiça, as almas devem ter a responsabilidade dos seus atos, mas
para haver essa responsabilidade, preciso é que elas sejam livres na escolha do
bem e do mal; sem o livre-arbítrio há fatalidade, e com a fatalidade não
coexistiria a responsabilidade. Todas as religiões admitiram igualmente o
princípio da felicidade ou infelicidade da alma após a morte, ou, por outra, as
penas e gozos futuros, que se resumem na doutrina do Céu e do inferno
encontrada em toda parte. No que elas diferem essencialmente, é quanto à
natureza dessas penas e gozos, principalmente sobre as condições determinantes
de umas e de outras. Daí os pontos de fé contraditórios dando origem a cultos
diferentes, e os deveres impostos por estes, consecutivamente, para honrar a
Deus e alcançar por esse meio o Céu, evitando o inferno. Todas as religiões
houveram de ser em sua origem relativas ao grau de adiantamento moral e
intelectual dos homens: estes, assaz materializados para compreenderem o mérito
das coisas puramente espirituais, fizeram consistir a maior parte dos deveres
religiosos no cumprimento de fórmulas exteriores. Por muito tempo essas
fórmulas lhes satisfizeram a razão; porém, mais tarde, porque se fizesse a luz
em seu espírito, sentindo o vácuo dessas fórmulas, uma vez que a Religião não o
preenchia, abandonaram-na e tornaram-se filósofos. Se a Religião, apropriada em
começo aos conhecimentos limitados do homem, tivesse acompanhado sempre o
movimento progressivo do espírito humano, não haveria incrédulos, porque está
na própria natureza do homem a necessidade de crer, e ele crerá desde que se
lhe dê o pábulo espiritual de harmonia com as suas necessidades intelectuais. O
homem quer saber donde veio e para onde vai. Mostrando-se um fim que não
corresponde às suas aspirações nem à ideia que ele faz de Deus, tampouco aos
dados positivos que lhe fornece a Ciência; impondo-se, ademais, para atingir o
seu desiderato, condições cuja utilidade sua razão contesta, ele tudo rejeita;
o materialismo e o panteísmo parecem-lhe mais racionais, porque com eles ao
menos se raciocina e se discute, falsamente embora. E há razão, porque antes
raciocinar em falso do que não raciocinar absolutamente. Apresente-se, porém,
um futuro condicionalmente lógico, digno em tudo da grandeza, da justiça e da
infinita bondade de Deus, e ele repudiará o materialismo e o panteísmo, cujo
vácuo sente em seu foro íntimo, e que aceitará à falta de melhor crença. O
Espiritismo dá coisa melhor; eis por que é acolhido pressurosamente por todos
os atormentados da dúvida, os que não encontram nem nas crenças nem nas
filosofias vulgares o que procuram. O Espiritismo tem por si a lógica do
raciocínio e a sanção dos fatos, e é por isso que inutilmente o têm combatido.
14. Instintivamente tem o homem a crença no futuro, mas não possuindo até agora
nenhuma base certa para defini-lo, a sua imaginação fantasiou os sistemas que
originaram a diversidade de crenças. A Doutrina Espírita sobre o futuro — não
sendo uma obra de imaginação mais ou menos arquitetada engenhosamente, porém o
resultado da observação de fatos materiais que se desdobram hoje à nossa vista
— congraçará, como já está acontecendo, as opiniões divergentes ou flutuantes e
trará gradualmente, pela força das coisas, a unidade de crenças sobre esse
ponto, não já baseada em simples hipótese, mas na certeza. A unificação feita
relativamente à sorte futura das almas será o primeiro ponto de contato dos
diversos cultos, um passo imenso para a tolerância religiosa em primeiro lugar
e, mais tarde, para a completa fusão. www.febnet.org.br. Livro O Céu e o Inferno. Abraço. Dai
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