Auto Conhecimento. Texto escrito por Rubem Alves
(1933-2014). “Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado
curso de Escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a
ouvir. Pensei em oferecer um curso de Escutatória. Mas acho que ninguém vai se
matricular. Escutar é complicado e sutil. Diz o Alberto Caeiro que "não é
bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter
filosofia nenhuma". Filosofia é um monte de ideias, dentro da cabeça, sobre
como são as coisas. Aí a gente que não é cego abre os olhos. Diante de nós,
fora da cabeça, nos campos e matas, estão as árvores e as flores. Ver é colocar
dentro da cabeça aquilo que existe fora. O cego não vê porque as janelas dele
estão fechadas. O que está fora não consegue entrar. A gente não é cego. As
árvores e as flores entram. Mas, coitadinhas delas, entram e caem num mar de
ideias. São misturadas nas palavras da filosofia que moram em nós. Perdem a sua
simplicidade de existir. Ficam outras coisas. Então, o que vemos, não são as
árvores e as flores. Para se ver é preciso que a cabeça esteja vazia. Faz muito
tempo, nunca me esqueci. Eu ia de ônibus. Atrás duas mulheres conversavam. Uma
delas contava para a amiga os seus sofrimentos. Contou-me uma amiga,
nordestina, que o jogo que as mulheres do nordeste gostam de fazer quando
conversam umas com as outras é comparar sofrimentos. Quanto maior o sofrimento,
mais bonita é a mulher e a sua vida. Conversar é a arte de produzir-se
literariamente como mulher de sofrimentos. Acho que foi lá que a ópera foi
inventada. A alma é uma literatura. É nisso que se baseia a psicanálise (...).
Voltando ao ônibus. Falavam de sofrimentos. Uma dela contava do marido
hospitalizado, dos médicos, dos exames complicados, das injeções na veia, a
enfermeira nunca acertava, dos vômitos e das urinas. Era um relato comovente de
dor. Até que o relato chegou ao fim esperando, evidentemente, o aplauso,
admiração, uma palavra de acolhimento na alma da outra que, supostamente,
ouvia. Mas o que a sofredora ouviu foi o seguinte: "Mas isso não é nada
(...)". A segunda iniciou, então, uma história de sofrimentos
incomparavelmente mais terríveis e dignos de uma ópera que os sofrimentos da
primeira. Parafraseio o Alberto Caeiro (1889-1915): Não é bastante ter ouvidos
para se ouvir o que é dito. É preciso também que haja silêncio dentro da alma.
Daí a dificuldade: a gente não aguenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um
palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer.
Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração e
precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito
melhor. No fundo somos todos iguais às duas mulheres do ônibus. Certo estava
Georg Christoph Lichtenberg (1742-1799), citado por Murilo Mendes (1901-1975):
"Há quem não ouça até que lhe cortem as orelhas”. Nossa incapacidade de
ouvir é a manifestação mais constante e sutil da nossa arrogância e vaidade: no
fundo, somos os mais bonitos (...). Tenho um velho amigo, Jovelino, que se
mudou para os Estados Unidos da América, estimulado pela revolução de 1964.
Pastor protestante não "evangélico", foi trabalhar num programa
educacional da Igreja Presbiteriana USA, voltado para minorias. Contou-me de sua
experiência com os índios. As reuniões são estranhas. Reunidos os
participantes, ninguém fala. Há um longo, longo silêncio. Os pianistas, antes
de iniciar o concerto, diante do piano, ficam assentados em silêncio, como se
estivessem orando. Não rezando. Reza é falatório pra não ouvir. Orando. Abrindo
vazios de silêncio. Expulsando todas as ideias estranhas. Também para se tocar
piano é preciso não ter filosofia nenhuma. Todos em silêncio, à espera do
pensamento essencial. Aí, de repente, alguém fala. Curto. Todos ouvem.
Terminada a fala, novo silêncio. Falar logo em seguida seria um grande
desrespeito. Pois o outro falou os seus pensamentos, pensamentos que julgava
essenciais. Sendo dele, os pensamentos não são meus. São me estranhos. Comida
que é preciso digerir. Digerir leva tempo. É preciso tempo para entender o que
o outro falou. Se falo logo a seguir são duas as possibilidades. Primeira:
"Fiquei em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não ouvi o que você
falou. Enquanto você falava eu pensava nas coisas que eu iria falar quando você
terminasse sua (tola) fala. Falo como se você não tivesse falado”. Segunda:
"Ouvi o que você falou. Mas isso que você falou como novidade eu já pensei
há muito tempo. É coisa velha para mim. Tanto que nem preciso pensar sobre o
que você falou”. Em ambos os casos estou chamando o outro de tolo. O que é pior
que uma bofetada. O longo silêncio quer dizer: "Estou ponderando
cuidadosamente tudo aquilo que você falou. E assim vai a reunião. Há grupos
religiosos cuja liturgia consiste de silêncio. Faz alguns anos passei uma
semana num mosteiro na Suíça, Grand Champs. Eu e algumas outras pessoas ali
estávamos para, juntos, escrever um livro. Era uma antiga fazenda. Velhas
construções, não me esqueço da água no chafariz onde as pombas vinham beber.
Havia uma disciplina de silêncio, não total, mas de uma fala mínima. O que me
deu enorme prazer às refeições. Não tinha a obrigação de manter uma conversa
com meus vizinhos de mesa. Podia comer pensando na comida. Também para comer é
preciso não ter filosofia. Não ter obrigação de falar é uma felicidade. Mas
logo fui informado que parte da disciplina do mosteiro era participar da
liturgia três vezes por dia: às 7 da manhã, ao meio dia e às 6 da tarde.
Estremeci de medo. Mas obedeci. O lugar sagrado era um velho celeiro, todo de
madeira, teto muito alto. Escuro. Haviam aberto buracos na madeira, ali
colocando vidros de várias cores. Era uma atmosfera de luz mortiça, iluminado
por algumas velas sobre o altar, uma mesa simples com um ícone oriental de Cristo.
Uns poucos bancos arranjados em "U" definiam um amplo espaço vazio,
no centro, onde quem quisesse podia se assentar numa almofada, sobre um tapete.
Cheguei alguns minutos antes da hora marcada. Era um grande silêncio. Muito
frio, nuvens escuras cobriam o céu e corriam, levadas por um vento impetuoso
que descia dos Alpes. A força do vento era tanta que o velho celeiro torcia e
rangia, como se fosse um navio de madeira num mar agitado. O vento batia nas
macieiras nuas do pomar e o barulho era como o de ondas que se quebram.
Estranhei. Os suíços são sempre pontuais. A liturgia não começava. E ninguém
tomava providências. Todos continuavam do mesmo jeito, sem nada fazer. Ninguém
que se levantasse para dizer: "Meus irmãos, vamos cantar o hino (...)”. Cinco
minutos, dez, quinze. Só depois de vinte minutos é que eu, estúpido, percebi
que tudo já se iniciara vinte minutos antes. As pessoas estavam lá para se
alimentar de silêncio. E eu comecei a me alimentar de silêncio também. Não
basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de pensamentos. E
aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não
ouvia. Eu comecei a ouvir. Fernando Pessoa (1888-1935) conhecia a experiência,
e se referia a algo que se ouve nos interstícios das palavras, no lugar onde
não há palavras. É música, melodia que não havia e que quando ouvida nos faz
chorar. A música acontece no silêncio. É preciso que todos os ruídos cessem. No
silêncio, abrem-se as portas de um mundo encantado que mora em nós, como no
poema de Mallarmé, A catedral submersa, que Claude Debussy (1862-1918) musicou.
A alma é uma catedral submersa. No fundo do mar, quem faz mergulho sabe, a boca
fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos. Me veio agora a ideia de que,
talvez, essa seja a essência da experiência religiosa, quando ficamos mudos,
sem fala. Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia,
ouvimos a melodia que não havia que de tão linda nos faz chorar. Pra mim Deus é
isso: a beleza que se ouve no silêncio. Daí a importância de saber ouvir os
outros: a beleza mora lá também. Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza
da gente se juntam num contraponto. (...)”. Jornal Correio Popular em
09/04/1999”. http://www.rubernalves.com.br.
Esse é um belíssimo texto de um dos grandes literatos brasileiros chamado Rubem
Alves (1933-2014). Sua morte deixou muitas saudades nos amantes da poesia, bem
como dos que apreciam escritos contemporâneos baseado no “drama” da vida real.
Ele foi presbiteriano de formação teológica e como estudou psicanálise em sua
complementação acadêmica, envolveu-se com conceitos que na sua época de
juventude eram pouco atraente para o regime político vigente no Brasil; o
período da ditadura militar (1964-1985). Os contratempos fizeram com que
vivesse alguns anos “exilado” nos USA e ao voltar abandonou o pastorado
tornando-se escritor. Lembrei desses fatos que ele narra num de seus livros,
muito bem aceito pela crítica por sinal, com o título Ostra Feliz Não Faz
Pérola. Aos leitores em português e outras línguas, pois sua obra foi traduzida
para outros idiomas alguns dos seus títulos: A Alegria de ensinar; Do Universo
a Jabuticaba; O Amor que Acende a Lua; O velho que Acordou Menino; O Poeta, o
Guerreiro e o Profeta. Em sua literatura usa o viés da psicanálise e enunciados
filosóficos em seus aforismos e textos, alguns baseados nas Escrituras Sagradas
Cristãs enriquecendo assim sua elaboração argumentativa. Num destes, censura a
dureza bíblica quando faz referência ao inferno eterno. Que em sua concepção
não existe como um lugar físico, mas subjetivo a nível do inconsciente humano,
sendo temporário e para disciplina pedagógica. Acho que, pensando assim,
realmente não ficaria muito tempo como pastor evangélico em qualquer igreja
cristã tradicional. Ele cumpriu sua missão, tendo uma existência ativa,
ajudando ao próximo com sua experiência de vida e conhecimento de pessoa
humana. O dom de escutar são poucos os indivíduos que o têm. Nos dias de hoje,
com todo esse estressante cotidiano que vivemos, precisamos aprender a ouvir o
outro. Geralmente quando o fazemos, de maneira precipitada, nossos pensamentos
estão a mil, imaginando o que dizer mesmo antes da fala de nosso interlocutor.
Recorrentemente o “atropelamos”, dando um conselho ou sugerindo fazer isso ou
aquilo antes que ele termine sua exposição do assunto. Nossa tagarelice
expressa o pouco conteúdo que temos como instrumento de orientação à situações
de agitação ou ansiedade das pessoas. Fui abençoado, pela misericórdia divina
com alguém, que mesmo não sendo uma terapeuta profissional, foi capaz de me
ouvir sem dizer uma palavra de advertência ou conselho. Isso ocorreu quando
passei por uma crise existencial, logo após sair de uma igreja chamada Árvore
da Vida onde me reuni por mais de duas décadas. Deus coloca anjos, uma amiga,
na nossa vida em momentos cruciais de desespero e profunda angústia,
salvando-nos de enlouquecermos. Interessante que a proposta de Sigmund Freud
(1856-1939) em suas teorias e na experiência clínica era a “cura pela fala”.
Seu postulado se confirmou quando na terapia psicanalítica o sofrimento do
paciente é aliviado, cedendo lugar a uma sensação de conforto, quietude e
refrigério. Segundo Freud há a análise terminável e a interminável. Isso sem
fazer uso de qualquer prescrição de droga sintética ou alopática. Acho que me
incluo o segundo grupo. Em minha experiência, vez ou outra, preciso falar dos
meus problemas a alguém de confiança; não consigo guarda-los em meu consciente.
O tema do silêncio que é a reflexão principal da dissertação do Rubem Alves
sendo apreciado em todas as espiritualidades, bem como, no misticismo cristão.
Talvez esse seja, um dos porquês, não conseguimos manter nosso silêncio por
muito tempo. Na filosofia oriental é mostrado que devemos esvaziar nossos
pensamentos, desapegarmos do materialismo e sub julgar nossa vontade à
superioridade interior divina, intrínseca em cada indivíduo. Uma palavra que
poderia ser usada nesse texto é meditação. “Um homem confuso perguntou ao
Budha: ouvi dizer que alguns monges meditam com expectativas, outros sem
expectativas e outros são indiferentes ao resultado. O que é melhor? O Budha
respondeu: que eles meditem, com ou sem expectativas, se tiverem as ideias
erradas e os métodos errados, não obterão nenhum fruto da sua meditação. Que tipo de meditação ensinou o
Budha? Para falar a verdade, ninguém sabe realmente: no entanto, temos algumas
pistas, em algumas das Escrituras Budistas, sobre a natureza da prática que ele
pode ter ensinado. Na Escritura referida acima, é claro que o Budha sentia que
se não usasse o método correto não se podia esperar atingir o nirvana – o
estado plenamente desperto de liberdade absoluta e iluminação”. Essa é uma das
maneiras de entrarmos no silêncio que podemos traduzir como vazio. Segundo os
místicos no vazio podemos ter uma experiência transcendente com o divino. Aqui
significa termos tempo para a nossa interioridade superior, celestial, onde
habita nosso verdadeiro Eu imperecível. Nesse silêncio temos a possibilidade de
encontrar a nós mesmos. Coisa raríssima, que poucas pessoas conseguem acessar,
e se fizermos, estaremos nesse rol dos que estão na Senda do autoconhecimento.
Sendo esse um dos caminhos para o despertar iluminador. Vivemos divididos em
tantos afazeres e responsabilidades. Esse “fracionamento” humano, desloca-nos
de nosso originário eixo espiritual. No silêncio, no vazio, contatamos nossa
consciência divina como é dito na Escritura Cristã em Colossenses 1:13 “O qual
nos tirou da potestade das trevas, e nos transportou para o reino do Filho do
seu amor”. É difícil esse silêncio meditativo, pois aprendemos que orar é
apenas pedir bênção matérias e agradecer pelas que temos recebido. Na meditação
“oração” o princípio é de que o Divino é nossa própria recompensa e gratidão,
assim, a concentração Nele é absolutamente suficiente para nos suprir em tudo o
que carecemos. Que aprendamos a usar o silêncio contemplativo para nossa
evolução espiritual. O iluminado (Budha) disse: “O silêncio é um espaço vazio.
O espaço é o lar da mente desperta”. Abraço. Davi.
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