sexta-feira, 8 de abril de 2016

II. A Vida Religiosa.

Filosofia. Escrito por Friedrich Nietzsche (1844-1900) Origem do culto religioso. Se remontarmos aos tempos em que a vida religiosa florescia com toda a força, acharemos uma convicção fundamental que já não partilhamos, e devido à qual vemos fechadas definitivamente para nós as portas da vida religiosa. Tal convicção diz respeito à natureza e à relação com ela. Naqueles tempos nada se sabia sobre as leis da natureza; seja na terra, seja no céu, nada tinha que suceder. Uma estação, o sol, a chuva podiam vir ou faltar. Não havia qualquer noção de causalidade natural. Quando se remava, não era o remo que movia o barco. Remar era apenas uma cerimônia mágica, pela qual se forçava um demônio a mover o barco. Todas as enfermidades, a própria morte eram resultado de influências mágicas. O adoecer e o morrer não sobrevinham naturalmente, não existia a ideia de ocorrência natural, que surgiu apenas com os antigos gregos, ou seja, numa fase bem tardia da humanidade, na concepção da Moira que reina acima dos deuses. Quando alguém atirava com o arco, havia sempre uma mão e uma força irracionais; se as fontes secavam de repente, pensava-se primeiro em demônios subterrâneos e suas maldades. Se um homem caia, era certamente o efeito invisível da flecha de um deus. Na Índia (segundo John Lubbock 1834-1913) o carpinteiro costuma oferecer sacrifícios a seu martelo, a sua machadinha e às ferramentas. O brâmanes trata do mesmo modo o lápis com que escreve, o soldado as armas que usa em campanha, o pedreiro sua trolha, o lavrador seu arado. Na imaginação dos homens religiosos, toda a natureza é uma soma de atos de seres conscientes e querentes, um enorme complexo de arbitrariedade seguro, Calculável, somos nós. O homem é a regra, a natureza, a ausência de regras, este princípio contém a convicção fundamental que domina as grosseiras culturas primitivas, criadoras da religião. Nós, homens modernos, sentimos precisamente o inverso; quanto mais interiormente rico o homem se sente hoje, quanto mais polifônica a sua subjetividade, tanto mais poderosamente age sobre ele o equilíbrio da natureza. Juntamente com Goethe (1749-1832), todos nós reconhecemos na natureza o grande meio de tranquilizar a alma moderna, ouvimos a batida do pêndulo desse grande relógio com nostalgia de sossego, de recolhimento e silêncio. Como se pudéssemos absorver esse equilíbrio e somente por meio dele recordamos as rudes condições primitivas dos povos. Ou vemos de perto os selvagens (termo não mais usado nos léxico de forma pejorativa) atuais, achamo-los determinados da maneira mais rigorosa pela lei, pela tradição. O indivíduo está quase que automaticamente ligado à ela e se move com a uniformidade de um pêndulo. Para ele a natureza, a incompreendida, terrível, misteriosa natureza, deve parecer o reino da liberdade, do arbítrio, do poder superior, como que um estágio sobre humano da existência, Deus mesmo. Mas então cada indivíduo, em tais épocas e condições, sente como sua vida, sua felicidade, a de sua família, a do Estado, o sucesso de todos os empreendimentos, dependem dessas arbitrariedades da natureza. Alguns fenômenos naturais devem sobrevir no tempo certo, e outros deixar de ocorrer no tempo certo. Como ter influência sobre essas temíveis incógnitas, como subjugar o reino da liberdade? Eis o que ele se pergunta, eis o que busca ansiosamente. Não há como tornar essas potências regulares? As reflexões daqueles que acreditam em magia e milagres levam a impor uma lei à natureza, e, em poucas palavras, o culto religioso é produto dessas reflexões. O problema que esses homens se colocam é intimamente aparentado ao seguinte: como pode a tribo mais fraca ditar leis para a mais forte, decidir  a respeito dela, dirigir suas ações (na relação com a mais fraca)? Recordemos primeiro a espécie mais inócua de coação, aquela que exercitamos ao conquistar a afeição de alguém. Logo, por meio de súplicas e orações, por meio da submissão, do compromisso de tributos e presentes regulares, de exaltações lisonjeiras, é possível também exercer uma coação sobre os poderes da natureza, na medida em que os tornamos afeiçoados a nós; o amor vincula e é vinculado. Em seguida, podemos fechar acordos em que nos obrigamos mutuamente a determinada conduta, estabelecemos penhores e trocamos juramentos. Muito mais importante, porém, é uma espécie de coação mais violenta, mediante a magia e a feitiçaria. Assim como o homem, com a ajuda de um feiticeiro, pode prejudicar um inimigo mais forte e mantê-lo amedrontado, assim como o feitiço do amor age à distância, assim também o homem fraco acredita poder guiar até mesmo os espíritos poderosos da natureza. O meio principal de toda magia é termos em nosso poder algo que seja próprio de alguém: cabelos, unhas, um pouco da comida de sua mesa e mesmo sua imagem, seu nome. Com tal aparato se pode então praticar a magia, pois o pressuposto fundamental é de que a todo ser espiritual pertence algum elemento corporal. Com o auxílio deste se pode vincular o espírito, prejudica-lo, destruí-lo; o elemento corporal fornece a alça com que podemos apreender o espiritual. Do mesmo modo que um homem influencia outro homem, também influencia qualquer espirito da natureza, pois este também tem seu elemento corporal, pelo qual pode ser apreendido. A árvore e, comparado a ela, o broto do qual surgiu, essa enigmática coexistência parece provar que nas duas formas se corporificou um único espírito, ora pequeno, ora grande. Uma pedra que rola charneca solitária se encontra uma rocha, parece impossível imaginar uma força humana que a tenha trazido até ali. Então ela deve ter se movido por si própria, ou seja, deve hospedar um espírito. Tudo o que possui um corpo é acessível ao encantamento, também os espíritos da natureza. Se um deus está vinculado à sua imagem, pode-se também exercer sobre ele uma coação direta (ao lhe negar o alimento sacrificial, açoitá-lo, acorrenta-lo e assim por diante). A fim de obter as graças de um deus que as abandonou, as pessoas pobres, na China, amarram com cordas a sua imagem, arrastam-na  pelas ruas através de montes de lama que e estrume, e dizem: “Oh! Tu, cão de espírito, nós te fizemos habitar um magnífico templo, e douramos esplendidamente, te alimentamos bem, te oferecemos sacrifícios, e contudo és tão ingrato”. Semelhantes medidas de violência contra imagens dos santos e da mãe de Deus (A Bendita, Santa e Imaculada Virgem Maria), quando eles não quiseram cumprir sua obrigação em casos de peste ou de seca, por exemplo, ocorreram ainda nesse século (XIX) em países católicos romanos. Todas essas relações mágicas com a natureza deram origem a inúmeras cerimônias. Por fim, quando sua confusão se tornou muito grande houve esforços para ordená-las, sistematiza-las, de modo que se acreditou garantir o desenrolar favorável de todo o curso da natureza, isto é, do grande ciclo anual das estações, mediante o correspondente desenrolar de um sistema de procedimentos. O sentido do culto religioso é influenciar e esconjurar a natureza em benefício do homem, ou seja, imprimir-lhe uma regularidade que a princípio ela não tem. Enquanto na época atual queremos conhecer as regras da natureza para nos adaptarmos a elas. Em suma, o culto religioso baseia-se nas ideias de feitiço entre um homem e outro. E o feiticeiro é mais antigo que o sacerdote. Mas igualmente se baseia em concepções outras, mais nobres, pressupõe um laço de simpatia entre os homens, a existência de boa vontade, gratidão, atendimento aos suplicantes, acordos entre inimigos, concessão de garantias, direito à proteção da propriedade. Mesmo em baixos níveis de cultura o homem não se acha frente à natureza como um escravo impotente, não é necessariamente o seu servo desprovido de vontade. No nível religioso dos gregos, sobretudo na relação com os deuses olímpicos, deve-se mesmo pensar na convivência de duas castas, uma mais nobre, mais poderosas, e outra menos nobre. Mas por sua origem elas de algum modo estão ligadas e são de uma única espécie, não precisam se envergonhar uma de outra. Eis o que há de nobre na religiosidade grega. A vista de certos instrumentos de sacrifício antigos. Na união da farsa ou mesmo da obscenidade com o senso religioso, por exemplo, podemos ver como alguns sentimentos se perderam para nós. Não apreendemos o sentimento da possibilidade dessa mistura, não apreendemos senão historicamente que ela tenha existido nas festas de Deméter e Dionísio, nos mistérios e peças pascais dos cristãos. Mas ainda conhecemos a união do sublime ao burlesco (caricato, cômico) e coisas afins, o comovente associado ao ridículo, o que talvez uma época futura não mais compreenda. O cristianismo como antiguidade. Quando, numa manhã de domingo, ouvimos repicarem os velhos sinos, perguntamos a nós mesmos. Mas será possível? Isto se faz por um judeu crucificado há dois mil anos, que se dizia filho de Deus. Não existe prova para tal afirmação. Em nossos tempos, a religião cristã é certamente uma antiguidade que irrompe de um passado remoto, e o fato de crermos nessa afirmação, quando normalmente somos tão rigorosos no exame de qualquer pretensão, é talvez a parte mais antiga dessa herança. Um deus que gera filhos com uma mortal. Um sábio que exorta a que não se trabalhe, que não mais se julgue, mas que se atente aos sinais do iminente fim do mundo, uma justiça que aceita o inocente como vítima substituta. Alguém que manda seus discípulos beberem seu sangue, preces por intervenções miraculosas, pecados cometidos contra um deus expiados por um deus. Medo de um Além cuja porta de entrada é a morte, a forma da cruz como símbolo, num tempo que já não conhece a destinação e a ignomínia da cruz; que estremecimento nos causa tudo isso, como o odor vendo de um sepulcro antiquíssimo! Deveríamos crer que ainda se crê nessas coisas? Do livro Humano Demasiado Humano. Ano da primeira publica 1878. Abraço. Davi.

Nenhum comentário:

Postar um comentário