terça-feira, 3 de julho de 2018

O DEVOTO BEM-AVENTURADO E SEU ROMANCE CÓSMICO

Livro Autobiografia de Um Iogue – Paramahansa Yogananda (1893-1952). Capítulo 9. O DEVOTO BEM-AVENTURADO E SEU ROMANCE CÓSMICO. Senhorzinho, sente-se, por favor. Estou falando com a minha MÃE DIVINA. Silenciosamente, eu tinha entrado no aposento com grande reverência. O semblante angélico do Mestre Lahiri Mahasaya (1828-1895) me deslumbrou. De barba alva e sedosa e com grandes olhos luzidios, ele parecia a encarnação da pureza. Seu queixo erguido e as mãos entrelaçadas fizeram-me compreender que minha primeira vista o havia perturbado em meio às suas devoções. Suas singelas palavras de saudação produziram o mais violento efeito até então experimentado por minha natureza. Eu pensava que a amargura da separação na morte de minha mãe fosse a medida de todas as angústias. Agora, uma nova consciência, a de estar separado de minha MÃE DIVINA, constituía indescritível tortura de espírito. Caí no chão, em soluços. Senhorzinho, acalme-se! O santo estava solidariamente aflito. A deriva num oceano de desolação, agarrei-me a seus pés, como um náufrago à única tábua salvadora. Santo senhor, interceda por mim! Pergunte à MÃE DIVINA se tenho algum merecimento aos olhos dela! A sagrada promessa de interceder por outrem não é facilmente concedida; o mestre foi constrangido ao silêncio. Sem a menor sombra de dúvida, eu estava convencido de que Mestre Mahasaya conversava intimamente com a MÃE DO UNIVERSO. Era profundamente humilhante constatar que meus olhos estavam cegos para aquela que, no mesmo momento era perceptível ao olhar imaculado do santo. Agarrado aos seus pés, sem pudor e surdo a seus delicados protestos, implorei repentinamente a graça de sua intervenção. Levarei sua súplica a Amada. A capitulação do mestre veio, enfim, com sorriso lento e piedoso. Que poder havia nessas poucas palavras, que meu ser se sentiu liberado do seu tempestuoso exílio? Senhor, lembre-se de sua promessa! Voltarei em breve à procura da mensagem dela. Alegre antecipação soava em minha voz, que só momentos antes soluçava de tristeza. Descendo a longa escadaria, fui oprimido por recordações. Esta casa em Calcutá, Índia, na Amherst Street 50, atual residência do Mestre Mahasaya, fora certa vez o lar de minha família e o cenário da morte de minha mãe. Aqui, meu coração humano se partira pela mãe desaparecida; e aqui, hoje, meu espírito sentia-se crucificado pela ausência da MÃE DIVINA. Abençoadas paredes! Testemunhas silenciosas de meus dolorosos sofrimentos e, por fim, de minha cura. Com passos ansiosos, voltei para casa. Buscando o isolamento de meu pequeno sótão, ali permaneci em meditação até as dez horas. A escuridão da quente noite indiana foi de súbito iluminada por uma visão maravilhosa. Num halo de esplendor, a MÃE DIVINA estava diante de mim. Sorrindo ternamente, sua face era a própria beleza. Sempre te amei! Sempre te amarei! A música celestial ainda ressoava no ar quando ela desapareceu. O sol da manhã seguinte havia despontado o suficiente para um mínimo de boa educação, quando fiz a segunda visita ao Mestre Maharasaya. Subindo as escadas daquela casa de lembranças tão pungentes, cheguei a seu aposento no quarto andar. A maçaneta da porta fechada fora envolvida num pano: insinuação, pensei, de que o santo queria privacidade. Eu permanecia indeciso na soleira, quando a porta se abriu pela mão acolhedora do mestre. Ajoelhei-me a seus pés sagrados. Num estado de espírito brincalhão, assumi uma máscara de solenidade, ocultando o júbilo divino. Senhor, vim – muito cedo, reconheço – em busca de sua mensagem. A MÃE AMADA disse algo a meu respeito? Senhorzinho travesso! Ele não disse mais nada. Evidentemente, minha pretensa seriedade não o impressionara. Por que tão misteriosos, tão evasivo? Será que os santos nunca falam claramente? Talvez eu tivesse sido um pouco provocado por ele. Você quer me testar? Seus olhos revelavam compreensão total. Será que eu poderia acrescentar nesta manhã qualquer palavra à garantia que você recebeu ontem, às diz horas da noite, da própria MÃE FORMOSÍSSIMA? Mestre Mahasaya possuía completo domínio sobre as comportas de minha alma; de novo caí prostrado a seus pés. Desta vez, porém, minhas lágrimas brotavam de beatitude, e não de sofrimentos insuportáveis. Você pensa que sua devoção não comoveu a Misericórdia Infinita? A MATERNIDADE DE DEUS que você venerou sob ambas as formas, a humana e a divina, nunca poderia deixar sem resposta seu grito de desamparo. Quem era este santo simples, cujo menor pedido ao Espírito Universal obtinha tão doce consentimento? Seu papel neste mundo era modesto, como convinha ao homem de maior humildade que já conheci. Na casa de Anherst Street, Mestre Mahasaya (1) dirigia uma pequena escola secundária para meninos. Nunca uma palavra de repreensão saiu de seus lábios; nenhuma régua ou palmatória mantinha a disciplina. Matemática superior era realmente ensinada naquelas modestas salas de aula, e uma química de amor ausente dos livros escolares. Ele transmitia sua sabedoria mais pelo contágio espiritual do que pelo preceito impenetrável. Consumido de autêntica paixão pela MÃE DIVINA, o santo, semelhante a uma criança, não exigia formalidades de respeito exterior. Não sou eu guru; ele virá um pouco mais tarde – disse-me – guiado por ele, a sua experiência do Divino em termos de amor e devoção se traduzirá nos termos dele de sabedoria insondável. Todos os dias, ao cair da tarde, eu me dirigia a Amherst Street. Procurava o divino cálice do Mestre Mahasaya, tão cheio que suas gotas diariamente se derramavam em meu ser. Nunca antes eu me curvara em reverência absoluta; agora, pisar o mesmo terreno santificado pelas pegadas do Mestre Mahasaya era para mim um imensurável privilégio. Por favor, use esta guirlanda de flores de champak que fiz especialmente para o senhor. Cheguei, certa noite, segurando um colar florido. Mas o santo afastou-se timidamente, recusando repetidas vezes a homenagem. Ao perceber minha mágoa, consentiu afinal, sorrindo. Já que ambos somos devotos da MÃE, você pode colocar a guirlanda neste templo corporal como oferenda a ela, que nele habita. Em sua vasta natureza faltava espaço para alojar qualquer consideração egoísta. Amanhã vamos a Dakshineswar, ao templo de Kali, perpetuamente santificado por meu guru. O santo era discípulo de um mestre semelhante a Cristo, Sri Ramakrishna Paramahansa. Na manhã seguinte fizemos a viagem de seis quilômetros e meio, de barco, pelo rio Ganges. Entramos no tempo de Kali, de nove cúpulas, onde as imagens da MÃE DIVINA e de Shiva descansam sobre um lótus de prata polida, com suas mil pétalas meticulosamente cinzeladas. Em seu encantamento, Mestre Mahasaya resplandecia. Entregava-se a seu inexaurível romance com a Bem-Amada. Enquanto ele cantava o nome dela, meu coração arrebato parecia estilhaçar-se, como o lótus, em mil fragmentos. Caminhamos depois pelo sagrado recinto, detendo-nos em um bosque de tamargueiras. O maná característico exsudado por essa árvore era um símbolo do manjar celestial que Mestre Mahasaya ali me oferecia. Suas invocações a Deus continuavam. Sentei-me rigidamente imóvel, na grama, entre as flores rosadas e plumosas das tamargueiras. Temporariamente ausente do corpo, voei a grande altitude, em paragens sublimes. Essa foi a primeira de muitas peregrinações a Dakshineswar com o santo Meste. Com ele aprendi a doçura de Deus sob o aspecto de Mãe, ou MISERICÓRDIA DIVINA. O santo, tal qual uma criança, sentia pouca atração pelo aspecto de Pai, ou Justiça Divina. O julgamento severo, exigente, matemático, era alheio à suavidade de sua natureza. Ele pode servir, na Terra, como protótipo aos anjos do céu! Pensei afetuosamente, observando-o um dia em suas orações. Sem um suspiro de censura ou de crítica, ele media o mundo com seus olhos há longo tempo familiarizado com a Prístina Pureza. Corpo, mente, linguagem e ações harmonizavam-se sem esforço com a simplicidade de sua alma. Meu Mestre assim me disse: Fugindo à autopromoção, o santo costumava terminar seus sábios conselhos com esse tributo. Tão profundo era o seu sentimento de identidade com Sri Ramakrishna que Mestre Mahasaya já não se considerava o autor dos próprios pensamentos. De mãos dadas, o santo e eu caminhávamos, uma noite, ao longo do quarteirão de sua escola. Minha alegria turvou-se à chegada de certo conhecido nosso, indivíduo pretensioso, que nos incomodou com longo discurso. Vejo que este homem não lhe agrada. O sussurro do santo não foi ouvido pelo egocêntrico orador, fascinado por seu próprio monólogo. Já falei com a MÃE DIVINA. Ela compreende nossa triste situação. Logo que chegarmos àquela casa vermelha, ela nos promete recordar a este homem assuntos mais urgentes. Meus olhos colaram-se ao local de salvação. Ao chegarmos ao portão vermelho, o homem deu meia volta e partiu sem explicações, sem acabar a frase ou se despedir. A paz voltou à atmosfera agredida. Em outra ocasião, sozinho, eu caminhava perto da estação ferroviária de Howrah. Detive-me por um instante junto a um templo, criticando em silêncio um pequeno grupo de homens que, acompanhados por tambor e címbalos, entoavam furiosamente um cântico. Com que falta de devoção usam o divino nome do Senhor repetindo-o mecanicamente, refleti. A repentina aparição do Mestre Mahasaya, aproximando-se de mim a passos rápidos espantou-me. Senhor, como veio aqui? Ignorando a minha pergunta, o santo respondeu ao meu pensamento. Não é verdade, senhorzinho, que o nome do Amado soa docemente em todos os lábios, de ignorantes ou de sábios? Ele passou o braço em torno de mim, afetuosamente, senti-me transportado neste tapete mágico à Presença Misericordiosa. Você gostaria de ver alguns bioscópios? Desconcertou-me esta pergunta, vinda, uma tarde, do recluso Mestre Mahasaya. O termo bioscópio era usado na Índia, naquela época, para designar filmes cinematográficos. Assenti, contente por estar em sua companhia em qualquer circunstância. Rápida caminhada nos levou ao jardim em frente à Universidade de Calcutá, Índia. Meu companheiro indicou-me um banco próximo a goldighi ou lagoa. Vamos nos sentar aqui por alguns minutos. Meu Mestre pediu-me que meditasse sempre que visse uma extensão de água. Sua placidez nos recorda a vasta serenidade de Deus. Assim como todas as coisas podem se refletir na água, o Universo espelha-se no lago da Mente Cósmica. Isto dizia meu gurudeva (2) frequentemente. Pouco depois entramos num dos salões da Universidade onde se realizava uma conferência, que se provou incrivelmente monótona, embora variasse de vez em quando com a projeção de diapositivos, igualmente desinteressantes. Então, era este tipo de bioscópio que o Mestre queria me mostrar? Pensava eu, impaciente, apensar de não me atrever a magoar o santo e deixar transparecer meu tédio. Mas ela se inclinou a magoar o santo e deixar transparecer meu tédio. Mas ele se inclinou para meu lado, numa confidência: Vejo, senhorzinho, que não lhe agrada este bioscópio. Comuniquei o fato à MÃE DIVINA. Ela concorda conosco. Diz-me que as luzes elétricas vão se apagar agora e só se reacenderão depois que aproveitarmos a oportunidade para sair da sala. Ele acabava de me segredar palavras quando a sala mergulhou na escuridão. O orador, cuja voz estridente emudecera de espanto por um momento disse: O sistema elétrico do salão parece estar com defeito. Nisto, já o Mestre Mahasaya e eu cruzávamos o umbral. Do corredor, olhando para trás, vi que o salão estava outra vez iluminado. Senhorzinho, este bioscópio o decepcionou, mas acho que gostará de um outro. O santo e eu estávamos parados na calçada em frente ao edifício da Universidade. Delicadamente, ele golpeou o peito, sobre o coração. Um silêncio transformou tudo. Assim como os filmes falados se tornam inaudíveis quando o aparelho de som está com defeito, igualmente a MÃO DIVINA, por algum estranho milagre, automóveis, carretas de bois, troles providos de rodas de ferro, prosseguiam todos em seu tráfego silenciosos. Como se possuísse um olho onipresente, eu observava as cenas atrás de mim e de ambos os lados com tanta facilidade como as que ocorriam à minha frente. Todo o espetáculo da atividade naquela pequena área de Calcutá deslizava diante de mim sem o menor ruído. Semelhante ao fraco brilho de brasas sob uma fina camada de cinzas, uma luminescência suave permeava a visão panorâmica. Meu próprio corpo nada mais parecia que uma sombra entre muitas outras, embora estivesse imóvel, enquanto as demais esvoaçavam, em silêncio, de cá para lá. Muitos meninos, meus amigos, aproximavam-se e afastavam-se; apesar de haverem olhado diretamente para mim, não deram mostras de reconhecer-me. A singular pantomina produziu-me um êxtase inexprimível. Eu bebia nas profundezas de alguma fonte de bem-aventurança. Subitamente, meu peito recebeu outro leve golpe de Mestre Mahasaya. O pandemônio do mundo explodiu em meus ouvidos contrariados. Cambaleei, como se fosse despertado com brutalidade de um sonho etéreo. O vinho transcendental foi posto fora de meu alcance. Senhorzinho, vejo que o segundo biscópio (3) lhe agradou. A MÃE DIVINA – é o aspecto de Deus que é ativo na criação; é shakti, ou o poder, do Senhor transcendental. Ela recebe muitos nomes, de acordo com as qualidades que exprime. Aqui, sua mão levantada significa benção universal; as outras mãos seguram, simbolicamente, um rosário de oração (devoção), páginas das Escrituras (sabedoria e aprendizado) e um jarro de água sagrada (purificação). O santo sorria. Em gratidão, comecei a me ajoelhar a seus pés. Você não pode fazer isso! Sabe que Deus também está no seu templo! Não posse permitir que a MÃE DIVINA toque meus pés através de suas mãos! Se alguém observasse o despretensioso Mestre e eu, ao nos afastarmos do local cheio de gente, certamente suspeitaria da embriaguez de ambos. Eu sentia que as sombras descendentes do crepúsculo estavam solidariamente embriagadas de Deus. Tentando com pobres palavras fazer justiça à bondade de Mestre Mahasaya, eu me pergunto se ele e outros santos cujo caminho cruzou o meu sabiam que anos mais tarde, num país ocidental, eu escreveria sobre a sua vida de devotos divinos. Seu conhecimento não me surpreenderia, como espero que não surpreenda aos leitores que até aqui me acompanham. Santos de todas as religiões alcançaram a realização divina através do singelo conceito da Amada Cósmica. Como o Absoluto é nirguna, “sem qualidades” e acintya, “inconcebível”, o pensamento e o anseio humanos sempre o personalizaram sob a forma de MÃE UNIVERSAL. A combinação de teísmo pessoal e de filosofia do Absoluto é uma antiga conquista do pensamento hindu, exposto nos Vedas e no Bhagavad Gita. Esta “reconciliação dos opostos” satisfaz o coração e a cabeça; bhakti (devoção) e jnana (sabedoria) são, em essência, uma só coisa. Prapatti, “refugiar-se” em Deus, e sharanagati, “entregar-se à Compaixão Divina”, são realmente caminhos do mais alto conhecimento. A humildade de Mestre Mahasaya e de todos os outros santos brota do reconhecimento de sua total dependência (seshatva) do Senhor como única Vida e único Juiz. Como a  verdadeira natureza de Deus é a bem-aventurança, o homem em sintonia com ele experimenta alegria genuína e ilimitada. “A primeira das paixões da alma e da vontade é a alegria” (4). Em todas as épocas, aproximando-se da MÃE com a pureza de crianças, seus devotos atestam que sempre a encontram disposta a brincar com eles. Na vida do Mestre Mahasaya as manifestações do jogo divino ocorreram em ocasiões importantes e sem importância. Aos olhos de Deus nada é grande ou pequeno. Se não fosse pela sua exatidão ao construir o pequenino átomo, poderiam os céus ostentar as orgulhosas estruturas de Vega ou de Arcturo? Diferenças entre “importante” e “não importante” são seguramente desconhecidas para o Senhor, senão, pela falta de um alfinete, o cosmos desabaria! Referências : (1) Título de respeito com que habitualmente o tratavam. Seu nome era Maliendra Nath Gupta; ele assinava suas obras literárias simplesmente com a letra “M”. (2) “Mestre Divino”, o costumeiro termo sânscrito que designa o preceptor espiritual de alguém. Deva “deus”, combinado com guru “mestre iluminado”, denota reverência e respeito profundos. Em inglês, traduzi-o simplesmente como Master “Mestre”. (3) Webster’s New International Dictionary (1934) dá, como rara, esta definição: “uma visão da vida; o que dá tal visão”. A escolha que Mestre Mahasaya fez desta palavra provou ser peculiarmente justificada. (4) São João da Cruz (1542-1591). Encontrou-se o corpo deste amado santo cristão, morto em 1591 e exumado em 1859, em estado de incorruptibilidade. Sir Francis Yonghusband (1863-1942) (Atlantic Mounthy), dezembro de 1936) referiu-se à sua própria experiência de alegria cósmica. “Sobreveio-me lago que era muito maior do que euforia ou regozijo; eu estava fora de mim com a intensidade de alegria. E com esta indescritível e quase insuportável alegria veio a revelação da bondade essencial do mundo. Fiquei Plena e absolutamente convencido de que os homens, no íntimo, são bons, e de que a maldade neles é superficial”. Livro Autobiografia de Um Iogue. Abraço. Davi   

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