quinta-feira, 4 de outubro de 2018

I. ALMA CRISTÃ VERSUS ALMA BUDISTA


Budismo. www.rodadalei.com.br. I. ALMA CRISTÃ VERSUS ALMA BUDISTA. O mundo visto por um cristão tomista é completamente diferente do mundo visto por um budista Tiantai. As concepções metafísicas são bastante divergentes. Para São Tomás de Aquino (1225–1274), cada animal ou vegetal possui uma alma individualizada, enquanto a tradição budista entende que todos os entes são insubstanciais, ou seja, apenas produtos de relações causais e vivificados por uma mesma “alma”. O budismo Tiantai, fundado pelo mestre Zhiyi (538-597), é anatman (sct), isto é, não acredita em uma alma nos moldes cristãos. Esta religião explica o movimento e a vida dos seres a partir de um outro paradigma, sintetizado na expressão sânscrita Tathagatagarbha. Apesar de algumas implicações éticas semelhantes, questões como a existência da vida e o papel do homem na natureza são bastante incompatíveis entre as teologias tomista e budista. Para cumprir o objetivo desta postagem, antes de realizar o estudo comparativo propriamente dito entre as concepções de alma, é preciso, primeiramente, desenvolver alguns raciocínios a fim de se justificar a importância deste trabalho e fundamentar por meio de ampla bibliografia o que Tomás entende por alma e o que a Escola Tiantai entende por Tathagatagarbha. Com base nesta didática o trabalho se estrutura da seguinte maneira: Para deixar bastante claro a relevância em se estudar a alma, a primeira seção do trabalho se baseia nos argumentos de Aristóteles defendidos na obra “De Anima”. A segunda seção apresenta a definição de alma cristã de acordo com a obra de Aquino chamada “A Imortalidade da alma & a Razão Superior e Inferior”. Já a terceira seção descreve como o budismo explica o movimento e a vida segundo a concepção de Tathagatagarbha. E, fundamentando-se nas três seções desenvolvidas, a quarta, e principal seção, coloca frente a frente o Anima do cristianismo com o Tathagatagarbha. Finalmente, o artigo apresenta suas conclusões e ainda um glossário para leitores pouco familiarizados com o vocabulário budista. A RELEVÂNCIA EM SE ESTUDAR A ALMA. Devido ao fato de que há uma longa tradição que defende que a alma não é algo detectável aos sentidos, a maioria das pessoas considera ser improdutivo refletir sobre este tema. Muitos, principalmente os céticos, julgam qualquer pensamento que transcenda a física como apenas fruto de conjecturas e abstração, classificando esse tipo de conhecimento como vão. Há ainda aqueles que defendem que o assunto está somente vinculado à espiritualidade ou à religião e que tudo a respeito da Alma só pode ser aceito por meio de fé ou superstição e nunca por uma via demonstrativa ou filosófica. Estes pontos de vista podem ser desconstruídos se analisarmos a história da filosofia e do pensamento, tanto no Ocidente, quanto no Oriente. No Oriente as maiores contribuições com respeito a alma são oriundas da metafísica das “religiões” locais, a exemplo do brahmanismo (hinduísmo), islamismo e o budismo. Segundo o budismo, como será visto com mais detalhes no decorrer deste trabalho, a alma é única em todo o universo; uma “substância coletiva” ao estilo “Deus de Spinoza”, que foi interpretada equivocadamente como panteísmo pelos modernos. Para o budista, em suma, há uma relação entre alma e corpo, elas não são a mesma coisa, mas também não são separadas. (GUÉNON, 2014). “Eu não ensino que exista algo chamado velhice e morte e que há alguém a quem eles pertençam. Se alguém sustenta a visão de que jiva (princípio da vida, alma) é idêntico ao corpo, em tal caso não há vida santa. Se alguém sustenta a visão de que jiva é uma coisa e o corpo é outra, nesse caso então a vida santa é impossível”. Samyutta Nikaya, XII, 35 (BEISERT e MAIA, 2013). Do pensamento Grego à modernidade, é possível encontrar muitos pensadores ocidentais que se esforçaram em definir a alma e de, inclusive, classificá-la quanto a suas características e atributos. Aristóteles, na segunda parte do livro I do “de Anima” (ARISTÓTELES, 2010), enumera vários filósofos ocidentais que procuraram desenvolver o conceito de alma, apontando contradições e tentando, a partir do que já havia sido dito sobre o tema, construir seus argumentos. De modo avesso ao entendimento oriental de que há uma “única alma”, uma parte considerável dos pensadores ocidentais costumava classificar os entes como constituídos de almas distintas, isto é, uma para cada ser. Seja como for, essas tentativas em se conhecer a alma, buscavam basicamente um mesmo objetivo, que pode ser sintetizado pela afirmativa de Delfos: “Conhece-te a ti mesmo”. Todos esses pensadores, tanto orientais, quanto ocidentais, perceberam que parece existir algo universalmente responsável pela vida, pela propulsão do movimento e pelo constante devir da matéria sob diversas formas, pois de outro modo não existiriam os seres e tudo seria amorfo. A palavra animação deriva de anima, que é a alma; este “estopim da vida”, pelo seu caráter universal e, portanto, metafísico, não pode ser demonstrado matematicamente e não pode ser reproduzido experimentalmente ao bel prazer como um fenômeno natural qualquer, ou seja, não pode ser avaliado com certeza absoluta. Mesmo em meio a estas enormes incongruências, os filósofos não desistiram de abordar o assunto. Aristóteles afirmava, mesmo diante destas complicações, ser possível dizer algumas coisas sobre a alma e, ainda por cima, com um bom nível de certeza; segundo ele, refletir sobre os seres animados se faz necessário, é um princípio comum, e os resultados advindos dessa construção Metafísica podem contribuir para que o homem conheça melhor a vida que o circunda e também a si mesmo, fazendo valer, assim, a assertiva de Delfos. (ARISTÓTELES, 2010). A metafísica é essencialmente o conhecimento do universal, ou, dos princípios de ordem universal. É impossível dar uma definição melhor que esta, em razão dessa universalidade mesma que é sua primeira característica e aquela da qual derivam todas as outras. Na Realidade, só o que é limitado pode ser definido, e a metafísica é, ao contrário, na sua própria essência, absolutamente ilimitada. Os conhecimentos das ciências naturais estão limitados à experiência, enquanto que a metafísica é constituída por algo do qual não há nenhuma experiência: sendo “além da física”, não podendo estar, desta maneira, submissa a nenhum grau de mutabilidade e influência de épocas e lugares. O contingente, o acidental e o variável, são pertencentes ao domínio individual e apresentam-se em múltiplas modalidades, não são, portanto, universais. Quando se trata da Metafísica, o que se pode mudar com os tempos e os lugares são apenas os modos de exposição, ou seja, as formas mais ou menos exteriores com as quais a metafísica pode ser revestida e que são suscetíveis de diversas adaptações. Como já mencionado, a percepção da existência do atributo que dá movimento aos seres, isto é, que dá ânimo à vida, foi percebida tanto por pensadores ocidentais, que o chamaram de alma, por influência dos gregos e do cristianismo, quanto orientais, que a chamaram por outro nome (apesar das não poucas divergências quanto à natureza deste atributo, que serão estudadas mais adiante neste trabalho). Outro exemplo, seria a ideia presente na metafísica de que há uma Verdade absoluta: tantos filósofos da escolástica quanto pensadores das religiões tradicionais no oriente não entendiam a Verdade como algo relativo ou subjetivo. Em síntese, a metafísica, mesmo utilizando-se de expressões linguísticas que dependem de épocas e culturas, sempre permanece perfeitamente idêntica a si mesma, porque seu objeto é essencialmente uno e além de qualquer mudança. Como disse Henry Bergson (1859-1941), a Metafísica utiliza-se de palavras, mas é na realidade inexprimível, por comportar a Essência, é algo que cada um pode conceber somente por si mesmo, as palavras e símbolos servem simplesmente como ponto de apoio para a sua concepção. O pensador francês ainda afirmava que a real Metafísica transcende o discurso, e só pode ser apreendida por experiência própria, como por um insight ou intuição; discursos meramente conceituais não elevam os homens ao entendimento metafísico. A compreensão de uma doutrina metafísica será mais ou menos completa e profunda segundo a medida em que uma pessoa, méritocraticamente, a conceber efetivamente. A Metafísica não recorre a qualquer “meio externo” de investigação, mas sim por meio de introspecção e intelectualidade, e pode ser inteligível por homens de todas as épocas, contanto que estes busquem e amem a Verdade, colocando-a acima dos próprios desejos pessoais ou necessidades de consolação. A alma, como um conhecimento metafísico, tem esta característica universal. (BERGSON, 2006). Aristóteles (384 AC 322) difere o Intelecto da razão, o Intelecto é aquilo que possui imediatamente o conhecimento dos princípios. O pensador declara expressamente que “o Intelecto é mais verdadeiro que a ciência, isto é, que a razão constrói a ciência, mas que nada é mais verdadeiro que o Intelecto”, já que este é necessariamente infalível por sua operação ser imediata, praticamente intuitiva, e, não sendo realmente distinto de seu objeto, ele forma um só corpo com a própria Verdade. Tal é o fundamento essencial da certeza metafísica; vê-se por aí que o erro só pode ser introduzido pelo uso da razão, porque a razão, diferentemente do Intelecto, é falível por consequência de seu caráter discursivo e mediato. (GUÉNON, 2014). “Acontece que a doutrina da alma é como um compêndio de ciência das coisas humanas e divinas e prepara-nos para todo um outro conhecimento da Verdade. Mostra também o brilhante fruto desta contemplação aquilo que Santo Agostinho afirma, no livro 2 de A Ordem, capítulo 8º: Sem dúvida que há duas questões principais em filosofia; uma acerca da alma, outra acerca de Deus. A primeira, faz com que nos conheçamos a nós mesmos, a outra, que conheçamos a nossa origem. Aquela é-nos mais agradável, esta é mais gloriosa, aquela torna-nos dignos de uma vida feliz, esta torna-nos bem-aventurados”. (CONIMBRICENSE, 2010, p. 180). Estudar a alma é estudar a Essência dos fenômenos. Os fenômenos nada mais são do que acidentes ou consequências de uma causa primeira e hierarquicamente superior, que é a alma. No ser humano, a alma, segundo o discípulo de Platão, é aquilo que provê, além da vida e o movimento, os sentimentos e o intelecto; sendo que as funções intelectuais, ultrapassam a matéria e as condições do corpo. É a alma quem imprime a forma aos corpos: forma humana para os humanos, animal para os animais e vegetal para os vegetais, é ela quem define a espécie ao qual um ser pertence. O ser individual é encarado como um composto de dois elementos, matéria e forma; esses dois elementos são em suma a essência e a substância da individualidade. A forma não é exclusivamente a forma corporal, mas para além disso é também o conjunto inerente de potencialidades e características de um ser de uma determinada espécie. Logo, a alma domina o sensitivo e o material. Atos da vontade, por exemplo, amar e querer são considerados operações superiores, em ordem de importância, aos atos dos sentidos e do apetite e aqueles (os superiores) são capazes de controlar estes (os inferiores). É neste contexto que o “de Anima” elenca os assuntos filosóficos, da mesma maneira, em uma sequência hierárquica, ou seja, em graus de Nobreza. Os fenômenos “acidentais” e físicos, provenientes da matéria, seriam assuntos menos nobres do que assuntos Metafísicos: a “ciência” da Essência é mais Nobre que as demais ciências. Seguindo o mesmo pensamento, Aristóteles ainda elenca graus de dificuldade em se obter conhecimentos exatos e satisfatórios das “ciências”; quanto mais ligadas aos fenômenos naturais, à lógica “objetiva” e à percepção dos órgãos dos sentidos, mais fácil é obter um elevado grau de certeza, já quanto mais próximo um assunto for da Essência, maior será seu grau de dificuldade e de entendimento. Ou seja, Nobreza e facilidade de entendimento são inversamente proporcionais. (ARISTÓTELES, 2010). Ciente desses percalços inerentes a uma filosofia metafísica, o pensador grego arrisca-se em definir a alma e determinar o gênero a qual está pertence. Ao longo dos livros do “de Anima”, pergunta-se se a alma é uma substância, se pode ser classificada em termos de quantidade e qualidade, se pertence aos seres em potência ou se é um tipo de ato, se é divisível ou indivisível e se é igual em todos os seres. Procura compreender as funções da alma quanto a sua faculdade perceptiva, se o sensível vem antes do perceptível, se as afecções da alma precisam ou não do corpo, difere ainda tipos de movimentos (internos ou externos) e qual deles é oriundo da alma, quais são os efeitos da corrupção do corpo nas faculdades perceptíveis, se a alma é imortal, se pode subsistir separada da matéria, etc. Obviamente as conclusões alcançadas não tem caráter demonstrativo pelo próprio perfil do que está sendo estudado, contudo, são apresentados argumentos verossímeis, visando construir um sólido e estruturado conhecimento. (CONIMBRICENSE, 2010). Enfim, apesar de o tema alma não ter a mesma exatidão de outras áreas do conhecimento, é possível se obter, através de uma metafísica baseada na Intelectualidade, algumas certezas sobre o assunto. Os filósofos, tanto orientais quanto ocidentais, ao perceberem que havia um elo capaz de animar a matéria, movimentá-la e uni-la, gerando assim, entes; concluíram que a alma é um princípio de organização que não pode estar reduzido à matéria. Ou seja, a alma é um princípio imaterial. Aristóteles ensinava a existência de uma “hierarquia das ciências”: a “ciência da alma”, por seu perfil universal e metafísico, ganha o peso máximo de nobreza, pois está diretamente conectada ao ideal filosófico do “conhecer a si mesmo”; é um conhecimento útil, pois permite ao homem alcançar, de maneira mais eficiente, a Verdade. Por outro lado, afirma que quanto mais nobre um assunto for, maior é a dificuldade de compreensão, exigindo do estudioso maior poder de investigação e inteligência. Os céticos acusam a metafísica de ser somente fruto de abstrações e conjecturas que não garantem nenhuma certeza e que sem essa “exatidão mínima”, requerida para se construir uma argumentação “pé no chão”, não vale a pena debruçar-se sobre um determinado tema. Por sua vez, Aristóteles, assim como muitos outros filósofos das mais variadas culturas, mesmo admitindo as dificuldades em se fazer metafísica e apresentando a tese de que nem todo objeto apresenta o mesmo grau de inteligibilidade, defende a importância de se estudar todos os assuntos, inclusive os “além da física” e que este esforço é imprescindível na busca pela Verdade. A ALMA SEGUNDO TOMAS DE AQUINO. Neste capítulo será apresentado um breve histórico sobre Santo Tomás de Aquino e o que este teólogo entendia ser a alma, baseado na obra “A Imortalidade da alma & a Razão Superior e Inferior”. (TOMÁS DE AQUINO, 2017). TOMÁS DE AQUINO. Tomás de Aquino (1225-1274), conhecido como Doutor Angélico, filósofo e teólogo dominicano, escreveu diversas obras de enorme influência na teologia e na filosofia, principalmente na tradição conhecida como Escolástica. Entre suas mais importantes obras, contamos as famosas “Questões Disputadas”, fruto de uma metodologia original em que Aquino cerca um determinado tema comedidamente e profundamente com argumentos prós e contras, ponderando-os para finalmente emitir sua conclusão. A obra “A Imortalidade da alma & a Razão Superior e Inferior”, base para a exposição do pensamento de Aquino neste trabalho é dividido em 6 artigos que se utilizam do método das “Questões Disputadas”. A ALMA. Tomás de Aquino defende uma concepção cristã da alma. A alma, segundo ele, está presente em muitos entes, tanto em humanos quanto em animais e até vegetais (mas não está presente nos minerais). As almas dos animais e vegetais são as formas de seus corpos e desaparecem no processo de corrupção dos mesmos, porém, a alma humana é imortal, pois somente esta é capaz de inteligir, o que demanda operações não redutíveis à materialidade. A alma humana supostamente parece se encontrar no “meio termo” entre as criaturas corruptíveis e as incorruptíveis; alia-se ao incorruptível com respeito à intelecção e alia-se ao corruptível no corpo (matéria), pois a alma comanda o corpo. Pelo fato da alma ser a forma e imprimir movimento ao corpo, estando deste modo associada ao corruptível, muitos pensadores argumentavam que sua natureza fosse mortal tal como o corpo, contudo, para Aquino, o fato da alma inteligir coisas necessárias e perpétuas, como a própria verdade, os universais e os princípios e conclusões da ciência, parece manifesto que é incorruptível. Há então uma clara distinção entre almas, uma hierarquia. Os animais irracionais, por exemplo, só teriam o conhecimento sensitivo, não poderiam conhecer o ser e o bem, a não ser aqui e agora. Por outro lado, a alma humana intelige de modo absoluto o ser e o bem, pode, como já dito, inteligir universais, ou seja, fazer ciência. O desejo natural da alma humana é para o ser e o bem, não unicamente no momento presente, mas absolutamente e por todo o tempo. O objetivo último da alma humana é conhecer a causa primeira das coisas, isso fica evidenciado ao se perceber que os humanos, ignorantes das causas, ficam perplexos em face aos efeitos da natureza, e esta admiração os impulsiona a investigar as causas. Este desejo natural não se contenta até que encontre a causa de qualquer efeito, que tem por meta final encontrar a causa primeira (Deus). Esta causa primeira só pode ser apreendida em plenitude após a dissolução do corpo humano. Isso implica, segundo o teólogo, que a alma deve permanecer após a morte física, sendo, portanto, incorruptível. Enquanto as almas estão “ligadas” aos corpos, nesta vida, elas podem inteligir apenas parcialmente a causa primeira, pois a matéria é marcada pelo tempo, isto é, não é eterna. Depois da morte do corpo, a alma pode contemplar a causa primeira em um nível que agora não é possível (visão beatífica), mas essa contemplação nunca ocorre por esforço próprio, mas sim pela concessão de Deus; nenhum esforço humano conseguiria inteligir a essência da causa primeira, mesmo que parcialmente. O intelecto é algo que opera por si mesmo e não procede por nenhum órgão corpóreo, como acontece com os sentidos. Desta forma, o intelecto é algo subsistente por si mesmo e o que é subsistente por si mesmo e incorpóreo, necessariamente é incorruptível; consequentemente, resta que aquilo pelo qual o homem intelige, isto é, a alma, é totalmente incorruptível. (TOMÁS DE AQUINO, 2017). Esta noção de participação da alma com o divino já se encontrava no pensamento grego antigo e é resgatado por Tomás de Aquino em sua exposição sobre a concepção cristã da alma. Xenofonte, discípulo de Sócrates, assim afirmou em sua obra Memoráveis (IV, III): “Certamente a alma do homem participa, mais do que qualquer outra coisa humana, do divino”. (apud MONDOLFO, 1972, p. 97) e ainda na mesma obra (I, II): “o que o homem tem de maior e melhor, a alma, o Deus a infundiu”. (ídem). O mesmo Xenofonte (falecido em 354 AC) também entendia a alma como algo incorruptível, afirmando como se segue, no livro Ciropédia (VIII, VI): “Nunca pude persuadir-me de que a alma viva enquanto se acha em um corpo mortal e morra ao separar-se dele, pois vejo, em vez disso, que os corpos mortais têm vida durante o tempo em que a alma está neles. Nem de que a alma possa ficar privada do intelecto quando se separou do corpo que não tem intelecto; e nunca pude, também, persuadir-me disso, ao contrário, a razão exige que o espírito, sincero e puro, seja mais intelectual do que nunca, quando se separou [do corpo]”. (apud ibidem, p.97-98). A alma, por sua própria essência, é a forma do homem, e, ao se corromper o composto corpo-alma, pela separação da alma, esta permanece, não como forma daquele corpo, mas enquanto possui uma virtude formativa. Neste sentido, não há propriamente corrupção do homem, a não ser pela corrupção do corpo que se torna indisposto naturalmente para receber o ser da alma. Deve-se considerar que a imortalidade da alma é verdadeira, quanto à própria natureza da coisa, mas é relativa ao querer divino, que poderia fazer com que ela voltasse ao nada. Contudo, esta possibilidade nunca é concretizada, porque Deus, quando cria uma natureza, quer que ela seja de tal forma que mantém o que ela é – do contrário, entraria em contradição com o seu querer –, isto é, mantém constantemente a alma no ser, a partir da sua criação, na sua incorruptibilidade natural. A alma foi criada à imagem e semelhança de Deus. Se Deus é espírito e o espírito é imaterial, logo a natureza da alma humana também é espiritual. Portanto, a alma humana é imaterial, razão pela qual é incorruptível. A onisciência divina não anula sua onipotência nem sua vontade livre, razão pela qual Deus sabe o que criar e o que pode criar, mas só cria quando sua livre vontade assim o deseja. Por isso, nada impede que a alma humana, mesmo sendo criada, seja imortal, porque foi criada com natureza imortal, não sendo necessário que tenha existido desde sempre para justificar sua imortalidade. Outra característica importante apontada por Tomás de Aquino com respeito à alma é a divisão entre razão superior e inferior, distinção emprestada de Agostinho, que diz que ambas são uma só potência que se diferencia pelas suas funções. A superior é a que considera e delibera sobre as coisas eternas, enquanto a inferior pelas “coisas terrenas”. A razão superior está relacionada à sabedoria e a inferior às ciências e ao entendimento. A razão é uma potência da alma que discorre para a verdade e a sabedoria, a ciência e o entendimento são virtudes intelectuais, a ciência e o entendimento se distinguem da sabedoria porque aquelas se ocupam das “causas inferiores”, enquanto está se ocupa das primeiras causas. “[…] a mente humana só pode discorrer de um conhecimento para o outro, se o seu discurso iniciar por alguma aquisição simples da verdade, cuja aquisição é a intelecção dos primeiros princípios”. (TOMÁS DE AQUINO, 2017, p. 76). A razão humana, segundo Tomás só pode alcançar a verdade se partir de um “ponto referencial inato” colocado por Deus. A intelecção de algo ocorre em duas etapas, no princípio da razão, pela via da invenção e no término pela via do juízo. A invenção é a apreensão de um conhecimento que a razão atinge, quando se baseia nos primeiros princípios universais inatos do intelecto na investigação de fenômenos particulares, por cujo meio a razão atua no uso das coisas mais conhecidas para alcançar as desconhecidas. Por outro lado, o juízo atesta ou contradita no final as conclusões as quais a razão chegou, a partir da aplicação dos primeiros princípios do intelecto às realidades particulares sobre as quais a razão se pronuncia. Assim, por mais que o conhecimento da alma humana ocorra por meio da razão, há também nela, alguma participação daquele conhecimento que é encontrado nas substâncias superiores (seres que, segundo a fé cristã, são criaturas puramente intelectivas, sem composição material alguma). A alma intelectiva, então, é aquilo que nos diferencia dos demais entes. O homem para se realizar como ser deve buscar a reta razão; quando assim deseja viver, manifesta, como consequência, as virtudes. As virtudes podem se manifestar de duas formas na razão humana, de maneira teórica, quando se dá no campo da razão na busca pela verdade (entendimento, ciência e sabedoria) e de maneira prática, quando o homem, uma vez que compreendeu a verdade, age por meios justos e nobres para se chegar a determinado fim. No campo da razão teórica, o entendimento está ligado à percepção e esclarecimento dos princípios (por exemplo, o princípio de identidade, contradição, terceiro excluído, etc.), a ciência é tudo aquilo que valendo-se da razão, mediante procedimento rigoroso, sistemático e estável, descobre novos conhecimentos (via investigação) e a sabedoria é o coroamento de toda a atividade intelectual, é quando os laços são atados, ou seja, acontece a interligação do conhecimento adquirido nas “etapas” anteriores e há a busca pela causa primeira, aquilo para o qual a natureza humana se inclina. De outra parte, as virtudes práticas se manifestam no homem através de um exercício imposto e repetido (cultivado) pelo próprio homem que deseja incorporar estas virtudes como sua segunda natureza, manifestando-as como hábitos, com o intuito de suprimir seus vícios e agir ou até mesmo deixar de agir quando conveniente. Exemplos de virtudes práticas: coragem, caridade, justiça e temperança. Enfim, quando o homem decide viver segundo sua verdadeira natureza, isto é, como um ser cuja primazia deve ser o espiritual, procura adequar-se a uma hierarquia de bons valores. É neste ponto em que a alma e a ética se encontram e a definição de pecado nasce. Deus imprime na alma de todos os seres humanos o que Tomás costuma chamar de Lei Natural. O homem mau é aquele que, mesmo conhecendo o bem, uma vez que a Lei Natural também se encontra em sua razão superior, prefere o pecado. “[…] ainda que a razão superior esteja ordenada para aderir-se às coisas eternas, porém, nem sempre se adere a elas. E, assim, nela pode haver pecado”. (TOMÁS DE AQUINO, 2017, p. 114). Por outro lado, o homem bom deve manter-se atento ao estado de sua alma, se esta está em adequação ou não à Lei Natural, preocupando-se, assim, em purificar-se, libertar-se das paixões da carne e elevar-se espiritualmente segundo o fundamento de que é portador de uma alma de natureza divina e incorruptível. “[…] embora a razão superior não esteja imediatamente unidade à carne, a corrupção da sensualidade da carne lhe alcança, na medida em que as potências superiores a recebem das inferiores.” (ibidem, p. 134). Essa incorruptibilidade conduz-nos a um entendimento de que após a dissolução dos corpos há um destino futuro e imortal para nossas almas e que este futuro se realizará segundo o julgamento justo de Deus que salvará aqueles que buscarem a causa primeira e agirem conforme as virtudes da alma e, ainda que prefira a redenção ao castigo, condenará à morte eterna aqueles que preferirem viver conforme as inclinações do corpo. “E, assim, o desejo natural não descansa até que encontre a causa de qualquer efeito. Portanto, como o fim último é o que totalmente aquieta o desejo natural, é manifesto que no conhecimento da causa primeira está o fim último da alma humana. Por isso, fala-se em João 17,3: esta é a vida eterna etc. Ora, a alma humana não chega a este fim enquanto estiver unida ao corpo, pois, de outro modo, existiria em vão, como não podendo chegar ao fim próprio. Portanto, essas razões e outras semelhantes a esses são alguns dos sinais tomados da imortalidade”. (ibidem, p. 42). “[…] a noção de pecado mortal consiste em uma aversão a Deus. Ora, a aversão a Deus não é próprio da razão inferior, mas da superior, da qual também é próprio converter-se a Deus, pois os opostos pertencem a um mesmo”. (ibidem, p. 119). No âmbito social e temporal, a Lei Natural deu origem ao Direito Natural. O Direito Natural é aquilo que rege como se dá nossa relação de direitos e deveres com os demais para que se realize a justiça. A ideia do Direito Natural também é resgatada do pensamento grego antigo e foi adaptada ao cristianismo pelos teólogos ao longo da história da Igreja. Aquino também faz uso desta definição em seus trabalhos. O Direito Natural tornou-se um conceito central na civilização ocidental, sedimentando a ideia de que, simplesmente em virtude de ser um ser humano, eu possuo certos direitos que são inerentes à minha própria natureza, enquanto criatura racional, como o direito a não ser assassinado, a não ser expropriado, etc. A consolidação do direito natural no ocidente é, então, um avanço de significação não desprezível. Ao se estender essa ideia de direitos ao mundo inteiro, fica sugerido que todos os povos do mundo gozam dessa mesma dignidade fundamental. De acordo com o pensamento cristão, toda a humanidade merece os mesmos direitos porque são feitos à imagem e semelhança de Deus, uma vez que Deus também é espírito (alma) e por isso nós teríamos uma coparticipação neste tipo de natureza. Em suma, para o cristianismo, todos, identicamente, compartilham uma dignidade que exige o reconhecimento de direitos. (WOODS, 2008). CONCEPÇÃO DE ALMA SEGUNDO A ESCOLA BUDISTA TIANTAI. Antes de iniciar a discussão sobre a perspectiva de alma segundo a chinesa Escola Tiantai (conhecida como Tendai no Japão), se faz necessário compreender o que é esta escola e o que basicamente ela ensina. A ESCOLA TIANTAI. Depois da morte de Buda (Siddhartha Gautama) em meados de 500 AC, divergências entres os primeiros Budistas começaram a acontecer; este fato, intensificado pela expansão da religião pelos países asiáticos, cada qual com sua cultura bem característica, proporcionou, com o passar dos anos, uma intensa ramificação do Budismo em facções. Após a primeira grande divisão Mahayana e Hinayana, outras subdivisões foram ocorrendo, até termos atualmente centenas de denominações Budistas. Uma das linhagens que se destacou e muito influenciou o Budismo como um todo foi Tradição Mahayana Tendai, fundada na China no período Sui-Tang e posteriormente introduzida no Japão no período Heian. (YOSHINORI, 2006). FUNDADORES DA TRADIÇÃO TIANTAI. A Tradição do Budismo Tiantai, iniciou-se na China, mais especificamente no Monte Tiantai (Tendai, jpn), ao sul do país, onde o monge Zhiyi (538-597 D.C.) buscou sintetizar os ensinamentos Mahayana do sul e do norte num todo coerente. Para este fim, o sacerdote baseou-se em sutras e outras escrituras de mestres proeminentes, como o patriarca Nagarjuna (150-250). A Escola Tendai chegou ao Japão por meio do monge Saicho (767–822 DC), no período Heian. Saicho em 804 viajou para a China como estudante e permaneceu no monte Tiantai durante a dinastia Tang. Depois de receber autorização como mestre nesta linhagem, Saicho voltou para o Japão para propagar seus ensinamentos e obteve considerável êxito. (POCESKI, 2013). Infelizmente, a doutrina Tiantai perdeu muita força e degenerou-se no Japão após a morte de Saicho; na China, em 1949, enfraqueceu-se devido à atuação repressora do comunismo. Atualmente, a escola é pouco difundida tanto nestes países, quanto em qualquer outra parte do mundo. As escolas contemporâneas, que se consideram de origem Tiantai, ensinam, na realidade, doutrinas que pouco têm a ver com aquelas defendidas pelos fundadores, a exemplo das escolas Jodô-Shinshu (de Shinran) e as seitas de Nichiren (1222-1282) ou Nitiren, que mesmo diante de uma notória heterodoxia em comparação com a doutrina original, atribuem a Tiantai a ascendência de seus ensinamentos. (MUNIZ, 2010). A DOUTRINA TIANTAI. O Budismo defendido por Zhiyi e Saicho, além de se fundamentar no estudo aprofundado dos sutras e tratados dos patriarcas, procura enfatizar também a prática diária. Apenas a erudição, sem a aplicação destes conhecimentos no dia a dia é considerada como inócua. Por outro lado, somente a prática, sem um estudo razoável, tende a se tornar mera superstição e, assim, igualmente estéril. Logo, para a escola, prática e estudo são dois remos de um mesmo barco. A práxis é essencial. Os pilares doutrinários da Escola Tiantai são a Transitoriedade, Insubstancialidade, Sofrimento (Dukkha, sct) e Iluminação. A Transitoriedade diz respeito à máxima de que nada nesse mundo é perpétuo. A Insubstancialidade refere-se ao vazio, ou seja, de que as coisas são carentes de substância, desta forma, a “coisa em si” não existe, tampouco, entes metafísicos como “alma individual” ou Deus. Já o Sofrimento relaciona-se às Quatro Nobres Verdades que enunciam, basicamente, que a dor permeia toda a existência – fato que é percebido em um simples bater de olhos em qualquer telejornal. As Nobres Verdades também declaram que é com o proceder ético que se faz possível minimizar o sofrimento próprio e dos demais. A Iluminação, por sua vez, é a meta última do Budista, é o estado de plena compaixão pelos seres e de percepção “nua e crua” da realidade, sem as ilusões conformistas que tanto seduzem o ser humano; em suma, é a aceitação da Verdade mesmo que esta venha de encontro ao ego, seus preconceitos e vontades. A prática pode ser sintetizada em uma série de ações capazes de transformar toda a erudição em atitudes reais. O vegetarianismo, por exemplo, é uma forma de compaixão que visa beneficiar os seres sencientes; já a meditação e as recitações funcionam como ferramentas de autoanálise com o objetivo de coibir vícios, destacar virtudes e catalisar a Iluminação. Enquanto as outras linhagens ressaltavam um único método de Iluminação, seja este devocional, pela recitação de mantras, performance de mudras ou pela meditação, a Escola fundada por Zhiyi admitia a coexistência de todas estas práticas; assim, o próprio fiel, orientado por um mestre, “escolhia” suas práticas conforme suas características físicas e comportamentais. Por exemplo, nem todo mundo consegue ficar meia hora na posição de Lótus meditando, seja por ansiedade ou por problemas posturais ou nem todos se agradam dos devocionais “mais barulhentos” dos mantras; desta forma, havia abertura para pessoas de diversas características distintas. Esta flexibilização se baseia no conceito de Meios Hábeis, descrito no Sutra do Lótus, texto que, acompanhado do Sutra Mahayana do Nirvana são considerados os principais dessa Tradição. É preciso ressaltar ainda que esta abertura não implica, de nenhum modo, que a prática poderia ser realizada com lassidão; um genuíno mestre Tendai exigia de seu discípulo uma intensa disciplina, independentemente do método adotado. O esforço, tanto nos estudos dos textos sagrados quanto na prática, sempre foi considerado pela Tradição como uma condição essencial para se atingir a Iluminação. (POCESKI, 2013 e YOSHINORI, 2006). A ALMA TIANTAI. No Rig Veda (X, 129) é apresentada uma versão da cosmogonia, que viria a influenciar as principais teses do pensamento indiano, inclusive o Budismo, sobre o Atman, ou seja, sobre a “Alma Universal”, geratriz da vida e da existência de todos os entes. O poeta desenvolve seu pensamento perguntando a si mesmo como o ser pôde sair do não ser, já que no início, não “existia o não ser, nem o ser” (estrofe 1,1). “Nesse tempo não havia morto, nem não morto” (isto é, nem homens nem deuses). Só havia o princípio indiferenciado conhecido como “Um” (neutro). “O Um respirava por impulso próprio, sem que houvesse inspiração ou expiração”. Afora “isso, nada mais existia” (estrofe 2). “No início, as trevas estavam escondidas pelas trevas”, mas o calor (provocado pela ascese, tapas) deu origem ao “Um”, “potencial” (abhu) – isto é, “embrião” – “recoberto de vacuidade”. Desse germe (“potencial”) desenvolveu-se o desejo (kama), e esse mesmo desejo “foi a semente primeira (retas) da consciência (manas)”. (apud ELIADE, 2010, p. 128). A realidade para o Budismo Tiantai segue esta linha da Vacuidade e do “Um” (monismo), referenciada em definições “emprestadas” do Budismo Mahayana e do Budismo Esotérico (Shingon, jpn). Este “sincretismo” ocorre porque o introdutor da Escola no Japão, o mestre Saicho (FIGURA 1), além de declarar-se mahayanista, também recebeu influências do Budismo Shingon, pregado por Kukai, seu contemporâneo. (YOSHIRO, 2006). www.rodadalei.com.br. Abraço. Davi


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