Espiritualidade.
Texto de Jiddu Krishnamurti (1895-1986). Livro Liberte-se do Passado. Capítulo
7. AS RELAÇÕES – O CONFLITO. A CESSAÇÃO DA VIOLÊNCIA, que acabamos de
considerar, não implica necessariamente um estado em que a mente fica em paz
consigo mesma e, por conseguinte, em todas as suas relações. As relações entre
os seres humanos se baseiam no mecanismo defensivo, formador de imagens. Em
todas as relações cada um de nós forma uma imagem a respeito do outro e as duas
imagens ficam em relação, e não os próprios entes humanos. A esposa tem uma imagem
do marido – talvez inconsciente, contudo existente – e o marido tem uma imagem
da esposa. Temos uma imagem a respeito do nosso país e a respeito de nós
mesmos, e estamos constantemente fortalecendo essas imagens, acrescentando-lhes
sempre alguma coisa. A relação existente é entre essas imagens. A verdadeira
relação entre dois ou vários seres humanos cessa completamente quando há a
formação de imagens. A relação baseada em tais imagens jamais produzirá a paz,
porquanto as imagens são fictícias, e não se pode viver abstratamente.
Entretanto, é isso o que todos fazemos, vivemos entre ideias, teorias,
símbolos, imagens que criamos a respeito de nós mesmos e de outros e que, em
absoluto, não são realidades. Todas as nossas relações, seja com a propriedade,
sejam com ideias ou pessoas, se baseiam essencialmente nessa formação de
imagens e, por essa razão, existe sempre conflito. Como é então possível
completamente em paz em nosso interior e em todas as nossas relações com os
outros? A vida é um movimento de relações, pois de outro modo não há vida. E se
essa vida está baseada numa abstração, numa ideia, numa suposição especulativa,
então esse viver abstrato produzirá inevitavelmente relações que se tornam um
campo de batalha. Ora, será possível ao homem viver uma vida interior de
perfeita ordem, sem compulsão, imitação, repressão ou sublimação, em nenhuma
forma? Pode o homem estabelecer, em si mesmo, uma ordem que seja uma qualidade
viva, não aprisionada na estrutura das ideias. Uma tranquilidade interior que não
conheça perturbação em momento algum – não num mundo abstrato, fantástico,
mítico, porém na vida de cada dia, no lar e no emprego? Devemos examinar essa
questão muito cuidadosamente, porquanto não há um só ponto em nossa consciência
não contaminado pelo conflito. Em todas as nossas relações, sejam elas com a
pessoa mais íntima, sejam com nosso vizinho ou a sociedade, esse conflito
existe – o conflito é uma contradição, um estado de divisão, de separação, de
dualidade. Observando-nos e observando nossas relações com a sociedade, notamos
que em todos os níveis da nossa existência há conflito, de menor ou maior
importância, o qual provoca ou reações muito superficiais ou consequências
devastadoras. O homem aceitou o conflito como parte da existência diária porque
aceitou a competição, o ciúme, a avidez, ganância e a agressão como norma
natural da vida. Quando aceitamos tal norma da vida, estamos aceitando a
estrutura social tal qual é e vivendo segundo o padrão da respeitabilidade. E é
nessa rede que está aprisionada a maioria, visto que quase todos aspiram a ser
respeitáveis. Examinando nossa mente e nosso coração, nossa maneira de pensar,
nossa maneira de sentir e de agir na vida diária, observamos que, enquanto
estamos nos ajustando ao padrão da sociedade, a vida tem de ser um campo de
batalha. Se não a aceitamos – pois uma pessoa religiosa não pode de modo nenhum
aceitar uma tal sociedade. Estaremos então completamente livres da estrutura
psicológica da sociedade. A maioria de nós é rica das coisas da sociedade. O
que a sociedade criou em nós e, também, o que criamos em nós mesmos, é avidez,
inveja, cólera, ódio, ciúme, ansiedade – de tudo isso somos muito ricos. As
religiões, em todo o mundo sempre pregaram a pobreza. O monge toma um hábito,
muda de nome, raspa a cabeça, entra numa cela e faz voto de pobreza e de
castidade. No Oriente eles trajam uma tanga, um manto e só tomam uma refeição
por dia. Todos nós respeitamos essa espécie de pobreza. Mas os homens que
vestiam o manto da pobreza continuam, interiormente, psicologicamente, ricos
das coisas da sociedade. Porquanto estão ainda em busca de posição e de
prestígio; continuam a viver nas divisões próprias de uma dada cultura ou
tradição. Isso não é pobreza. Pobreza é estar completamente livre da sociedade,
mesmo possuindo algumas roupas e tomando mais refeições – meu Deus! Que importa
isso? Mas, infelizmente, na maioria das pessoas existe esse impulso para o
exibicionismo. A pobreza se torna uma coisa maravilhosa e bela, quando a mente
está livre da sociedade. Temos de ser pobres interiormente, porque então não há
mais buscar, nem indagar, nem desejar, nem nada! Só essa pobreza interior pode
ver a verdade existente numa vida completamente sem conflito. Tal vida é uma
benção não encontrável em nenhuma igreja ou templo. Mas como será possível nos
libertarmos da estrutura psicológica da sociedade, o que equivale a
libertar-nos da essência do conflito? Não é difícil aparar ou podar certos
ramos do conflito. Mas estamos perguntando a nós mesmos se é possível vivermos
em completa tranquilidade interior e por conseguinte, exterior. Isso não
significará vegetar ou estagnar. Ao contrário, tornar-nos-emos dinâmicos,
cheios de vitalidade e de energia. Para compreendermos e nos libertarmos de um
problema, necessitamos de abundante energia, apaixonada, persistente, não só
energia física e intelectual. Mas também uma energia independente de qualquer
motivo, de qualquer estímulo, esse próprio estímulo psicológico ou droga. Se
dependemos de algum estímulo, esse próprio estímulo tornará a mente embotada e
insensível. Tomando uma certa droga, podemos encontrar, temporariamente,
energia suficiente para vermos as coisas muito mais claramente, mas temos de
voltar ao estado anterior e, por conseguinte, nos tornarmos cada vez mais dependentes
dessa droga. Assim, todo estímulo, seja da igreja, seja do álcool ou das
drogas, da palavra escrita ou falada, acarretará inevitavelmente a dependência.
E, essa dependência nos impede de ver claramente, por nós mesmos, e, por
conseguinte, de ter a energia vital. Infelizmente, todos nós dependemos de
alguma coisa. Por que dependemos? Por que existe esse impulso a depender?
Estamos viajando juntos, você não está à espera de que eu lhe mostre as causas
de sua dependência. Se investigarmos juntos, nós as descobriremos, e tal
descobrimento será então seu e, por conseguinte, sendo seu, lhe dará
vitalidade. Eu descubro por mim mesmo que dependo de uma certa coisa, de um
auditório, por exemplo, para ser estimado. Desse auditório, do falar a um
grande grupo de pessoas, me vem uma certa espécie de energia. Consequentemente,
dependo desses ouvintes, dessas pessoas, quer concordem, quer não concordem
comigo. Quanto mais discordam de mim, tanto mais vitalidade me darão. Se
concordam, o que lhes digo se torna uma coisa muito superficial, vazia. Assim,
descubro que necessito de ouvintes, porque é uma coisa muito estimulante
dirigir a palavra a muitas pessoas. Ora, por quê? Por que tenho essa
dependência? Porque interiormente nada tenho, interiormente não existe em mim
uma fonte sempre cheia, abundante de vida e de movimento. Por isso, eu dependo.
Descobri a causa. Mas o descobrimento da causa me livrará de ser dependente? O
descobrimento da causa é puramente intelectual e, portanto, evidentemente, não
pode libertar a mente de sua dependência. A mera aceitação intelectual de uma
ideia ou a aquiescência emocional a uma ideologia não pode libertar a mente da
dependência daquilo que lhe dá estímulo. O que liberta a mente da dependência é
o percebimento e de como essa dependência torna a mente estúpida, embotada e
inerte. Só o percebimento dessa totalidade liberta a mente. Cumpre, pois,
investigar o que significa ver totalmente. Enquanto eu estiver vendo a vida de
um certo ponto de vista, de uma dada experiência ou conhecimento que acumulei e
que constitui o meu fundo, meu “eu”, não posso ver totalmente. Descobri
intelectualmente, verbalmente, pela análise, a causa da minha dependência, mas
tudo o que o pensamento investiga só pode ser fragmentário e, portanto, só
posso ver a totalidade de uma coisa quando o pensamento não interfere. Percebo
então o fato – minha dependência. Percebo realmente o que é . Vejo-o sem agrado
nem desagrado, e não desejo libertar-me dessa dependência ou de sua causa.
Observo-a e com essa qualidade de observação percebo o quadro inteiro, e quando
a mente percebe o quadro inteiro, dá-se a libertação. Ora, descobri que há uma
dissipação de energia quando há fragmentação. Descobri a própria fonte da
dissipação da energia. Você pode pensar que não há desperdício de energia se
imita, se aceita a autoridade, se depende do sacerdote, do ritual, do dogma, do
partido ou de uma certa ideologia. Mas o aceitar e seguir uma ideologia, boa ou
má, sagrada ou profana, é uma atividade fragmentária e, portanto, uma causa de
conflito, e o conflito surge inevitavelmente quando há separação entre o que
deveria ser e o que é, e todo conflito é dissipação de energia. Se você faz a
si mesmo a pergunta: Como posso libertar-me do conflito? Está criando outro
problema e, por conseguinte, aumentando o conflito, ao passo que, se o perceber
simplesmente como um fato – o vir como veria um objeto concreto – clara e
diretamente. Compreenderá então a essência, a verdade de uma vida isenta de
conflito. Em outras palavras: Estamos sempre comparando o que somos com o que
deveríamos ser. A contradição existe quando há comparação, não só com alguma
coisa ou pessoa, mas também com o que ontem éramos. Por conseguinte, há
conflito entre o que foi e o que é. Só existe o que é quando não há comparação
de espécie alguma, e viver com o que é é viver em paz. Você pode aplicar então
toda a sua atenção, sem distinção alguma, ao que existe dentro de você mesmo –
desespero, malevolência, brutalidade, medo, ansiedade, solidão – e viver com
isso, completamente. Não há então contradição e, por conseguinte, não há
conflito. Mas estamos continuamente a comparar-nos – com os que são mais
inteligentes ou mais ricos, mais intelectuais, mais afetuosos, mais famosos,
mais isto e mais aquilo. O “mais” tem um importantíssimo papel em nossa vida;
essa medição de nós mesmos com alguma coisa ou pessoa é uma das principais
causas do conflito. Ora, por que é que existe comparação? Por que você se
compara com outrem? Essa comparação lhe foi ensinada desde a infância. Em toda escola,
A é comparado com B, e A destrói a si próprio, a fim de igualar-se a B. Quando
não se faz comparação alguma, quando não há ideal, nem oposto, nem fator de
dualidade, quando você não luta mais para ser diferente do que é – que acontece
à sua mente? Sua mente deixou de criar o oposto e se tornou altamente
inteligente e sensível, capaz de extraordinária percepção, porquanto todo
esforço é dissipação de paixão – a paixão que é energia vital – e nada se pode
fazer sem paixão. Se não compara com outra pessoa, você é o que é. Pela
comparação você espera evoluir, tornar-se mais inteligente, mais belo. Mas será
que vai conseguir? O fato é o que é e, quando você o compara, está fragmentando
o fato – o que é desperdício de energia. O ver o que na realidade você é, sem
comparação, lhe dá uma tremenda energia para olhar. Quando você consegue olhar
sem comparação, já transcendeu a comparação, e isso não significa que a mente
se estagna no contentamento. Vemos, pois, em essência, como a mente desperdiça
a energia que é tão necessária para se compreender a totalidade da vida. Não
desejo saber com quem estou em conflito; não desejo conhecer os conflitos
periféricos da minha existência, o que desejo saber é por que razão existe o
conflito. Ao fazer a mim mesmo essa pergunta, percebo uma questão fundamental
que nada tem em comum com os conflitos periféricos e suas soluções. Estou
interessado no problema central e vejo – talvez você também veja – que a
própria natureza do desejo, se não for devidamente compreendida, levará
inevitavelmente ao conflito. O desejo está sempre em contradição. Desejo coisas
contraditórias. Não estou dizendo que devo destruir, reprimir, controlar ou
sublimar o desejo: estou vendo, simplesmente, que o desejo em si é
contraditório. Não é o objeto do desejo, mas a sua verdadeira natureza que é
contraditória. Tenho de compreender a natureza do desejo, antes de poder
compreender o conflito. Em nós mesmos, vemo-nos num estado de contradição, e
esse estado de contradição é criado pelo desejo – sendo o desejo a busca do
prazer e o evitar a dor que já conhecemos. Assim, vemos o desejo como a raiz de
toda contradição – desejando uma coisa e ao mesmo tempo não a desejando: uma
atividade dual. Quando fazemos uma coisa agradável não há esforço algum, há?
Mas o prazer traz a dor e vem em seguida a luta
para evitar a dor; mais uma maneira de dissipar energia. Por que é que
existe dualidade? Há, decerto, dualidade na natureza – homem e mulher, lua e
sombra, noite e dia; mas interiormente, psicologicamente, por que temos a
dualidade? Por favor, pense nisso, de maneira completa, junto comigo; você tem
de exercer sua mente para descobrir as coisas. Minhas palavras são simplesmente
um espelho em que você está se mirando. Por que temos essa dualidade
psicológica? É porque fomos educados para comparar sempre “o que” com o que
“deveria ser”? Fomos condicionados para discriminar o que é certo e o que é
errado, o que é bom e o que é mau, o que é moral e o que é imoral. Terá surgido
essa dualidade porque acreditamos que, se pensarmos no oposto da violência, no
oposto da inveja, do ciúme, da mediocridade, isso nos ajudará a libertar-nos
dessas coisas? Servimo-nos do oposto como de uma alavanca para nos livrarmos de
“o que é” ? Ou trata-se de uma fuga da realidade? Será que você se serve do
oposto como meio de evitar “o que é”, por não saber o que fazer com ele? Ou foi
ensinado, por milhares de anos de propaganda, que você deve ter um ideal – o
oposto de “o que é” – para poder enfrentar o presente? Quando tem um ideal,
você crê que ele o ajudará a libertar-se de “o que é”, o que, entretanto, nunca
acontece. Você pode pregar a não-violência até o fim da vida e, em todo esse
tempo, estar semeando os germes da violência. Você tem um conceito do que
deveria ser e de como deve agir, e o fato é que está sempre atuando de maneira
completamente diferente. Vê-se, pois, que os princípios levam inevitavelmente à
hipocrisia e a uma vida desonesta. É o ideal que cria o oposto de “o que é”,
assim, se souber ficar com o que é, o oposto se tornará desnecessário. O
procurar-se tornar igual a outrem ou igual ao seu ideal é uma das principais
causas da contradição, de confusão e de conflito. A mente que está confusa, não
importa o que faça, em qualquer nível que deseja, permanecerá confusa. Vejo
isso muito claramente, vejo-o com tanto clareza como vejo um perigo físico
imediato. Que acontece, pois? Deixo de agir em termos de confusão. Por
conseguinte, a inação é ação completa. Livro Krishnamurti – Liberte-se Passado.
Davi
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