segunda-feira, 23 de maio de 2016

Escutatória.



Auto Conhecimento. Texto escrito por Rubem Alves (1933-2014). “Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de Escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de Escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular. Escutar é complicado e sutil. Diz o Alberto Caeiro que "não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma". Filosofia é um monte de ideias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas. Aí a gente que não é cego abre os olhos. Diante de nós, fora da cabeça, nos campos e matas, estão as árvores e as flores. Ver é colocar dentro da cabeça aquilo que existe fora. O cego não vê porque as janelas dele estão fechadas. O que está fora não consegue entrar. A gente não é cego. As árvores e as flores entram. Mas, coitadinhas delas, entram e caem num mar de ideias. São misturadas nas palavras da filosofia que moram em nós. Perdem a sua simplicidade de existir. Ficam outras coisas. Então, o que vemos, não são as árvores e as flores. Para se ver é preciso que a cabeça esteja vazia. Faz muito tempo, nunca me esqueci. Eu ia de ônibus. Atrás duas mulheres conversavam. Uma delas contava para a amiga os seus sofrimentos. Contou-me uma amiga, nordestina, que o jogo que as mulheres do nordeste gostam de fazer quando conversam umas com as outras é comparar sofrimentos. Quanto maior o sofrimento, mais bonita é a mulher e a sua vida. Conversar é a arte de produzir-se literariamente como mulher de sofrimentos. Acho que foi lá que a ópera foi inventada. A alma é uma literatura. É nisso que se baseia a psicanálise (...). Voltando ao ônibus. Falavam de sofrimentos. Uma dela contava do marido hospitalizado, dos médicos, dos exames complicados, das injeções na veia, a enfermeira nunca acertava, dos vômitos e das urinas. Era um relato comovente de dor. Até que o relato chegou ao fim esperando, evidentemente, o aplauso, admiração, uma palavra de acolhimento na alma da outra que, supostamente, ouvia. Mas o que a sofredora ouviu foi o seguinte: "Mas isso não é nada (...)". A segunda iniciou, então, uma história de sofrimentos incomparavelmente mais terríveis e dignos de uma ópera que os sofrimentos da primeira. Parafraseio o Alberto Caeiro (1889-1915): Não é bastante ter ouvidos para se ouvir o que é dito. É preciso também que haja silêncio dentro da alma. Daí a dificuldade: a gente não aguenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer. Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração e precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor. No fundo somos todos iguais às duas mulheres do ônibus. Certo estava Georg Christoph Lichtenberg (1742-1799), citado por Murilo Mendes (1901-1975): "Há quem não ouça até que lhe cortem as orelhas”. Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil da nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos (...). Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos da América, estimulado pela revolução de 1964. Pastor protestante não "evangélico", foi trabalhar num programa educacional da Igreja Presbiteriana USA, voltado para minorias. Contou-me de sua experiência com os índios. As reuniões são estranhas. Reunidos os participantes, ninguém fala. Há um longo, longo silêncio. Os pianistas, antes de iniciar o concerto, diante do piano, ficam assentados em silêncio, como se estivessem orando. Não rezando. Reza é falatório pra não ouvir. Orando. Abrindo vazios de silêncio. Expulsando todas as ideias estranhas. Também para se tocar piano é preciso não ter filosofia nenhuma. Todos em silêncio, à espera do pensamento essencial. Aí, de repente, alguém fala. Curto. Todos ouvem. Terminada a fala, novo silêncio. Falar logo em seguida seria um grande desrespeito. Pois o outro falou os seus pensamentos, pensamentos que julgava essenciais. Sendo dele, os pensamentos não são meus. São me estranhos. Comida que é preciso digerir. Digerir leva tempo. É preciso tempo para entender o que o outro falou. Se falo logo a seguir são duas as possibilidades. Primeira: "Fiquei em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não ouvi o que você falou. Enquanto você falava eu pensava nas coisas que eu iria falar quando você terminasse sua (tola) fala. Falo como se você não tivesse falado”. Segunda: "Ouvi o que você falou. Mas isso que você falou como novidade eu já pensei há muito tempo. É coisa velha para mim. Tanto que nem preciso pensar sobre o que você falou”. Em ambos os casos estou chamando o outro de tolo. O que é pior que uma bofetada. O longo silêncio quer dizer: "Estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo que você falou. E assim vai a reunião. Há grupos religiosos cuja liturgia consiste de silêncio. Faz alguns anos passei uma semana num mosteiro na Suíça, Grand Champs. Eu e algumas outras pessoas ali estávamos para, juntos, escrever um livro. Era uma antiga fazenda. Velhas construções, não me esqueço da água no chafariz onde as pombas vinham beber. Havia uma disciplina de silêncio, não total, mas de uma fala mínima. O que me deu enorme prazer às refeições. Não tinha a obrigação de manter uma conversa com meus vizinhos de mesa. Podia comer pensando na comida. Também para comer é preciso não ter filosofia. Não ter obrigação de falar é uma felicidade. Mas logo fui informado que parte da disciplina do mosteiro era participar da liturgia três vezes por dia: às 7 da manhã, ao meio dia e às 6 da tarde. Estremeci de medo. Mas obedeci. O lugar sagrado era um velho celeiro, todo de madeira, teto muito alto. Escuro. Haviam aberto buracos na madeira, ali colocando vidros de várias cores. Era uma atmosfera de luz mortiça, iluminado por algumas velas sobre o altar, uma mesa simples com um ícone oriental de Cristo. Uns poucos bancos arranjados em "U" definiam um amplo espaço vazio, no centro, onde quem quisesse podia se assentar numa almofada, sobre um tapete. Cheguei alguns minutos antes da hora marcada. Era um grande silêncio. Muito frio, nuvens escuras cobriam o céu e corriam, levadas por um vento impetuoso que descia dos Alpes. A força do vento era tanta que o velho celeiro torcia e rangia, como se fosse um navio de madeira num mar agitado. O vento batia nas macieiras nuas do pomar e o barulho era como o de ondas que se quebram. Estranhei. Os suíços são sempre pontuais. A liturgia não começava. E ninguém tomava providências. Todos continuavam do mesmo jeito, sem nada fazer. Ninguém que se levantasse para dizer: "Meus irmãos, vamos cantar o hino (...)”. Cinco minutos, dez, quinze. Só depois de vinte minutos é que eu, estúpido, percebi que tudo já se iniciara vinte minutos antes. As pessoas estavam lá para se alimentar de silêncio. E eu comecei a me alimentar de silêncio também. Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de pensamentos. E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia. Eu comecei a ouvir. Fernando Pessoa (1888-1935) conhecia a experiência, e se referia a algo que se ouve nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras. É música, melodia que não havia e que quando ouvida nos faz chorar. A música acontece no silêncio. É preciso que todos os ruídos cessem. No silêncio, abrem-se as portas de um mundo encantado que mora em nós, como no poema de Mallarmé, A catedral submersa, que Claude Debussy (1862-1918) musicou. A alma é uma catedral submersa. No fundo do mar, quem faz mergulho sabe, a boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos. Me veio agora a ideia de que, talvez, essa seja a essência da experiência religiosa, quando ficamos mudos, sem fala. Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia que de tão linda nos faz chorar. Pra mim Deus é isso: a beleza que se ouve no silêncio. Daí a importância de saber ouvir os outros: a beleza mora lá também. Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto. (...)”. Jornal Correio Popular em 09/04/1999”. http://www.rubernalves.com.br. Esse é um belíssimo texto de um dos grandes literatos brasileiros chamado Rubem Alves (1933-2014). Sua morte deixou muitas saudades nos amantes da poesia, bem como dos que apreciam escritos contemporâneos baseado no “drama” da vida real. Ele foi presbiteriano de formação teológica e como estudou psicanálise em sua complementação acadêmica, envolveu-se com conceitos que na sua época de juventude eram pouco atraente para o regime político vigente no Brasil; o período da ditadura militar (1964-1985). Os contratempos fizeram com que vivesse alguns anos “exilado” nos USA e ao voltar abandonou o pastorado tornando-se escritor. Lembrei desses fatos que ele narra num de seus livros, muito bem aceito pela crítica por sinal, com o título Ostra Feliz Não Faz Pérola. Aos leitores em português e outras línguas, pois sua obra foi traduzida para outros idiomas alguns dos seus títulos: A Alegria de ensinar; Do Universo a Jabuticaba; O Amor que Acende a Lua; O velho que Acordou Menino; O Poeta, o Guerreiro e o Profeta. Em sua literatura usa o viés da psicanálise e enunciados filosóficos em seus aforismos e textos, alguns baseados nas Escrituras Sagradas Cristãs enriquecendo assim sua elaboração argumentativa. Num destes, censura a dureza bíblica quando faz referência ao inferno eterno. Que em sua concepção não existe como um lugar físico, mas subjetivo a nível do inconsciente humano, sendo temporário e para disciplina pedagógica. Acho que, pensando assim, realmente não ficaria muito tempo como pastor evangélico em qualquer igreja cristã tradicional. Ele cumpriu sua missão, tendo uma existência ativa, ajudando ao próximo com sua experiência de vida e conhecimento de pessoa humana. O dom de escutar são poucos os indivíduos que o têm. Nos dias de hoje, com todo esse estressante cotidiano que vivemos, precisamos aprender a ouvir o outro. Geralmente quando o fazemos, de maneira precipitada, nossos pensamentos estão a mil, imaginando o que dizer mesmo antes da fala de nosso interlocutor. Recorrentemente o “atropelamos”, dando um conselho ou sugerindo fazer isso ou aquilo antes que ele termine sua exposição do assunto. Nossa tagarelice expressa o pouco conteúdo que temos como instrumento de orientação à situações de agitação ou ansiedade das pessoas. Fui abençoado, pela misericórdia divina com alguém, que mesmo não sendo uma terapeuta profissional, foi capaz de me ouvir sem dizer uma palavra de advertência ou conselho. Isso ocorreu quando passei por uma crise existencial, logo após sair de uma igreja chamada Árvore da Vida onde me reuni por mais de duas décadas. Deus coloca anjos, uma amiga, na nossa vida em momentos cruciais de desespero e profunda angústia, salvando-nos de enlouquecermos. Interessante que a proposta de Sigmund Freud (1856-1939) em suas teorias e na experiência clínica era a “cura pela fala”. Seu postulado se confirmou quando na terapia psicanalítica o sofrimento do paciente é aliviado, cedendo lugar a uma sensação de conforto, quietude e refrigério. Segundo Freud há a análise terminável e a interminável. Isso sem fazer uso de qualquer prescrição de droga sintética ou alopática. Acho que me incluo o segundo grupo. Em minha experiência, vez ou outra, preciso falar dos meus problemas a alguém de confiança; não consigo guarda-los em meu consciente. O tema do silêncio que é a reflexão principal da dissertação do Rubem Alves sendo apreciado em todas as espiritualidades, bem como, no misticismo cristão. Talvez esse seja, um dos porquês, não conseguimos manter nosso silêncio por muito tempo. Na filosofia oriental é mostrado que devemos esvaziar nossos pensamentos, desapegarmos do materialismo e sub julgar nossa vontade à superioridade interior divina, intrínseca em cada indivíduo. Uma palavra que poderia ser usada nesse texto é meditação. “Um homem confuso perguntou ao Budha: ouvi dizer que alguns monges meditam com expectativas, outros sem expectativas e outros são indiferentes ao resultado. O que é melhor? O Budha respondeu: que eles meditem, com ou sem expectativas, se tiverem as ideias erradas e os métodos errados, não obterão nenhum fruto da sua  meditação. Que tipo de meditação ensinou o Budha? Para falar a verdade, ninguém sabe realmente: no entanto, temos algumas pistas, em algumas das Escrituras Budistas, sobre a natureza da prática que ele pode ter ensinado. Na Escritura referida acima, é claro que o Budha sentia que se não usasse o método correto não se podia esperar atingir o nirvana – o estado plenamente desperto de liberdade absoluta e iluminação”. Essa é uma das maneiras de entrarmos no silêncio que podemos traduzir como vazio. Segundo os místicos no vazio podemos ter uma experiência transcendente com o divino. Aqui significa termos tempo para a nossa interioridade superior, celestial, onde habita nosso verdadeiro Eu imperecível. Nesse silêncio temos a possibilidade de encontrar a nós mesmos. Coisa raríssima, que poucas pessoas conseguem acessar, e se fizermos, estaremos nesse rol dos que estão na Senda do autoconhecimento. Sendo esse um dos caminhos para o despertar iluminador. Vivemos divididos em tantos afazeres e responsabilidades. Esse “fracionamento” humano, desloca-nos de nosso originário eixo espiritual. No silêncio, no vazio, contatamos nossa consciência divina como é dito na Escritura Cristã em Colossenses 1:13 “O qual nos tirou da potestade das trevas, e nos transportou para o reino do Filho do seu amor”. É difícil esse silêncio meditativo, pois aprendemos que orar é apenas pedir bênção matérias e agradecer pelas que temos recebido. Na meditação “oração” o princípio é de que o Divino é nossa própria recompensa e gratidão, assim, a concentração Nele é absolutamente suficiente para nos suprir em tudo o que carecemos. Que aprendamos a usar o silêncio contemplativo para nossa evolução espiritual. O iluminado (Budha) disse: “O silêncio é um espaço vazio. O espaço é o lar da mente desperta”. Abraço. Davi.

Nenhum comentário:

Postar um comentário