quarta-feira, 18 de julho de 2018

AS RELAÇÕES - O CONFLITO


Espiritualidade. Texto de Jiddu Krishnamurti (1895-1986). Livro Liberte-se do Passado. Capítulo 7. AS RELAÇÕES – O CONFLITO. A CESSAÇÃO DA VIOLÊNCIA, que acabamos de considerar, não implica necessariamente um estado em que a mente fica em paz consigo mesma e, por conseguinte, em todas as suas relações. As relações entre os seres humanos se baseiam no mecanismo defensivo, formador de imagens. Em todas as relações cada um de nós forma uma imagem a respeito do outro e as duas imagens ficam em relação, e não os próprios entes humanos. A esposa tem uma imagem do marido – talvez inconsciente, contudo existente – e o marido tem uma imagem da esposa. Temos uma imagem a respeito do nosso país e a respeito de nós mesmos, e estamos constantemente fortalecendo essas imagens, acrescentando-lhes sempre alguma coisa. A relação existente é entre essas imagens. A verdadeira relação entre dois ou vários seres humanos cessa completamente quando há a formação de imagens. A relação baseada em tais imagens jamais produzirá a paz, porquanto as imagens são fictícias, e não se pode viver abstratamente. Entretanto, é isso o que todos fazemos, vivemos entre ideias, teorias, símbolos, imagens que criamos a respeito de nós mesmos e de outros e que, em absoluto, não são realidades. Todas as nossas relações, seja com a propriedade, sejam com ideias ou pessoas, se baseiam essencialmente nessa formação de imagens e, por essa razão, existe sempre conflito. Como é então possível completamente em paz em nosso interior e em todas as nossas relações com os outros? A vida é um movimento de relações, pois de outro modo não há vida. E se essa vida está baseada numa abstração, numa ideia, numa suposição especulativa, então esse viver abstrato produzirá inevitavelmente relações que se tornam um campo de batalha. Ora, será possível ao homem viver uma vida interior de perfeita ordem, sem compulsão, imitação, repressão ou sublimação, em nenhuma forma? Pode o homem estabelecer, em si mesmo, uma ordem que seja uma qualidade viva, não aprisionada na estrutura das ideias. Uma tranquilidade interior que não conheça perturbação em momento algum – não num mundo abstrato, fantástico, mítico, porém na vida de cada dia, no lar e no emprego? Devemos examinar essa questão muito cuidadosamente, porquanto não há um só ponto em nossa consciência não contaminado pelo conflito. Em todas as nossas relações, sejam elas com a pessoa mais íntima, sejam com nosso vizinho ou a sociedade, esse conflito existe – o conflito é uma contradição, um estado de divisão, de separação, de dualidade. Observando-nos e observando nossas relações com a sociedade, notamos que em todos os níveis da nossa existência há conflito, de menor ou maior importância, o qual provoca ou reações muito superficiais ou consequências devastadoras. O homem aceitou o conflito como parte da existência diária porque aceitou a competição, o ciúme, a avidez, ganância e a agressão como norma natural da vida. Quando aceitamos tal norma da vida, estamos aceitando a estrutura social tal qual é e vivendo segundo o padrão da respeitabilidade. E é nessa rede que está aprisionada a maioria, visto que quase todos aspiram a ser respeitáveis. Examinando nossa mente e nosso coração, nossa maneira de pensar, nossa maneira de sentir e de agir na vida diária, observamos que, enquanto estamos nos ajustando ao padrão da sociedade, a vida tem de ser um campo de batalha. Se não a aceitamos – pois uma pessoa religiosa não pode de modo nenhum aceitar uma tal sociedade. Estaremos então completamente livres da estrutura psicológica da sociedade. A maioria de nós é rica das coisas da sociedade. O que a sociedade criou em nós e, também, o que criamos em nós mesmos, é avidez, inveja, cólera, ódio, ciúme, ansiedade – de tudo isso somos muito ricos. As religiões, em todo o mundo sempre pregaram a pobreza. O monge toma um hábito, muda de nome, raspa a cabeça, entra numa cela e faz voto de pobreza e de castidade. No Oriente eles trajam uma tanga, um manto e só tomam uma refeição por dia. Todos nós respeitamos essa espécie de pobreza. Mas os homens que vestiam o manto da pobreza continuam, interiormente, psicologicamente, ricos das coisas da sociedade. Porquanto estão ainda em busca de posição e de prestígio; continuam a viver nas divisões próprias de uma dada cultura ou tradição. Isso não é pobreza. Pobreza é estar completamente livre da sociedade, mesmo possuindo algumas roupas e tomando mais refeições – meu Deus! Que importa isso? Mas, infelizmente, na maioria das pessoas existe esse impulso para o exibicionismo. A pobreza se torna uma coisa maravilhosa e bela, quando a mente está livre da sociedade. Temos de ser pobres interiormente, porque então não há mais buscar, nem indagar, nem desejar, nem nada! Só essa pobreza interior pode ver a verdade existente numa vida completamente sem conflito. Tal vida é uma benção não encontrável em nenhuma igreja ou templo. Mas como será possível nos libertarmos da estrutura psicológica da sociedade, o que equivale a libertar-nos da essência do conflito? Não é difícil aparar ou podar certos ramos do conflito. Mas estamos perguntando a nós mesmos se é possível vivermos em completa tranquilidade interior e por conseguinte, exterior. Isso não significará vegetar ou estagnar. Ao contrário, tornar-nos-emos dinâmicos, cheios de vitalidade e de energia. Para compreendermos e nos libertarmos de um problema, necessitamos de abundante energia, apaixonada, persistente, não só energia física e intelectual. Mas também uma energia independente de qualquer motivo, de qualquer estímulo, esse próprio estímulo psicológico ou droga. Se dependemos de algum estímulo, esse próprio estímulo tornará a mente embotada e insensível. Tomando uma certa droga, podemos encontrar, temporariamente, energia suficiente para vermos as coisas muito mais claramente, mas temos de voltar ao estado anterior e, por conseguinte, nos tornarmos cada vez mais dependentes dessa droga. Assim, todo estímulo, seja da igreja, seja do álcool ou das drogas, da palavra escrita ou falada, acarretará inevitavelmente a dependência. E, essa dependência nos impede de ver claramente, por nós mesmos, e, por conseguinte, de ter a energia vital. Infelizmente, todos nós dependemos de alguma coisa. Por que dependemos? Por que existe esse impulso a depender? Estamos viajando juntos, você não está à espera de que eu lhe mostre as causas de sua dependência. Se investigarmos juntos, nós as descobriremos, e tal descobrimento será então seu e, por conseguinte, sendo seu, lhe dará vitalidade. Eu descubro por mim mesmo que dependo de uma certa coisa, de um auditório, por exemplo, para ser estimado. Desse auditório, do falar a um grande grupo de pessoas, me vem uma certa espécie de energia. Consequentemente, dependo desses ouvintes, dessas pessoas, quer concordem, quer não concordem comigo. Quanto mais discordam de mim, tanto mais vitalidade me darão. Se concordam, o que lhes digo se torna uma coisa muito superficial, vazia. Assim, descubro que necessito de ouvintes, porque é uma coisa muito estimulante dirigir a palavra a muitas pessoas. Ora, por quê? Por que tenho essa dependência? Porque interiormente nada tenho, interiormente não existe em mim uma fonte sempre cheia, abundante de vida e de movimento. Por isso, eu dependo. Descobri a causa. Mas o descobrimento da causa me livrará de ser dependente? O descobrimento da causa é puramente intelectual e, portanto, evidentemente, não pode libertar a mente de sua dependência. A mera aceitação intelectual de uma ideia ou a aquiescência emocional a uma ideologia não pode libertar a mente da dependência daquilo que lhe dá estímulo. O que liberta a mente da dependência é o percebimento e de como essa dependência torna a mente estúpida, embotada e inerte. Só o percebimento dessa totalidade liberta a mente. Cumpre, pois, investigar o que significa ver totalmente. Enquanto eu estiver vendo a vida de um certo ponto de vista, de uma dada experiência ou conhecimento que acumulei e que constitui o meu fundo, meu “eu”, não posso ver totalmente. Descobri intelectualmente, verbalmente, pela análise, a causa da minha dependência, mas tudo o que o pensamento investiga só pode ser fragmentário e, portanto, só posso ver a totalidade de uma coisa quando o pensamento não interfere. Percebo então o fato – minha dependência. Percebo realmente o que é . Vejo-o sem agrado nem desagrado, e não desejo libertar-me dessa dependência ou de sua causa. Observo-a e com essa qualidade de observação percebo o quadro inteiro, e quando a mente percebe o quadro inteiro, dá-se a libertação. Ora, descobri que há uma dissipação de energia quando há fragmentação. Descobri a própria fonte da dissipação da energia. Você pode pensar que não há desperdício de energia se imita, se aceita a autoridade, se depende do sacerdote, do ritual, do dogma, do partido ou de uma certa ideologia. Mas o aceitar e seguir uma ideologia, boa ou má, sagrada ou profana, é uma atividade fragmentária e, portanto, uma causa de conflito, e o conflito surge inevitavelmente quando há separação entre o que deveria ser e o que é, e todo conflito é dissipação de energia. Se você faz a si mesmo a pergunta: Como posso libertar-me do conflito? Está criando outro problema e, por conseguinte, aumentando o conflito, ao passo que, se o perceber simplesmente como um fato – o vir como veria um objeto concreto – clara e diretamente. Compreenderá então a essência, a verdade de uma vida isenta de conflito. Em outras palavras: Estamos sempre comparando o que somos com o que deveríamos ser. A contradição existe quando há comparação, não só com alguma coisa ou pessoa, mas também com o que ontem éramos. Por conseguinte, há conflito entre o que foi e o que é. Só existe o que é quando não há comparação de espécie alguma, e viver com o que é é viver em paz. Você pode aplicar então toda a sua atenção, sem distinção alguma, ao que existe dentro de você mesmo – desespero, malevolência, brutalidade, medo, ansiedade, solidão – e viver com isso, completamente. Não há então contradição e, por conseguinte, não há conflito. Mas estamos continuamente a comparar-nos – com os que são mais inteligentes ou mais ricos, mais intelectuais, mais afetuosos, mais famosos, mais isto e mais aquilo. O “mais” tem um importantíssimo papel em nossa vida; essa medição de nós mesmos com alguma coisa ou pessoa é uma das principais causas do conflito. Ora, por que é que existe comparação? Por que você se compara com outrem? Essa comparação lhe foi ensinada desde a infância. Em toda escola, A é comparado com B, e A destrói a si próprio, a fim de igualar-se a B. Quando não se faz comparação alguma, quando não há ideal, nem oposto, nem fator de dualidade, quando você não luta mais para ser diferente do que é – que acontece à sua mente? Sua mente deixou de criar o oposto e se tornou altamente inteligente e sensível, capaz de extraordinária percepção, porquanto todo esforço é dissipação de paixão – a paixão que é energia vital – e nada se pode fazer sem paixão. Se não compara com outra pessoa, você é o que é. Pela comparação você espera evoluir, tornar-se mais inteligente, mais belo. Mas será que vai conseguir? O fato é o que é e, quando você o compara, está fragmentando o fato – o que é desperdício de energia. O ver o que na realidade você é, sem comparação, lhe dá uma tremenda energia para olhar. Quando você consegue olhar sem comparação, já transcendeu a comparação, e isso não significa que a mente se estagna no contentamento. Vemos, pois, em essência, como a mente desperdiça a energia que é tão necessária para se compreender a totalidade da vida. Não desejo saber com quem estou em conflito; não desejo conhecer os conflitos periféricos da minha existência, o que desejo saber é por que razão existe o conflito. Ao fazer a mim mesmo essa pergunta, percebo uma questão fundamental que nada tem em comum com os conflitos periféricos e suas soluções. Estou interessado no problema central e vejo – talvez você também veja – que a própria natureza do desejo, se não for devidamente compreendida, levará inevitavelmente ao conflito. O desejo está sempre em contradição. Desejo coisas contraditórias. Não estou dizendo que devo destruir, reprimir, controlar ou sublimar o desejo: estou vendo, simplesmente, que o desejo em si é contraditório. Não é o objeto do desejo, mas a sua verdadeira natureza que é contraditória. Tenho de compreender a natureza do desejo, antes de poder compreender o conflito. Em nós mesmos, vemo-nos num estado de contradição, e esse estado de contradição é criado pelo desejo – sendo o desejo a busca do prazer e o evitar a dor que já conhecemos. Assim, vemos o desejo como a raiz de toda contradição – desejando uma coisa e ao mesmo tempo não a desejando: uma atividade dual. Quando fazemos uma coisa agradável não há esforço algum, há? Mas o prazer traz a dor e vem em seguida a luta  para evitar a dor; mais uma maneira de dissipar energia. Por que é que existe dualidade? Há, decerto, dualidade na natureza – homem e mulher, lua e sombra, noite e dia; mas interiormente, psicologicamente, por que temos a dualidade? Por favor, pense nisso, de maneira completa, junto comigo; você tem de exercer sua mente para descobrir as coisas. Minhas palavras são simplesmente um espelho em que você está se mirando. Por que temos essa dualidade psicológica? É porque fomos educados para comparar sempre “o que” com o que “deveria ser”? Fomos condicionados para discriminar o que é certo e o que é errado, o que é bom e o que é mau, o que é moral e o que é imoral. Terá surgido essa dualidade porque acreditamos que, se pensarmos no oposto da violência, no oposto da inveja, do ciúme, da mediocridade, isso nos ajudará a libertar-nos dessas coisas? Servimo-nos do oposto como de uma alavanca para nos livrarmos de “o que é” ? Ou trata-se de uma fuga da realidade? Será que você se serve do oposto como meio de evitar “o que é”, por não saber o que fazer com ele? Ou foi ensinado, por milhares de anos de propaganda, que você deve ter um ideal – o oposto de “o que é” – para poder enfrentar o presente? Quando tem um ideal, você crê que ele o ajudará a libertar-se de “o que é”, o que, entretanto, nunca acontece. Você pode pregar a não-violência até o fim da vida e, em todo esse tempo, estar semeando os germes da violência. Você tem um conceito do que deveria ser e de como deve agir, e o fato é que está sempre atuando de maneira completamente diferente. Vê-se, pois, que os princípios levam inevitavelmente à hipocrisia e a uma vida desonesta. É o ideal que cria o oposto de “o que é”, assim, se souber ficar com o que é, o oposto se tornará desnecessário. O procurar-se tornar igual a outrem ou igual ao seu ideal é uma das principais causas da contradição, de confusão e de conflito. A mente que está confusa, não importa o que faça, em qualquer nível que deseja, permanecerá confusa. Vejo isso muito claramente, vejo-o com tanto clareza como vejo um perigo físico imediato. Que acontece, pois? Deixo de agir em termos de confusão. Por conseguinte, a inação é ação completa. Livro Krishnamurti – Liberte-se Passado. Davi

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