Livro Autobiografia de Um Iogue – Paramahansa
Yogananda (1893-1952). Capítulo 9. O DEVOTO BEM-AVENTURADO E SEU ROMANCE
CÓSMICO. Senhorzinho, sente-se, por favor. Estou falando com a minha MÃE DIVINA.
Silenciosamente, eu tinha entrado no aposento com grande reverência. O
semblante angélico do Mestre Lahiri Mahasaya (1828-1895) me deslumbrou. De
barba alva e sedosa e com grandes olhos luzidios, ele parecia a encarnação da
pureza. Seu queixo erguido e as mãos entrelaçadas fizeram-me compreender que
minha primeira vista o havia perturbado em meio às suas devoções. Suas singelas
palavras de saudação produziram o mais violento efeito até então experimentado
por minha natureza. Eu pensava que a amargura da separação na morte de minha
mãe fosse a medida de todas as angústias. Agora, uma nova consciência, a de
estar separado de minha MÃE DIVINA, constituía indescritível tortura de
espírito. Caí no chão, em soluços. Senhorzinho, acalme-se! O santo estava
solidariamente aflito. A deriva num oceano de desolação, agarrei-me a seus pés,
como um náufrago à única tábua salvadora. Santo senhor, interceda por mim!
Pergunte à MÃE DIVINA se tenho algum merecimento aos olhos dela! A sagrada
promessa de interceder por outrem não é facilmente concedida; o mestre foi
constrangido ao silêncio. Sem a menor sombra de dúvida, eu estava convencido de
que Mestre Mahasaya conversava intimamente com a MÃE DO UNIVERSO. Era
profundamente humilhante constatar que meus olhos estavam cegos para aquela
que, no mesmo momento era perceptível ao olhar imaculado do santo. Agarrado aos
seus pés, sem pudor e surdo a seus delicados protestos, implorei repentinamente
a graça de sua intervenção. Levarei sua súplica a Amada. A capitulação do
mestre veio, enfim, com sorriso lento e piedoso. Que poder havia nessas poucas
palavras, que meu ser se sentiu liberado do seu tempestuoso exílio? Senhor,
lembre-se de sua promessa! Voltarei em breve à procura da mensagem dela. Alegre
antecipação soava em minha voz, que só momentos antes soluçava de tristeza.
Descendo a longa escadaria, fui oprimido por recordações. Esta casa em Calcutá,
Índia, na Amherst Street 50, atual residência do Mestre Mahasaya, fora certa
vez o lar de minha família e o cenário da morte de minha mãe. Aqui, meu coração
humano se partira pela mãe desaparecida; e aqui, hoje, meu espírito sentia-se
crucificado pela ausência da MÃE DIVINA. Abençoadas paredes! Testemunhas
silenciosas de meus dolorosos sofrimentos e, por fim, de minha cura. Com passos
ansiosos, voltei para casa. Buscando o isolamento de meu pequeno sótão, ali
permaneci em meditação até as dez horas. A escuridão da quente noite indiana
foi de súbito iluminada por uma visão maravilhosa. Num halo de esplendor, a MÃE
DIVINA estava diante de mim. Sorrindo ternamente, sua face era a própria
beleza. Sempre te amei! Sempre te amarei! A música celestial ainda ressoava no
ar quando ela desapareceu. O sol da manhã seguinte havia despontado o
suficiente para um mínimo de boa educação, quando fiz a segunda visita ao
Mestre Maharasaya. Subindo as escadas daquela casa de lembranças tão pungentes,
cheguei a seu aposento no quarto andar. A maçaneta da porta fechada fora
envolvida num pano: insinuação, pensei, de que o santo queria privacidade. Eu
permanecia indeciso na soleira, quando a porta se abriu pela mão acolhedora do
mestre. Ajoelhei-me a seus pés sagrados. Num estado de espírito brincalhão,
assumi uma máscara de solenidade, ocultando o júbilo divino. Senhor, vim –
muito cedo, reconheço – em busca de sua mensagem. A MÃE AMADA disse algo a meu
respeito? Senhorzinho travesso! Ele não disse mais nada. Evidentemente, minha
pretensa seriedade não o impressionara. Por que tão misteriosos, tão evasivo?
Será que os santos nunca falam claramente? Talvez eu tivesse sido um pouco
provocado por ele. Você quer me testar? Seus olhos revelavam compreensão total.
Será que eu poderia acrescentar nesta manhã qualquer palavra à garantia que
você recebeu ontem, às diz horas da noite, da própria MÃE FORMOSÍSSIMA? Mestre
Mahasaya possuía completo domínio sobre as comportas de minha alma; de novo caí
prostrado a seus pés. Desta vez, porém, minhas lágrimas brotavam de beatitude,
e não de sofrimentos insuportáveis. Você pensa que sua devoção não comoveu a
Misericórdia Infinita? A MATERNIDADE DE DEUS que você venerou sob ambas as
formas, a humana e a divina, nunca poderia deixar sem resposta seu grito de
desamparo. Quem era este santo simples, cujo menor pedido ao Espírito Universal
obtinha tão doce consentimento? Seu papel neste mundo era modesto, como
convinha ao homem de maior humildade que já conheci. Na casa de Anherst Street,
Mestre Mahasaya (1) dirigia uma pequena escola secundária para meninos. Nunca
uma palavra de repreensão saiu de seus lábios; nenhuma régua ou palmatória
mantinha a disciplina. Matemática superior era realmente ensinada naquelas
modestas salas de aula, e uma química de amor ausente dos livros escolares. Ele
transmitia sua sabedoria mais pelo contágio espiritual do que pelo preceito
impenetrável. Consumido de autêntica paixão pela MÃE DIVINA, o santo,
semelhante a uma criança, não exigia formalidades de respeito exterior. Não sou
eu guru; ele virá um pouco mais tarde – disse-me – guiado por ele, a sua
experiência do Divino em termos de amor e devoção se traduzirá nos termos dele
de sabedoria insondável. Todos os dias, ao cair da tarde, eu me dirigia a
Amherst Street. Procurava o divino cálice do Mestre Mahasaya, tão cheio que
suas gotas diariamente se derramavam em meu ser. Nunca antes eu me curvara em
reverência absoluta; agora, pisar o mesmo terreno santificado pelas pegadas do
Mestre Mahasaya era para mim um imensurável privilégio. Por favor, use esta
guirlanda de flores de champak que fiz especialmente para o senhor. Cheguei,
certa noite, segurando um colar florido. Mas o santo afastou-se timidamente,
recusando repetidas vezes a homenagem. Ao perceber minha mágoa, consentiu
afinal, sorrindo. Já que ambos somos devotos da MÃE, você pode colocar a
guirlanda neste templo corporal como oferenda a ela, que nele habita. Em sua
vasta natureza faltava espaço para alojar qualquer consideração egoísta. Amanhã
vamos a Dakshineswar, ao templo de Kali, perpetuamente santificado por meu
guru. O santo era discípulo de um mestre semelhante a Cristo, Sri Ramakrishna
Paramahansa. Na manhã seguinte fizemos a viagem de seis quilômetros e meio, de
barco, pelo rio Ganges. Entramos no tempo de Kali, de nove cúpulas, onde as
imagens da MÃE DIVINA e de Shiva descansam sobre um lótus de prata polida, com
suas mil pétalas meticulosamente cinzeladas. Em seu encantamento, Mestre
Mahasaya resplandecia. Entregava-se a seu inexaurível romance com a Bem-Amada.
Enquanto ele cantava o nome dela, meu coração arrebato parecia estilhaçar-se,
como o lótus, em mil fragmentos. Caminhamos depois pelo sagrado recinto,
detendo-nos em um bosque de tamargueiras. O maná característico exsudado por
essa árvore era um símbolo do manjar celestial que Mestre Mahasaya ali me
oferecia. Suas invocações a Deus continuavam. Sentei-me rigidamente imóvel, na
grama, entre as flores rosadas e plumosas das tamargueiras. Temporariamente
ausente do corpo, voei a grande altitude, em paragens sublimes. Essa foi a
primeira de muitas peregrinações a Dakshineswar com o santo Meste. Com ele
aprendi a doçura de Deus sob o aspecto de Mãe, ou MISERICÓRDIA DIVINA. O santo,
tal qual uma criança, sentia pouca atração pelo aspecto de Pai, ou Justiça
Divina. O julgamento severo, exigente, matemático, era alheio à suavidade de
sua natureza. Ele pode servir, na Terra, como protótipo aos anjos do céu!
Pensei afetuosamente, observando-o um dia em suas orações. Sem um suspiro de
censura ou de crítica, ele media o mundo com seus olhos há longo tempo
familiarizado com a Prístina Pureza. Corpo, mente, linguagem e ações
harmonizavam-se sem esforço com a simplicidade de sua alma. Meu Mestre assim me
disse: Fugindo à autopromoção, o santo costumava terminar seus sábios conselhos
com esse tributo. Tão profundo era o seu sentimento de identidade com Sri
Ramakrishna que Mestre Mahasaya já não se considerava o autor dos próprios
pensamentos. De mãos dadas, o santo e eu caminhávamos, uma noite, ao longo do
quarteirão de sua escola. Minha alegria turvou-se à chegada de certo conhecido
nosso, indivíduo pretensioso, que nos incomodou com longo discurso. Vejo que
este homem não lhe agrada. O sussurro do santo não foi ouvido pelo egocêntrico
orador, fascinado por seu próprio monólogo. Já falei com a MÃE DIVINA. Ela
compreende nossa triste situação. Logo que chegarmos àquela casa vermelha, ela
nos promete recordar a este homem assuntos mais urgentes. Meus olhos colaram-se
ao local de salvação. Ao chegarmos ao portão vermelho, o homem deu meia volta e
partiu sem explicações, sem acabar a frase ou se despedir. A paz voltou à
atmosfera agredida. Em outra ocasião, sozinho, eu caminhava perto da estação
ferroviária de Howrah. Detive-me por um instante junto a um templo, criticando
em silêncio um pequeno grupo de homens que, acompanhados por tambor e címbalos,
entoavam furiosamente um cântico. Com que falta de devoção usam o divino nome
do Senhor repetindo-o mecanicamente, refleti. A repentina aparição do Mestre
Mahasaya, aproximando-se de mim a passos rápidos espantou-me. Senhor, como veio
aqui? Ignorando a minha pergunta, o santo respondeu ao meu pensamento. Não é
verdade, senhorzinho, que o nome do Amado soa docemente em todos os lábios, de
ignorantes ou de sábios? Ele passou o braço em torno de mim, afetuosamente,
senti-me transportado neste tapete mágico à Presença Misericordiosa. Você
gostaria de ver alguns bioscópios? Desconcertou-me esta pergunta, vinda, uma
tarde, do recluso Mestre Mahasaya. O termo bioscópio era usado na Índia,
naquela época, para designar filmes cinematográficos. Assenti, contente por
estar em sua companhia em qualquer circunstância. Rápida caminhada nos levou ao
jardim em frente à Universidade de Calcutá, Índia. Meu companheiro indicou-me
um banco próximo a goldighi ou lagoa. Vamos nos sentar aqui por alguns minutos.
Meu Mestre pediu-me que meditasse sempre que visse uma extensão de água. Sua
placidez nos recorda a vasta serenidade de Deus. Assim como todas as coisas
podem se refletir na água, o Universo espelha-se no lago da Mente Cósmica. Isto
dizia meu gurudeva (2) frequentemente. Pouco depois entramos num dos salões da
Universidade onde se realizava uma conferência, que se provou incrivelmente
monótona, embora variasse de vez em quando com a projeção de diapositivos,
igualmente desinteressantes. Então, era este tipo de bioscópio que o Mestre
queria me mostrar? Pensava eu, impaciente, apensar de não me atrever a magoar o
santo e deixar transparecer meu tédio. Mas ela se inclinou a magoar o santo e
deixar transparecer meu tédio. Mas ele se inclinou para meu lado, numa
confidência: Vejo, senhorzinho, que não lhe agrada este bioscópio. Comuniquei o
fato à MÃE DIVINA. Ela concorda conosco. Diz-me que as luzes elétricas vão se
apagar agora e só se reacenderão depois que aproveitarmos a oportunidade para
sair da sala. Ele acabava de me segredar palavras quando a sala mergulhou na
escuridão. O orador, cuja voz estridente emudecera de espanto por um momento
disse: O sistema elétrico do salão parece estar com defeito. Nisto, já o Mestre
Mahasaya e eu cruzávamos o umbral. Do corredor, olhando para trás, vi que o
salão estava outra vez iluminado. Senhorzinho, este bioscópio o decepcionou,
mas acho que gostará de um outro. O santo e eu estávamos parados na calçada em
frente ao edifício da Universidade. Delicadamente, ele golpeou o peito, sobre o
coração. Um silêncio transformou tudo. Assim como os filmes falados se tornam
inaudíveis quando o aparelho de som está com defeito, igualmente a MÃO DIVINA,
por algum estranho milagre, automóveis, carretas de bois, troles providos de
rodas de ferro, prosseguiam todos em seu tráfego silenciosos. Como se possuísse
um olho onipresente, eu observava as cenas atrás de mim e de ambos os lados com
tanta facilidade como as que ocorriam à minha frente. Todo o espetáculo da
atividade naquela pequena área de Calcutá deslizava diante de mim sem o menor
ruído. Semelhante ao fraco brilho de brasas sob uma fina camada de cinzas, uma
luminescência suave permeava a visão panorâmica. Meu próprio corpo nada mais
parecia que uma sombra entre muitas outras, embora estivesse imóvel, enquanto
as demais esvoaçavam, em silêncio, de cá para lá. Muitos meninos, meus amigos,
aproximavam-se e afastavam-se; apesar de haverem olhado diretamente para mim,
não deram mostras de reconhecer-me. A singular pantomina produziu-me um êxtase
inexprimível. Eu bebia nas profundezas de alguma fonte de bem-aventurança.
Subitamente, meu peito recebeu outro leve golpe de Mestre Mahasaya. O
pandemônio do mundo explodiu em meus ouvidos contrariados. Cambaleei, como se
fosse despertado com brutalidade de um sonho etéreo. O vinho transcendental foi
posto fora de meu alcance. Senhorzinho, vejo que o segundo biscópio (3) lhe
agradou. A MÃE DIVINA – é o aspecto de Deus que é ativo na criação; é shakti,
ou o poder, do Senhor transcendental. Ela recebe muitos nomes, de acordo com as
qualidades que exprime. Aqui, sua mão levantada significa benção universal; as
outras mãos seguram, simbolicamente, um rosário de oração (devoção), páginas
das Escrituras (sabedoria e aprendizado) e um jarro de água sagrada
(purificação). O santo sorria. Em gratidão, comecei a me ajoelhar a seus pés.
Você não pode fazer isso! Sabe que Deus também está no seu templo! Não posse
permitir que a MÃE DIVINA toque meus pés através de suas mãos! Se alguém
observasse o despretensioso Mestre e eu, ao nos afastarmos do local cheio de
gente, certamente suspeitaria da embriaguez de ambos. Eu sentia que as sombras
descendentes do crepúsculo estavam solidariamente embriagadas de Deus. Tentando
com pobres palavras fazer justiça à bondade de Mestre Mahasaya, eu me pergunto
se ele e outros santos cujo caminho cruzou o meu sabiam que anos mais tarde,
num país ocidental, eu escreveria sobre a sua vida de devotos divinos. Seu
conhecimento não me surpreenderia, como espero que não surpreenda aos leitores
que até aqui me acompanham. Santos de todas as religiões alcançaram a
realização divina através do singelo conceito da Amada Cósmica. Como o Absoluto
é nirguna, “sem qualidades” e acintya, “inconcebível”, o pensamento e o anseio
humanos sempre o personalizaram sob a forma de MÃE UNIVERSAL. A combinação de
teísmo pessoal e de filosofia do Absoluto é uma antiga conquista do pensamento
hindu, exposto nos Vedas e no Bhagavad Gita. Esta “reconciliação dos opostos”
satisfaz o coração e a cabeça; bhakti (devoção) e jnana (sabedoria) são, em
essência, uma só coisa. Prapatti, “refugiar-se” em Deus, e sharanagati,
“entregar-se à Compaixão Divina”, são realmente caminhos do mais alto
conhecimento. A humildade de Mestre Mahasaya e de todos os outros santos brota
do reconhecimento de sua total dependência (seshatva) do Senhor como única Vida
e único Juiz. Como a verdadeira natureza
de Deus é a bem-aventurança, o homem em sintonia com ele experimenta alegria
genuína e ilimitada. “A primeira das paixões da alma e da vontade é a alegria”
(4). Em todas as épocas, aproximando-se da MÃE com a pureza de crianças, seus
devotos atestam que sempre a encontram disposta a brincar com eles. Na vida do
Mestre Mahasaya as manifestações do jogo divino ocorreram em ocasiões
importantes e sem importância. Aos olhos de Deus nada é grande ou pequeno. Se
não fosse pela sua exatidão ao construir o pequenino átomo, poderiam os céus
ostentar as orgulhosas estruturas de Vega ou de Arcturo? Diferenças entre
“importante” e “não importante” são seguramente desconhecidas para o Senhor,
senão, pela falta de um alfinete, o cosmos desabaria! Referências : (1) Título
de respeito com que habitualmente o tratavam. Seu nome era Maliendra Nath
Gupta; ele assinava suas obras literárias simplesmente com a letra “M”. (2)
“Mestre Divino”, o costumeiro termo sânscrito que designa o preceptor
espiritual de alguém. Deva “deus”, combinado com guru “mestre iluminado”,
denota reverência e respeito profundos. Em inglês, traduzi-o simplesmente como
Master “Mestre”. (3) Webster’s New International Dictionary (1934) dá, como
rara, esta definição: “uma visão da vida; o que dá tal visão”. A escolha que
Mestre Mahasaya fez desta palavra provou ser peculiarmente justificada. (4) São
João da Cruz (1542-1591). Encontrou-se o corpo deste amado santo cristão, morto
em 1591 e exumado em 1859, em estado de incorruptibilidade. Sir Francis
Yonghusband (1863-1942) (Atlantic Mounthy), dezembro de 1936) referiu-se à sua
própria experiência de alegria cósmica. “Sobreveio-me lago que era muito maior
do que euforia ou regozijo; eu estava fora de mim com a intensidade de alegria.
E com esta indescritível e quase insuportável alegria veio a revelação da
bondade essencial do mundo. Fiquei Plena e absolutamente convencido de que os
homens, no íntimo, são bons, e de que a maldade neles é superficial”. Livro
Autobiografia de Um Iogue. Abraço. Davi
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