Filosofia.
Escrito por Friedrich Nietzsche (1844-1900) Origem do culto religioso. Se
remontarmos aos tempos em que a vida religiosa florescia com toda a força,
acharemos uma convicção fundamental que já não partilhamos, e devido à qual
vemos fechadas definitivamente para nós as portas da vida religiosa. Tal
convicção diz respeito à natureza e à relação com ela. Naqueles tempos nada se
sabia sobre as leis da natureza; seja na terra, seja no céu, nada tinha que
suceder. Uma estação, o sol, a chuva podiam vir ou faltar. Não havia qualquer
noção de causalidade natural. Quando se remava, não era o remo que movia o
barco. Remar era apenas uma cerimônia mágica, pela qual se forçava um demônio a
mover o barco. Todas as enfermidades, a própria morte eram resultado de
influências mágicas. O adoecer e o morrer não sobrevinham naturalmente, não
existia a ideia de ocorrência natural, que surgiu apenas com os antigos gregos,
ou seja, numa fase bem tardia da humanidade, na concepção da Moira que reina
acima dos deuses. Quando alguém atirava com o arco, havia sempre uma mão e uma
força irracionais; se as fontes secavam de repente, pensava-se primeiro em
demônios subterrâneos e suas maldades. Se um homem caia, era certamente o
efeito invisível da flecha de um deus. Na Índia (segundo John Lubbock
1834-1913) o carpinteiro costuma oferecer sacrifícios a seu martelo, a sua
machadinha e às ferramentas. O brâmanes trata do mesmo modo o lápis com que
escreve, o soldado as armas que usa em campanha, o pedreiro sua trolha, o
lavrador seu arado. Na imaginação dos homens religiosos, toda a natureza é uma
soma de atos de seres conscientes e querentes, um enorme complexo de
arbitrariedade seguro, Calculável, somos nós. O homem é a regra, a natureza, a
ausência de regras, este princípio contém a convicção fundamental que domina as
grosseiras culturas primitivas, criadoras da religião. Nós, homens modernos,
sentimos precisamente o inverso; quanto mais interiormente rico o homem se
sente hoje, quanto mais polifônica a sua subjetividade, tanto mais
poderosamente age sobre ele o equilíbrio da natureza. Juntamente com Goethe
(1749-1832), todos nós reconhecemos na natureza o grande meio de tranquilizar a
alma moderna, ouvimos a batida do pêndulo desse grande relógio com nostalgia de
sossego, de recolhimento e silêncio. Como se pudéssemos absorver esse
equilíbrio e somente por meio dele recordamos as rudes condições primitivas dos
povos. Ou vemos de perto os selvagens (termo não mais usado nos léxico de forma
pejorativa) atuais, achamo-los determinados da maneira mais rigorosa pela lei,
pela tradição. O indivíduo está quase que automaticamente ligado à ela e se
move com a uniformidade de um pêndulo. Para ele a natureza, a incompreendida,
terrível, misteriosa natureza, deve parecer o reino da liberdade, do arbítrio,
do poder superior, como que um estágio sobre humano da existência, Deus mesmo.
Mas então cada indivíduo, em tais épocas e condições, sente como sua vida, sua
felicidade, a de sua família, a do Estado, o sucesso de todos os
empreendimentos, dependem dessas arbitrariedades da natureza. Alguns fenômenos
naturais devem sobrevir no tempo certo, e outros deixar de ocorrer no tempo
certo. Como ter influência sobre essas temíveis incógnitas, como subjugar o
reino da liberdade? Eis o que ele se pergunta, eis o que busca ansiosamente.
Não há como tornar essas potências regulares? As reflexões daqueles que
acreditam em magia e milagres levam a impor uma lei à natureza, e, em poucas
palavras, o culto religioso é produto dessas reflexões. O problema que esses
homens se colocam é intimamente aparentado ao seguinte: como pode a tribo mais
fraca ditar leis para a mais forte, decidir
a respeito dela, dirigir suas ações (na relação com a mais fraca)?
Recordemos primeiro a espécie mais inócua de coação, aquela que exercitamos ao
conquistar a afeição de alguém. Logo, por meio de súplicas e orações, por meio
da submissão, do compromisso de tributos e presentes regulares, de exaltações
lisonjeiras, é possível também exercer uma coação sobre os poderes da natureza,
na medida em que os tornamos afeiçoados a nós; o amor vincula e é vinculado. Em
seguida, podemos fechar acordos em que nos obrigamos mutuamente a determinada
conduta, estabelecemos penhores e trocamos juramentos. Muito mais importante,
porém, é uma espécie de coação mais violenta, mediante a magia e a feitiçaria.
Assim como o homem, com a ajuda de um feiticeiro, pode prejudicar um inimigo
mais forte e mantê-lo amedrontado, assim como o feitiço do amor age à
distância, assim também o homem fraco acredita poder guiar até mesmo os
espíritos poderosos da natureza. O meio principal de toda magia é termos em
nosso poder algo que seja próprio de alguém: cabelos, unhas, um pouco da comida
de sua mesa e mesmo sua imagem, seu nome. Com tal aparato se pode então praticar
a magia, pois o pressuposto fundamental é de que a todo ser espiritual pertence
algum elemento corporal. Com o auxílio deste se pode vincular o espírito,
prejudica-lo, destruí-lo; o elemento corporal fornece a alça com que podemos
apreender o espiritual. Do mesmo modo que um homem influencia outro homem,
também influencia qualquer espirito da natureza, pois este também tem seu
elemento corporal, pelo qual pode ser apreendido. A árvore e, comparado a ela,
o broto do qual surgiu, essa enigmática coexistência parece provar que nas duas
formas se corporificou um único espírito, ora pequeno, ora grande. Uma pedra
que rola charneca solitária se encontra uma rocha, parece impossível imaginar
uma força humana que a tenha trazido até ali. Então ela deve ter se movido por
si própria, ou seja, deve hospedar um espírito. Tudo o que possui um corpo é
acessível ao encantamento, também os espíritos da natureza. Se um deus está
vinculado à sua imagem, pode-se também exercer sobre ele uma coação direta (ao
lhe negar o alimento sacrificial, açoitá-lo, acorrenta-lo e assim por diante).
A fim de obter as graças de um deus que as abandonou, as pessoas pobres, na
China, amarram com cordas a sua imagem, arrastam-na pelas ruas através de montes de lama que e
estrume, e dizem: “Oh! Tu, cão de espírito, nós te fizemos habitar um magnífico
templo, e douramos esplendidamente, te alimentamos bem, te oferecemos
sacrifícios, e contudo és tão ingrato”. Semelhantes medidas de violência contra
imagens dos santos e da mãe de Deus (A Bendita, Santa e Imaculada Virgem
Maria), quando eles não quiseram cumprir sua obrigação em casos de peste ou de
seca, por exemplo, ocorreram ainda nesse século (XIX) em países católicos
romanos. Todas essas relações mágicas com a natureza deram origem a inúmeras cerimônias.
Por fim, quando sua confusão se tornou muito grande houve esforços para
ordená-las, sistematiza-las, de modo que se acreditou garantir o desenrolar
favorável de todo o curso da natureza, isto é, do grande ciclo anual das
estações, mediante o correspondente desenrolar de um sistema de procedimentos.
O sentido do culto religioso é influenciar e esconjurar a natureza em benefício
do homem, ou seja, imprimir-lhe uma regularidade que a princípio ela não tem.
Enquanto na época atual queremos conhecer as regras da natureza para nos
adaptarmos a elas. Em suma, o culto religioso baseia-se nas ideias de feitiço
entre um homem e outro. E o feiticeiro é mais antigo que o sacerdote. Mas
igualmente se baseia em concepções outras, mais nobres, pressupõe um laço de
simpatia entre os homens, a existência de boa vontade, gratidão, atendimento
aos suplicantes, acordos entre inimigos, concessão de garantias, direito à
proteção da propriedade. Mesmo em baixos níveis de cultura o homem não se acha
frente à natureza como um escravo impotente, não é necessariamente o seu servo
desprovido de vontade. No nível religioso dos gregos, sobretudo na relação com
os deuses olímpicos, deve-se mesmo pensar na convivência de duas castas, uma
mais nobre, mais poderosas, e outra menos nobre. Mas por sua origem elas de
algum modo estão ligadas e são de uma única espécie, não precisam se
envergonhar uma de outra. Eis o que há de nobre na religiosidade grega. A vista
de certos instrumentos de sacrifício antigos. Na união da farsa ou mesmo da obscenidade
com o senso religioso, por exemplo, podemos ver como alguns sentimentos se
perderam para nós. Não apreendemos o sentimento da possibilidade dessa mistura,
não apreendemos senão historicamente que ela tenha existido nas festas de
Deméter e Dionísio, nos mistérios e peças pascais dos cristãos. Mas ainda
conhecemos a união do sublime ao burlesco (caricato, cômico) e coisas afins, o
comovente associado ao ridículo, o que talvez uma época futura não mais
compreenda. O cristianismo como antiguidade. Quando, numa manhã de domingo,
ouvimos repicarem os velhos sinos, perguntamos a nós mesmos. Mas será possível?
Isto se faz por um judeu crucificado há dois mil anos, que se dizia filho de
Deus. Não existe prova para tal afirmação. Em nossos tempos, a religião cristã
é certamente uma antiguidade que irrompe de um passado remoto, e o fato de
crermos nessa afirmação, quando normalmente somos tão rigorosos no exame de
qualquer pretensão, é talvez a parte mais antiga dessa herança. Um deus que
gera filhos com uma mortal. Um sábio que exorta a que não se trabalhe, que não
mais se julgue, mas que se atente aos sinais do iminente fim do mundo, uma
justiça que aceita o inocente como vítima substituta. Alguém que manda seus
discípulos beberem seu sangue, preces por intervenções miraculosas, pecados
cometidos contra um deus expiados por um deus. Medo de um Além cuja porta de
entrada é a morte, a forma da cruz como símbolo, num tempo que já não conhece a
destinação e a ignomínia da cruz; que estremecimento nos causa tudo isso, como
o odor vendo de um sepulcro antiquíssimo! Deveríamos crer que ainda se crê
nessas coisas? Do livro Humano Demasiado Humano. Ano da primeira publica 1878.
Abraço. Davi.
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